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A Agricultura Orgânica E O Comércio Justo E Solidário
O
movimento de agricultura orgânica surgiu do envolvimento de especialistas em
agricultura, com formação formal ou informal, em reação às transformações do
modelo tecnológico baseado no uso de produtos químicos. Isto levou à visão de
que a transformação da realidade dependeria fundamentalmente da transformação
gradativa do padrão tecnológico, sem considerar os limites e as potencialidades
impostas pelo sistema econômico dominante. Os ideais do movimento - a
preocupação com a qualidade do produto, com a saúde e qualidade de vida de
agricultores/trabalhadores e consumidores, a justiça social e a preservação do
ambiente - são em geral vistos como resultados certos da expansão da produção
orgânica, ou seja, acompanhariam automaticamente a expansão do mercado. Todos
aqueles que vivem hoje a realidade do movimento orgânico sabem a dificuldade
prática de conciliar a expansão do mercado com a manutenção dos ideais do
movimento. 1. Comercialização direta Além
dos mecanismos de fomento das relações individuais diretas baseadas no
fortalecimento do desenvolvimento local e das relações pessoais de
solidariedade, vêm se desenvolvendo também estratégias de construção de redes
que integram grupos distantes que comungam ideais comuns. Denominam-se a estas
redes de economia solidária. 2. O selo social de mercado justo4 Na
breve história do movimento pelo mercado justo, disponível no site da
International Federation for Alternative Trade, o crescimento do comércio
alternativo nos anos 60s esteve associado principalmente aos movimentos
políticos de solidariedade como a compra de café da Nicarágua para apoiar os
sandinistas. De uma forma geral, o comércio alternativo nos anos 60s e 70s
estava mais ligado a encontrar mercado para países fora do mercado, em função de
problemas políticos, do que melhorar as condições de vida dos produtores. 3. Considerações finais O
movimento orgânico brasileiro e a AAO, em particular, desenvolveram-se baseados
nos ideais de solidariedade entre os diversos atores. A forte expansão dos
últimos tempos está trazendo novos atores e os comprometimentos pessoais tendem
a se diluir na impessoalidade das relações entre atores sociais, subordinando-os
à lógica do mercado e trazendo conflitos novos para o interior do movimento.
Na medida em que o interesse do consumidor cresce por este tipo de produto que
chega aos supermercados, uma revolução se insere dentro do movimento, no sentido
inverso ao vivido historicamente pelo próprio movimento. A crítica ao modelo
hegemônico sempre deu ao orgânico um papel revolucionário, contestador,
transformador. Hoje, através da comercialização indireta, impessoal, é a lógica
do mercado, do lucro, que está ameaçando transformar o movimento, tornando-o o
seu reflexo e afastando-o da sua motivação original. A expansão pela qual está
passando uma das ONGs ligadas a esse movimento - a Associação de Agricultura
Orgânica (AAO) -, no que diz respeito à produção de frutas, legumes e verduras,
é um bom indicador deste novo cenário.
A AAO conta hoje com cerca de 1.800 associados, dos quais 500 são atuantes, número este relativamente estável nos últimos anos, não acompanhando a expansão da produção. Tem hoje cerca de 500 produtores certificados, totalizando cerca de 10.500 hectares certificados. Destes, cerca de 300 são produtores de hortaliças, com uma área média de 2 hectares, enquanto os produtores em conversão têm uma área ligeiramente superior (2,1 hectares). Esta atividade representa cerca de 58% do total de produtores, mas somente cerca de 5% da área total são certificados pela AAO. No que diz respeito às frutas, o número de produtores é da ordem de 801, com área média de 5,3 hectares,
mas, quando se considera os que estão em conversão, se observa uma expansão
considerável da área, para cerca de 35 hectares. O setor de frutas está se
expandindo bastante, mas ainda representa cerca de 15% do número dos produtores
e ocupa 4% da área certificada.
O selo foi criado em 1997. Atualmente, os produtos certificados pela AAO são
comercializados em cerca de 150 lojas, de seis cadeias de supermercados. Isto se
reflete no crescimento acelerado da produção e da área certificada. Em dezembro
de 1996, existiam 26 produtores certificados pela AAO e, em dezembro de 2000,
eram 350, definindo uma taxa anual de crescimento de cerca de 100% a.a..
Esta expansão do mercado levou os Estados nacionais a estruturarem seus mercados de orgânicos. A certificação desenvolvida pelo movimento social, através do sistema IFOAM2, passou a competir com as normas
técnicas definidas no âmbito do poder público e introduziram-se as exigências de
procedimentos definidas na norma ISO 65. A falta de um padrão guarda-chuva
único, reconhecido pelos Estados nacionais, é o estágio atual que cria barreiras
desnecessárias para o perfeito funcionamento do mercado. Por outro lado, a
introdução do padrão ISO veio trazer as necessárias confiabilidade e agilidade
ao mercado de produtos de qualidade.
O interesse do mercado, entretanto, não traz simplesmente um aumento da demanda
por certificação, que é o que os procedimentos ISO podem atender. Traz também a
lógica das relações de troca desiguais e injustas do ponto de vista social.
No caso da AAO, a maioria dos seus produtores é formada de agricultores
familiares, que desenvolvem a horticultura cujos produtos estão sendo
comercializados através de empresas, para venda nos supermercados. As três
maiores empresas que atuam neste mercado são a Horta e Arte, o Sítio São
Francisco e a Fazenda Santo Onofre. Exceto esta última, as demais são
gerenciadas por antigos produtores orgânicos que participam há muito tempo da
construção da Associação.
A posição de intermediação dessas empresas, entre o supermercado3 e os agricultores familiares de produtos
perecíveis, lhes dá o difícil papel de serem guardiães, a cada momento e a cada
decisão, dos ideais do movimento frente a sua apropriação pela lógica econômica
do capitalismo. O supermercado, ao definir seu contrato com as empresas, age
reproduzindo o seu poder de negociação frente a produtores convencionais. As
empresas repassam aos produtores as condições obtidas nos contratos firmados.
Produtores insatisfeitos com os termos da negociação olham para a empresa do
movimento orgânico como a instituição responsável pelas precárias condições do
contrato que ela lhes impõe.
Diante deste diagnóstico, duas estratégias podem ser vislumbradas, para a AAO.
De um lado, cumpre valorizar e fortalecer canais diretos de comercialização e,
de outro, torna-se imperativo conhecer e tornar transparente, a todos os elos do
encadeamento produtivo orgânico, as condições contratuais. Para aqueles que
efetivamente estão comprometidos com os ideais sociais e ambientais do
movimento, é necessário buscar definir melhores condições contratuais que
garantam uma distribuição mais equitativa dos ganhos obtidos nas diversas etapas
do processo de produção, até o consumidor final.
A economia solidária, segundo SINGER (2000), começou a ressurgir no Brasil na
década de 80, mas tomou impulso crescente a partir da segunda metade dos anos
90s como resposta dos movimentos sociais à crise do desemprego, agravada pela
abertura do mercado brasileiro ao comércio internacional. Na agricultura, surge
através do Movimento dos Sem Terra, que organiza diferentes tipos de
cooperativas nos assentamentos. No setor industrial, assessores sindicais
orientam trabalhadores a se organizarem na forma de cooperativas de produção
para assim manter postos de trabalho ameaçados pela crise econômica. Como
decorrência do movimento da Ação da Cidadania, surgem em meados dos anos 90s as
Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares, ligadas às Universidades e
que dão apoio à população em geral para a formação ideológica e a constituição e
gestão de cooperativas de trabalho e de produção. Várias outras iniciativas vão
se reunindo a estas, fortalecendo a constituição de uma organização econômica
paralela fundada em princípios éticos, reguladores do mercado: as trocas
solidárias.
Para Singer (2000), a economia solidária é uma criação em processo contínuo de
trabalhadores em luta contra o capitalismo. É um modo de produção e distribuição
alternativo ao capitalismo, criado e recriado periodicamente pelos que se
encontram (ou temem ficar) marginalizados no mercado de trabalho.
A definição de economia solidária desse autor deixa de lado a motivação de
resistência ética que o movimento da Aliança para um Mundo Responsável e
Solidário coloca em seus canteiros, em particular no de consumo: 'É importante
destacar que o debate que alia o consumo a uma postura ética é muito recente,
assim, ainda estão sendo construídos os fundamentos teóricos para sua definição.
Até mesmo a denominação consumo ético se mistura com consumo solidário, consumo
responsável, consumo equitativo, entre outras. A inserção da palavra solidário
marca a importância do ‘OUTRO’ nas relações de produção e consumo'. Nesta
perspectiva de economia solidária, dá-se à sociedade a possibilidade de
estabelecer mecanismos de regulação do mercado, principalmente através do seu
voto monetário, como consumidor. Nesta perspectiva, as trocas solidárias
aproximam-se dos movimentos que levaram à constituição de um selo social. Existe
entretanto uma diferença fundamental entre elas, na medida em que a primeira
cria um sistema econômico paralelo, 'uma troca direta', e a outra procura atuar
sobre o mercado, regulando-o. A economia solidária como sistema econômico
alternativo não é criação recente. Vem sendo ensaiada por países e cidadãos e
pensada por socialistas, podendo ser construída em todos os campos da atividade
econômica.
Na perspectiva da Aliança para um Mundo responsável e Solidário, a questão é de
ética e responsabilidade individual e de regulação do mercado. No Encontro
ocorrido no Rio de Janeiro em 2000, no subcanteiro de Consumo Ético e
Responsável, definiu-se ética como um conjunto de valores baseado na atenção e
na responsabilidade para consigo, o outro e o meio ambiente, que permeia as
ações e reações comprometidas com a vida. Consumo ético define-se, portanto,
como compra e/ou utilização de bens, serviços ou idéias baseadas nesse conceito.
Identifica-se o desafio através da dificuldade em mudar o modelo centrado na
acumulação e consumo ilimitados de bens materiais, no esforço necessário para
despertar as pessoas para a importância dessa questão. A proposta é fomentar
pequenos grupos locais, em todo o mundo, para o desenvolvimento de estratégias,
estruturas e organizações interligadas globalmente. Reflete no âmbito produtivo
e econômico, através da promoção, apoio e desenvolvimento de alternativas para
superar o modo de vida e de produção capitalista, através de redes de
colaboração solidária, em toda a cadeia produtiva.
Existem portanto, pelo menos duas redes de economia solidária construídas com
perspectivas teóricas distintas e ainda não está claro como vão interagir.
Por outro lado, grupos religiosos trabalhando com populações carentes nos países
periféricos desenvolveram práticas de mercado justo para artesanato,
considerando-as como atividade complementar à agricultura. O artesanato pode ser
realizado com grande flexibilidade no trabalho e praticamente não exige capital.
Além disso, reflete a cultura e neste sentido é um produto único valorizado pela
origem.
Durante os anos 70s, estas organizações começaram a se reunir para conferências.
Nos anos 80s, houve o movimento pela formalização desta relação. Foram fundadas
duas entidades na Europa: a European Fair Trade Association (EFTA), que reúne as
12 maiores importadoras na Europa com a missão de aumentar a eficiência e a
eficácia na condução dos trabalhos, e a International Federation for Alternative
Trade (IFAT). Esta se define como uma rede global de 150 organizações em 47
países (em julho de 1999), voltada para melhorar as condições de vida da
população marginalizada, através do comércio justo, promovendo um fórum para a
troca de informações e idéias. Atua a partir de um 'código de prática', no que
diz respeito ao comprometimento com o comércio justo, transparência, questões
éticas, condições de trabalho que garantam no mínimo as regulamentações locais,
igualdade de oportunidade de emprego a todos, preocupação social e ambiental,
respeito à identidade cultural dos produtores, educação dos consumidores e
defesa das condições de vida dos povos marginalizados, além de as relações de
trabalho terem sempre de se desenvolver com base na solidariedade. Este 'Código
de Prática' é subscrito por todos os seus membros.
Na América do Norte, o movimento se organizou em 1994, criando a organização
North American Alternative Trade Organization, cuja denominação mudou no ano
seguinte para Fair Trade Federation. A partir de 1996, esta Federação passou a
estabelecer normas para a participação de maneira que ser associado é um
certificado de realizar comércio justo. Comercializam principalmente artesanato,
mas existe café e chá disponível no mercado. No caso do café, é geralmente
orgânico e de sombra. Em 1998, retirou-se da entidade a função de educação do
consumidor e foi criada a Fair Trade Education Fund para desempenhar este papel.
A primeira certificadora a surgir foi a Max Havelaar, fundada em 1988, a partir
do grupo Solidaridad, na Holanda. Este grupo optou por trabalhar com café,
devido à experiência de trabalho com a Nicarágua sandinista, à importância dos
produtores familiares na produção global e à grande oscilação no preço do grão.
A iniciativa levou ao surgimento de outras entidades: a Fairtrade Labelling
Organization na Inglaterra e a Transfair, primeiro na Alemanha e depois em
vários países incluindo o Japão, que resultou na Transfair International,
produto da interação entre a unidade alemã e a EFTA .
Em 1997, foi criada a Fairtrade Labelling Organizations International (FLO), uma
instituição guarda-chuva, semelhante à IFOAM, voltada à coordenação do registro,
monitoramento e promoção das entidades dedicadas ao comércio justo. Os critérios
são definidos para cada produto, mas se referem a questões como: preço mínimo
garantido, aquisições exclusivas de grupos democraticamente organizados de
pequenos produtores, previsão de crédito para a pré-colheita e acordo de compra
por prazos longos e não a cada ano.
A criação da FLO trouxe uma mudança fundamental na forma de trabalho do
movimento. Esta organização voltou-se à melhoria na distribuição do produto,
buscando colocá-lo em todos os pontos de venda. Decidiram trabalhar ao longo da
cadeia produtiva, cuidando para que as margens cobradas não prejudiquem o
produtor, e voltaram-se para a criação de um mercado diferenciado visando
associar a marca à qualidade e confiança.
O desafio que se coloca neste momento é o de identificar a heterogeneidade
social dentro do movimento, compreendendo a diversidade de interesses e,
simultaneamente, buscando construir estratégias e identificar instrumentos que
permitam aos atores sociais, efetivamente comprometidos com o movimento, exercer
o seu papel de reguladores de mercado, em defesa dos ideais do movimento.
O fomento à construção de relações diretas entre produtor e consumidor,
individualmente ou em grupos, através de equipamentos específicos ou não, além
da agregação do selo social ao orgânico, são as estratégias do espaço da
comercialização que precisam ser incorporadas às tecnológicas, desde sempre
trabalhadas pelo movimento, para garantir a preservação dos 'ideais orgânicos'
frente à crescente expansão do mercado.
1 A soma pode ser superior ao número total de
produtores certificados porque um produtor pode ter as duas
atividades.
2 Federação Internacional dos Movimentos de
Agricultura Orgânica.
3 No momento atual do capitalismo os
supermercados estão assumindo o papel das centrais de abastecimento
aumentando seu poder de barganha junto aos ofertantes em função do seu
caráter pulverizado e a falta de transparência nos contratos (Green &
Schaler, 1997).
4
Baseado em: (CARVALHO, 2000).
BIBLIOGRAFIA CITADA
Carvalho, Yara M. Chagas de. Agricultura orgânica e o comércio justo. IN: Adubação verde para Agricultura orgânica: Dia de Campo. (ABROSANO et al org.) Piracicaba, Gráfica e editora Degaspari, 2000. P. 123-149.
SINGER, P & SOUZA, A R. (org). A Economia Solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Pulo, Editora Contexto, 2000. 360p.
Data de Publicação: 01/11/2001
Autor(es): Yara Maria Chagas de Carvalho Consulte outros textos deste autor