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Cancún: a Rodada do amadurecimento
O jogo
de forças no cenário internacional entre nações desenvolvidas e em
desenvolvimento, ou subdesenvolvidas, tem ocasionado sempre resultados
favoráveis às primeiras. Especificamente, com relação às negociações comerciais,
a Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), na reunião realizada
em Cancún — e inclusive, após o fechamento de acordo sobre o setor agrícola
entre Estados Unidos da América (EUA) e União Européia (UE), com o apoio
explícito do Japão —, parecia caminhar para esse mesmo desfecho. A
estratégia dos países desenvolvidos frente a este novo quadro, num primeiro
momento, foi a de tentar desarticular o G-20+, no que foram parcialmente
bem-sucedidos se considerarmos a saída de El Salvador do grupo. E em seguida,
dado o reconhecido fracasso na aprovação de um texto-base consensual, estes têm
alardeado que devem partir, de modo agressivo, para a assinatura de acordos
bilaterais, o que teria como principal conseqüência o enfraquecimento da OMC,
que defende a multilateralidade nas negociações comerciais. No entanto, a
questão agrícola é apenas um dos pontos a ser regulado no comércio internacional
e, a despeito da resistência empreendida, esses países têm interesses muito mais
amplos em termos de regulação do mercado internacional, cujo melhor fórum para o
equacionamento das divergências ainda é a OMC. 1 O Grupo reivindicava uma sinalização clara sobre a
eliminação dos subsídios agrícolas, praticados por EUA e UE. Porém, o texto-base
divulgado pelo presidente da Conferência de Cancún, Luis Ernesto Derbez,
propunha a diminuição dos subsídios, mas apenas para uma lista de produtos. Essa
lista deveria ser definida posteriormente e ser negociada por produto pelos
países que se sentissem prejudicados. Ou seja, era claramente insatisfatório
frente à posição do G-20+ que reivindicava um cronograma para o fim completo dos
subsídios destinados ao setor.
No entanto, a resposta dos países em desenvolvimento em defesa de avanços concretos na liberalização do comércio agrícola 1, através da formação do G-20+ 2, sob a liderança brasileira e com forte apoio da
Índia e da China, alterou completamente essa premissa e pode ser considerada um
fato histórico, no âmbito das relações internacionais.
Há que se destacar, ainda, que um grupo de 70 países em desenvolvimento também
não aceitou a inclusão, no texto-base, dos 'temas de Cingapura', como
investimentos, transparência nas compras governamentais e facilitação do
comércio. E que a minuta propunha a prorrogação por um período indeterminado da
'Cláusula de Paz', pela qual os países em desenvolvimento prometiam não
apresentar controvérsias sobre as medidas agrícolas dos países ricos, cujo prazo
de vigência vence no final de 2003.
Assim, se a reunião pode ser considerada 'fracassada', quanto aos avanços que seriam esperados para a conclusão da Rodada 3,
ao mesmo tempo, esta representou uma vitória para os países com, até então,
menor poder de força relativa.
Este resultado decorreu, fundamentalmente, do processo de amadurecimento
político dessas nações no tabuleiro das negociações internacionais.
Contribuíram, basicamente, para esse processo:
Com relação ao Brasil, o país teve sua imagem internacional fortalecida ao ser reconhecido como o grande articulador dos países em desenvolvimento. Seguindo nessa estratégia, há a firme posição de ser o intermediador do grupo recém criado com o de Cairns — constituído por 17 membros considerados potências no mercado agrícola internacional — o que, ao aumentar o poder de barganha, trará benefícios para todos os envolvidos. Nesse sentido, espera-se que um acordo satisfatório sobre a agricultura seja assinado ainda como parte da Rodada de Doha 6.
Entende-se que a nova coligação de forças é benéfica, mas não suficiente ainda para a completa liberalização do comércio internacional do agronegócio. Certamente, deverá ocorrer um certo trade off entre
os interesses essencialmente agrícolas e os demais temas em discussão na
presente rodada de negociações, o que, no estágio atual, já representará ganho
considerável para os interesses dos países em desenvolvimento. Além disso, nada
impede que o governo brasileiro intensifique a assinatura de acordos bilaterais,
sem perder de vista o objetivo maior da multilateralidade.
2 Participam desse grupo, além do Brasil, África do
Sul, Argentina, Bolívia, Chile, China, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Egito,
Equador, Filipinas, Guatemala, Índia, Indonésia, Malásia, México, Paquistão,
Paraguai, Peru, Tailândia e Venezuela, entre outros.
3 Prevista para ser
encerrada em 1° de janeiro de 2005.
4 Necessidade de superar diferenças em prol de um
objetivo comum. O Grupo de Cairns é um claro exemplo dessa estratégia de ação.
5 Tornou efetiva a
possibilidade de aplicação de retaliação comercial como instrumento legítimo de
defesa do país ameaçado e/ou afetado pelo exercício de políticas protecionistas.
6 Note-se que nova
reunião foi agendada para 15 de dezembro de 2003.
Data de Publicação: 03/10/2003
Autor(es): Valquiria da Silva Consulte outros textos deste autor