A Agricultura Orgânica E O Comércio Justo E Solidário

            O movimento de agricultura orgânica surgiu do envolvimento de especialistas em agricultura, com formação formal ou informal, em reação às transformações do modelo tecnológico baseado no uso de produtos químicos. Isto levou à visão de que a transformação da realidade dependeria fundamentalmente da transformação gradativa do padrão tecnológico, sem considerar os limites e as potencialidades impostas pelo sistema econômico dominante. Os ideais do movimento - a preocupação com a qualidade do produto, com a saúde e qualidade de vida de agricultores/trabalhadores e consumidores, a justiça social e a preservação do ambiente - são em geral vistos como resultados certos da expansão da produção orgânica, ou seja, acompanhariam automaticamente a expansão do mercado. Todos aqueles que vivem hoje a realidade do movimento orgânico sabem a dificuldade prática de conciliar a expansão do mercado com a manutenção dos ideais do movimento.
            Na medida em que o interesse do consumidor cresce por este tipo de produto que chega aos supermercados, uma revolução se insere dentro do movimento, no sentido inverso ao vivido historicamente pelo próprio movimento. A crítica ao modelo hegemônico sempre deu ao orgânico um papel revolucionário, contestador, transformador. Hoje, através da comercialização indireta, impessoal, é a lógica do mercado, do lucro, que está ameaçando transformar o movimento, tornando-o o seu reflexo e afastando-o da sua motivação original. A expansão pela qual está passando uma das ONGs ligadas a esse movimento - a Associação de Agricultura Orgânica (AAO) -, no que diz respeito à produção de frutas, legumes e verduras, é um bom indicador deste novo cenário.
            A AAO conta hoje com cerca de 1.800 associados, dos quais 500 são atuantes, número este relativamente estável nos últimos anos, não acompanhando a expansão da produção. Tem hoje cerca de 500 produtores certificados, totalizando cerca de 10.500 hectares certificados. Destes, cerca de 300 são produtores de hortaliças, com uma área média de 2 hectares, enquanto os produtores em conversão têm uma área ligeiramente superior (2,1 hectares). Esta atividade representa cerca de 58% do total de produtores, mas somente cerca de 5% da área total são certificados pela AAO. No que diz respeito às frutas, o número de produtores é da ordem de 801, com área média de 5,3 hectares, mas, quando se considera os que estão em conversão, se observa uma expansão considerável da área, para cerca de 35 hectares. O setor de frutas está se expandindo bastante, mas ainda representa cerca de 15% do número dos produtores e ocupa 4% da área certificada.
            O selo foi criado em 1997. Atualmente, os produtos certificados pela AAO são comercializados em cerca de 150 lojas, de seis cadeias de supermercados. Isto se reflete no crescimento acelerado da produção e da área certificada. Em dezembro de 1996, existiam 26 produtores certificados pela AAO e, em dezembro de 2000, eram 350, definindo uma taxa anual de crescimento de cerca de 100% a.a..
            Esta expansão do mercado levou os Estados nacionais a estruturarem seus mercados de orgânicos. A certificação desenvolvida pelo movimento social, através do sistema IFOAM2, passou a competir com as normas técnicas definidas no âmbito do poder público e introduziram-se as exigências de procedimentos definidas na norma ISO 65. A falta de um padrão guarda-chuva único, reconhecido pelos Estados nacionais, é o estágio atual que cria barreiras desnecessárias para o perfeito funcionamento do mercado. Por outro lado, a introdução do padrão ISO veio trazer as necessárias confiabilidade e agilidade ao mercado de produtos de qualidade.
            O interesse do mercado, entretanto, não traz simplesmente um aumento da demanda por certificação, que é o que os procedimentos ISO podem atender. Traz também a lógica das relações de troca desiguais e injustas do ponto de vista social.
            No caso da AAO, a maioria dos seus produtores é formada de agricultores familiares, que desenvolvem a horticultura cujos produtos estão sendo comercializados através de empresas, para venda nos supermercados. As três maiores empresas que atuam neste mercado são a Horta e Arte, o Sítio São Francisco e a Fazenda Santo Onofre. Exceto esta última, as demais são gerenciadas por antigos produtores orgânicos que participam há muito tempo da construção da Associação.
            A posição de intermediação dessas empresas, entre o supermercado3 e os agricultores familiares de produtos perecíveis, lhes dá o difícil papel de serem guardiães, a cada momento e a cada decisão, dos ideais do movimento frente a sua apropriação pela lógica econômica do capitalismo. O supermercado, ao definir seu contrato com as empresas, age reproduzindo o seu poder de negociação frente a produtores convencionais. As empresas repassam aos produtores as condições obtidas nos contratos firmados. Produtores insatisfeitos com os termos da negociação olham para a empresa do movimento orgânico como a instituição responsável pelas precárias condições do contrato que ela lhes impõe.
            Diante deste diagnóstico, duas estratégias podem ser vislumbradas, para a AAO. De um lado, cumpre valorizar e fortalecer canais diretos de comercialização e, de outro, torna-se imperativo conhecer e tornar transparente, a todos os elos do encadeamento produtivo orgânico, as condições contratuais. Para aqueles que efetivamente estão comprometidos com os ideais sociais e ambientais do movimento, é necessário buscar definir melhores condições contratuais que garantam uma distribuição mais equitativa dos ganhos obtidos nas diversas etapas do processo de produção, até o consumidor final.

1. Comercialização direta

            Além dos mecanismos de fomento das relações individuais diretas baseadas no fortalecimento do desenvolvimento local e das relações pessoais de solidariedade, vêm se desenvolvendo também estratégias de construção de redes que integram grupos distantes que comungam ideais comuns. Denominam-se a estas redes de economia solidária.
            A economia solidária, segundo SINGER (2000), começou a ressurgir no Brasil na década de 80, mas tomou impulso crescente a partir da segunda metade dos anos 90s como resposta dos movimentos sociais à crise do desemprego, agravada pela abertura do mercado brasileiro ao comércio internacional. Na agricultura, surge através do Movimento dos Sem Terra, que organiza diferentes tipos de cooperativas nos assentamentos. No setor industrial, assessores sindicais orientam trabalhadores a se organizarem na forma de cooperativas de produção para assim manter postos de trabalho ameaçados pela crise econômica. Como decorrência do movimento da Ação da Cidadania, surgem em meados dos anos 90s as Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares, ligadas às Universidades e que dão apoio à população em geral para a formação ideológica e a constituição e gestão de cooperativas de trabalho e de produção. Várias outras iniciativas vão se reunindo a estas, fortalecendo a constituição de uma organização econômica paralela fundada em princípios éticos, reguladores do mercado: as trocas solidárias.
            Para Singer (2000), a economia solidária é uma criação em processo contínuo de trabalhadores em luta contra o capitalismo. É um modo de produção e distribuição alternativo ao capitalismo, criado e recriado periodicamente pelos que se encontram (ou temem ficar) marginalizados no mercado de trabalho.
            A definição de economia solidária desse autor deixa de lado a motivação de resistência ética que o movimento da Aliança para um Mundo Responsável e Solidário coloca em seus canteiros, em particular no de consumo: 'É importante destacar que o debate que alia o consumo a uma postura ética é muito recente, assim, ainda estão sendo construídos os fundamentos teóricos para sua definição. Até mesmo a denominação consumo ético se mistura com consumo solidário, consumo responsável, consumo equitativo, entre outras. A inserção da palavra solidário marca a importância do ‘OUTRO’ nas relações de produção e consumo'. Nesta perspectiva de economia solidária, dá-se à sociedade a possibilidade de estabelecer mecanismos de regulação do mercado, principalmente através do seu voto monetário, como consumidor. Nesta perspectiva, as trocas solidárias aproximam-se dos movimentos que levaram à constituição de um selo social. Existe entretanto uma diferença fundamental entre elas, na medida em que a primeira cria um sistema econômico paralelo, 'uma troca direta', e a outra procura atuar sobre o mercado, regulando-o. A economia solidária como sistema econômico alternativo não é criação recente. Vem sendo ensaiada por países e cidadãos e pensada por socialistas, podendo ser construída em todos os campos da atividade econômica.
            Na perspectiva da Aliança para um Mundo responsável e Solidário, a questão é de ética e responsabilidade individual e de regulação do mercado. No Encontro ocorrido no Rio de Janeiro em 2000, no subcanteiro de Consumo Ético e Responsável, definiu-se ética como um conjunto de valores baseado na atenção e na responsabilidade para consigo, o outro e o meio ambiente, que permeia as ações e reações comprometidas com a vida. Consumo ético define-se, portanto, como compra e/ou utilização de bens, serviços ou idéias baseadas nesse conceito.
            Identifica-se o desafio através da dificuldade em mudar o modelo centrado na acumulação e consumo ilimitados de bens materiais, no esforço necessário para despertar as pessoas para a importância dessa questão. A proposta é fomentar pequenos grupos locais, em todo o mundo, para o desenvolvimento de estratégias, estruturas e organizações interligadas globalmente. Reflete no âmbito produtivo e econômico, através da promoção, apoio e desenvolvimento de alternativas para superar o modo de vida e de produção capitalista, através de redes de colaboração solidária, em toda a cadeia produtiva.
            Existem portanto, pelo menos duas redes de economia solidária construídas com perspectivas teóricas distintas e ainda não está claro como vão interagir.

2. O selo social de mercado justo4

            Na breve história do movimento pelo mercado justo, disponível no site da International Federation for Alternative Trade, o crescimento do comércio alternativo nos anos 60s esteve associado principalmente aos movimentos políticos de solidariedade como a compra de café da Nicarágua para apoiar os sandinistas. De uma forma geral, o comércio alternativo nos anos 60s e 70s estava mais ligado a encontrar mercado para países fora do mercado, em função de problemas políticos, do que melhorar as condições de vida dos produtores.
            Por outro lado, grupos religiosos trabalhando com populações carentes nos países periféricos desenvolveram práticas de mercado justo para artesanato, considerando-as como atividade complementar à agricultura. O artesanato pode ser realizado com grande flexibilidade no trabalho e praticamente não exige capital. Além disso, reflete a cultura e neste sentido é um produto único valorizado pela origem.
            Durante os anos 70s, estas organizações começaram a se reunir para conferências. Nos anos 80s, houve o movimento pela formalização desta relação. Foram fundadas duas entidades na Europa: a European Fair Trade Association (EFTA), que reúne as 12 maiores importadoras na Europa com a missão de aumentar a eficiência e a eficácia na condução dos trabalhos, e a International Federation for Alternative Trade (IFAT). Esta se define como uma rede global de 150 organizações em 47 países (em julho de 1999), voltada para melhorar as condições de vida da população marginalizada, através do comércio justo, promovendo um fórum para a troca de informações e idéias. Atua a partir de um 'código de prática', no que diz respeito ao comprometimento com o comércio justo, transparência, questões éticas, condições de trabalho que garantam no mínimo as regulamentações locais, igualdade de oportunidade de emprego a todos, preocupação social e ambiental, respeito à identidade cultural dos produtores, educação dos consumidores e defesa das condições de vida dos povos marginalizados, além de as relações de trabalho terem sempre de se desenvolver com base na solidariedade. Este 'Código de Prática' é subscrito por todos os seus membros.
            Na América do Norte, o movimento se organizou em 1994, criando a organização North American Alternative Trade Organization, cuja denominação mudou no ano seguinte para Fair Trade Federation. A partir de 1996, esta Federação passou a estabelecer normas para a participação de maneira que ser associado é um certificado de realizar comércio justo. Comercializam principalmente artesanato, mas existe café e chá disponível no mercado. No caso do café, é geralmente orgânico e de sombra. Em 1998, retirou-se da entidade a função de educação do consumidor e foi criada a Fair Trade Education Fund para desempenhar este papel.
            A primeira certificadora a surgir foi a Max Havelaar, fundada em 1988, a partir do grupo Solidaridad, na Holanda. Este grupo optou por trabalhar com café, devido à experiência de trabalho com a Nicarágua sandinista, à importância dos produtores familiares na produção global e à grande oscilação no preço do grão. A iniciativa levou ao surgimento de outras entidades: a Fairtrade Labelling Organization na Inglaterra e a Transfair, primeiro na Alemanha e depois em vários países incluindo o Japão, que resultou na Transfair International, produto da interação entre a unidade alemã e a EFTA .
            Em 1997, foi criada a Fairtrade Labelling Organizations International (FLO), uma instituição guarda-chuva, semelhante à IFOAM, voltada à coordenação do registro, monitoramento e promoção das entidades dedicadas ao comércio justo. Os critérios são definidos para cada produto, mas se referem a questões como: preço mínimo garantido, aquisições exclusivas de grupos democraticamente organizados de pequenos produtores, previsão de crédito para a pré-colheita e acordo de compra por prazos longos e não a cada ano.
            A criação da FLO trouxe uma mudança fundamental na forma de trabalho do movimento. Esta organização voltou-se à melhoria na distribuição do produto, buscando colocá-lo em todos os pontos de venda. Decidiram trabalhar ao longo da cadeia produtiva, cuidando para que as margens cobradas não prejudiquem o produtor, e voltaram-se para a criação de um mercado diferenciado visando associar a marca à qualidade e confiança.

3. Considerações finais

            O movimento orgânico brasileiro e a AAO, em particular, desenvolveram-se baseados nos ideais de solidariedade entre os diversos atores. A forte expansão dos últimos tempos está trazendo novos atores e os comprometimentos pessoais tendem a se diluir na impessoalidade das relações entre atores sociais, subordinando-os à lógica do mercado e trazendo conflitos novos para o interior do movimento.
            O desafio que se coloca neste momento é o de identificar a heterogeneidade social dentro do movimento, compreendendo a diversidade de interesses e, simultaneamente, buscando construir estratégias e identificar instrumentos que permitam aos atores sociais, efetivamente comprometidos com o movimento, exercer o seu papel de reguladores de mercado, em defesa dos ideais do movimento.
            O fomento à construção de relações diretas entre produtor e consumidor, individualmente ou em grupos, através de equipamentos específicos ou não, além da agregação do selo social ao orgânico, são as estratégias do espaço da comercialização que precisam ser incorporadas às tecnológicas, desde sempre trabalhadas pelo movimento, para garantir a preservação dos 'ideais orgânicos' frente à crescente expansão do mercado.
 

1 A soma pode ser superior ao número total de produtores certificados porque um produtor pode ter as duas atividades. 
2 Federação Internacional dos Movimentos de Agricultura Orgânica.
3 No momento atual do capitalismo os supermercados estão assumindo o papel das centrais de abastecimento aumentando seu poder de barganha junto aos ofertantes em função do seu caráter pulverizado e a falta de transparência nos contratos (Green & Schaler, 1997).
4 Baseado em: (CARVALHO, 2000).

 

BIBLIOGRAFIA CITADA

Carvalho, Yara M. Chagas de. Agricultura orgânica e o comércio justo. IN: Adubação verde para Agricultura orgânica: Dia de Campo. (ABROSANO et al org.) Piracicaba, Gráfica e editora Degaspari, 2000. P. 123-149.

SINGER, P & SOUZA, A R. (org). A Economia Solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Pulo, Editora Contexto, 2000. 360p.

Data de Publicação: 01/11/2001

Autor(es): Yara Maria Chagas de Carvalho Consulte outros textos deste autor