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Agricultura familiar: limites do conceito e evolução do crédito
A agricultura familiar representa um elemento relevante das políticas setoriais brasileiras que pressupõem tratamento diferenciado, tanto em termos de taxas de juros quanto de instrumentos, em relação à agricultura de escala (também denominada patronal). Não apenas existem dois ministérios definidos em função dessa distinção de público – o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA)1 para a agricultura de escala e o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA)2 para a agricultura familiar -, como são organizados
dois planos de safras diferenciados. Tabela 1 - Limites de área cultivada para diferentes
lavouras paulista, em hectares, calculado dado o máximo de renda bruta fixado
pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF)
Trata-se, pois, de uma realidade derivada do valor unitário do produto. Tanto os produtos de alto valor unitário (como as frutas e olerícolas frescas) quanto os de baixo valor unitário (como as commodities), pela
média de preços e produtividade, apresentam dificuldades em adequar-se ao limite
de renda fixado pelo PRONAF. Tabela 2 - Limites de área cultivada paulista com diferentes
lavouras, em hectares, calculado dado o máximo de renda bruta fixado pelo Fundo
de Expansão do Agronegócio Paulista (FEAP), o Banco do Agronegócio Familiar
Interessante verificar o comportamento desses limites na realidade das operações
de crédito rural. No caso do PRONAF no Estado de São Paulo, os valores aplicados
cresceram de R$ 62,9 milhões, em 1999, para R$ 174,3 milhões em 2004 (+177,4%),
com o número de contratos evoluindo de 14,9 mil para 25,9 mil (+73,9%) no mesmo
período. Assim, o valor médio dos contratos cresceu de R$ 4,2 mil para R$ 6,7
mil (+59,5%) (tabela 3). Tabela 3 - Crédito Rural do Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF)(1), Estado de São Paulo, 1999 a
2004 Tabela. 4 - Aplicações em crédito para agricultura,
realizadas pelo Fundo de Expansão do Agronegócio Paulista(1) - O Banco do
Agronegócio Familiar, 1999 a 2004 Ao
focar a problemática dos limites, há de se compatibilizar os valores fixados com
os demais segmentos econômicos e sociais, de forma a não criar privilégios
inaceitáveis que acabam por exacerbar as disparidades de renda que se pretende
combater com as políticas compensatórias. Dessa ótica, é interessante cotejar a
renda bruta de R$ 60 mil do PRONAF com o piso de renda que fixa a
obrigatoriedade de declaração de Imposto de Renda pela pessoa física. _________________________
A distinção entre as duas agriculturas não está formalmente associada a determinadas lavouras ou criações, mas a indicadores determinantes da escala dos empreendimentos. Tanto assim que em ambos os planos de safra podem ser contempladas commodities.
Entretanto, na literatura sobre a agricultura brasileira, o conceito de agricultura familiar perde seu conteúdo de universalidade por conta da utilização de inúmeras composições de variáveis. Exemplo disso pode ser encontrado no debate recente em torno da importância da agricultura familiar no Brasil: estudo da Fundação Instituto de Pesquisa Econômica (FIPE), sob encomenda do MDA, mostra que não apenas a agricultura familiar representa um terço do produto interno bruto (PIB) da agricultura como sua participação no PIB do Brasil cresce de 8,8% em 2001 para 10,1% em 2003; e b) pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV), patrocinada pela Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA-Brasil), mostra que 76,4% do valor bruto da produção agropecuária nacional se enquadra como agricultura de escala3.
Por certo, trata-se de definições distintas do que seria agricultura familiar,
por serem baseadas, uma, nas instruções legais e normativas do Programa Nacional
de Fortalecimento da Agricultura Familiar-PRONAF (FGV-CNA) e, outra, num
conceito de agricultura familiar definido a partir de estabelecimentos rurais
cuja direção dos trabalhos é exercida pelo produtor e onde o trabalho familiar
supera o trabalho contratado (FIPE/MDA).
Sem entrar no mérito do conteúdo e da qualidade dos respectivos estudos, o que
se quer mostrar refere-se à imensa dificuldade de fixar um padrão de
universalidade para definição de agricultura familiar, que permita uniformidade
de critérios para todo território brasileiro. Tanto assim que medidas têm sido
tomadas para flexibilizar o conceito de agricultura familiar inserido no PRONAF,
conferindo-lhe maior abrangência.
São exemplos as deduções no cálculo da renda bruta para estabelecimentos com processamento agroindustrial, de até 70% da renda decorrente dessas atividades, elevando o limite para R$ 200 mil, bem como as suinoculturas e aviculturas integradas, nas quais se deduz o equivalente da renda que fica com as integradoras, que em média representa 90% da renda bruta. Regra geral, 'todas essas modificações ampliam significativamente o número de agricultores em condições de enquadramento no PRONAF'4.
Na legislação brasileira, a definição de propriedade familiar está consignada no Inciso II do artigo 4° do Estatuto da Terra, estabelecido pela Lei n° 4.504 de 30 de novembro de 2004, com a seguinte redação: 'propriedade familiar: o imóvel que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalhado com a ajuda de terceiros'. Na definição da área máxima, a lei n° 8629, de 25 de
fevereiro de 1993, estabelece como pequena propriedade os imóveis rurais com até
4 módulos fiscais e, como média propriedade, aqueles entre 4 e 15 módulos
fiscais.
Nesse contexto, para efeito de obtenção de financiamento do PRONAF, os beneficiários deverão residir na propriedade ou perto dela. Propriedades essas que para lavouras tenham até 4 módulos fiscais e para pecuária até 6 módulos fiscais, com 30% a 80% da renda bruta anual familiar advinda da exploração agropecuária ou não-agropecuária do estabelecimento, e mantenham até 2 (dois) empregados permanentes - sendo admitida a ajuda eventual de terceiros -, além de renda bruta anual de R$ 60 mil (com as exceções acima mencionadas para agroindústrias e granjeiros)5.
Esses limites do PRONAF aplicados às principais lavouras brasileiras, que
consideram as produtividades da terra e os preços médios paulistas - válidos
para o Centro-Sul brasileiro devido à integração dos agromercados -, mostram
enorme disparidade dos limites de área cultivada. Partem do piso de 1,25 hectare
para lavouras intensivas em terra e trabalho, como o tomate de mesa, até
atingirem o teto de 36,96 hectares para a soja, extensiva em terra e máquinas
(tabela 1).
FONTE: Cálculos dos autores Produto Média algodão em caroço Amendoim em casca Arroz em casca Banana Batata Café beneficiado Cana para indústria Cebola Feijão laranja de mesa laranja para indústria mandioca para indústria Soja tomate para indústria Tomate para mesa
Tanto assim que o Governo do Estado de São Paulo, nas operações do Fundo de
Expansão do Agronegócio Paulista (FEAP) - o Banco do Agronegócio Familiar -, usa
o critério de limite de renda agropecuária anual de até R$185 mil, que deve
representar no mínimo 80% da renda bruta anual total do beneficiário
(Deliberação CO 20 de 4 de novembro de 2004 - DOE de 9 de novembro de 2004).
Na mesma tendência seguida pelo Governo Federal para o PRONAF no caso da
agroindústria e dos granjeiros, com esse limite o Banco do Agronegócio Familiar
eleva o piso do tomate de mesa para 3,86 hectares e da soja para 93,03 hectares
(tabela 2), ampliando de forma significativa o contingente dos possíveis
beneficiários. Ainda assim, os resultados são pouco expressivos frente à
magnitude desse público potencial existente na agricultura paulista.
FONTE: Cálculos dos autores Produto Média Algodão em caroço Amendoim em casca Arroz em casca Banana Batata Café beneficiado cana para indústria Cebola Feijão Laranja de mesa Laranja para indústria Mandioca para indústria Soja Tomate para indústria Tomate para mesa
Já o FEAP (Banco do Agronegócio Familiar) apresenta comportamento irregular da
série histórica, com resultados mais modestos. Evoluiu de 1,4 mil contratos para
2,2 mil contratos (+62,7%) no período 1999-2004, com queda no triênio 2002-2004.
As aplicações cresceram de R$ 22,5 milhões para R$ 34,2 milhões (+51,2%), com o
aumento do valor médio dos contratos levando à redução do número de pessoas
beneficiadas no último triênio (tabela 4).
Esses valores, ainda que crescentes, colocam São Paulo em desvantagem em relação aos estados do Sul, que acabam absorvendo parcelas proporcionalmente muito mais elevadas dos financiamentos do PRONAF que a participação relativa das respectivas propriedades familiares. As dificuldades paulistas não estão afetas aos limites6, mas à consistência das organizações
de agricultores sulistas, cuja presença ativa visa proporcionar o acesso de seus
membros aos financiamentos disponibilizados e à ação pró-ativa mais efetiva,
eficiente e eficaz das políticas públicas de atendimento a esse público
estratégico da agricultura.
(1) Em R$, expressos em valores médios de 2004,
deflacionados pelo IPCA-FIBGE ANO 1999 2000 2001 2002 2003 2004
FONTE: Banco Central do
Brasil
(1) Em R$, expressos em valores médios de 2004,
deflacionados pelo IPCA-FIBGE Ano 1999 2000 2001 2002 2003 2004
FONTE: FEAP (Relatórios do
Governo do Estado de São Paulo)
Na declaração de 2005 (exercício 2004), esse piso foi de renda bruta de R$
12.696,80 (R$ 976,68/mês para 13 salários), com o que a renda bruta da
agricultura familiar, fixada em R$ 60 mil para configurar igual renda ao
agricultor (R$ 12.696,80), implica num custo de R$ 47.303,20 (78,8% da receita).
Noutras palavras, trata-se de limite para a agricultura familiar muito mais
favorável que o fixado para o assalariado urbano, tornando inaceitáveis da ótica
social proposituras de alargamento desses valores, ainda que a pretexto de
ampliar o público beneficiado pelo PRONAF.
Noutra comparação relevante, é interessante cotejar o limite de R$ 60 mil do PRONAF com os do Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte (SIMPLES), instituído pela Lei n° 9.317, de 5 de dezembro de 1996, que conceitua microempresa como 'a pessoa jurídica que tenha auferido, no ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 120 mil'. Interessante destacar que, no
seu artigo 5°, ao determinar os percentuais dos valores mensais devidos (na
redação dada pela Lei n° 10.034, de 24 de outubro de 2000), fixa a alíquota mais
baixa de 3% da renda bruta acumulada exatamente para as empresas que obtêm R$ 60
mil no ano-calendário.
Ora, trata-se assim de tratamento isonômico dado à agricultura familiar frente
ao seu similar para empresas em geral. Mais uma vez, tornam-se inadequadas
proposituras de alargamento desses valores fixados pelo PRONAF, quaisquer que
sejam as justificativas, sob pena de se criarem privilégios desnecessários. Se
alteração deva ser feita, que seja no mesmo bojo da legislação relativa à pessoa
física do Imposto de Renda e da microempresa do SIMPLES.
Em síntese, não há mais cabimento na adoção de limites de agricultura familiar
baseados em tamanho de propriedade, dado que o progresso técnico pulverizou os
pilares dessa concepção. Também não trazem contribuição substantiva em termos de
justiça social mecanismos de alargamento do valor máximo da renda bruta de R$ 60
mil do PRONAF, uma vez que criam privilégios inaceitáveis em relação aos
assalariados e às microempresas.
Na verdade, a agricultura familiar perdeu há muito o conteúdo de universalidade, não havendo como compatibilizar a agricultura de subsistência do agreste nordestino com a agricultura integrada de granjeiros sulistas ou mesmo de frutas e olerícolas do Sul-Sudeste7. Mais ainda, o
debate ensejado parece reviver a divergência dos anos 1960 sobre o caráter da
agricultura brasileira, se capitalista ou feudal, quando se deveria destacar a
inequívoca convergência dos pensadores em relação à constatação da coerção
extra-econômica que acabou por permear o caráter patrimonialista e conservador
da burguesia brasileira.
No caso em questão, trata-se de reconhecer e privilegiar os segmentos intensivos em trabalho em relação àqueles intensivos em capital, numa agricultura que, a despeito do significativo crescimento da produção e da renda nos últimos dez anos, perdeu 1,8 milhão de empregos. Ou seja, se cumpriu o seu papel de produzir bens e gerar riquezas, ficou a dever no seu papel também estratégico de regular o mercado de trabalho8.
Nesse sentido, as políticas públicas para a agricultura deveriam ter o seu foco
na distribuição de incentivos creditícios e fiscais progressivos em relação à
intensidade do emprego, com o que o próprio conceito de agricultura familiar
estaria resgatado na sua essência que não está na renda. Isso torna impróprio o
limite do PRONAF de considerar familiar apenas a agricultura com menos de 2
empregados permanentes. Mas esse é assunto para outro artigo.
Até lá, o sentido da discussão deve ser revertido a tempo de produzir efeitos consistentes, dada a necessidade do pleno emprego configurar-se numa preocupação tipicamente keynesiana, uma vez que, segundo o mais notável economista do século XX, no longo prazo todos estarão mortos.9
1MAPA: www.agricultura.gov.br
2 MDA: www.mda.gov.br
3 Trata-se dos trabalhos:
GHILHOTO, Joaquim J.M.et al PIB das Cadeias produtivas da agricultura familiar
da FIPE/USP/MDA e LOPES, Ignez V. Quem produz o quê no campo: quanto e onde da
FGV/CNA. Esses estudos estão cotejados no artigo de TAVARES, Elisabeth Visões
diferentes da agricultura familiar. Revista DBO. Fevereiro de 2005. pág 12.
4 Argumentação de BIANCHINI,
Valter O Universo da agricultura familiar e sua contribuição ao desenvolvimento
rural. MDA, Brasília, 2005. 14 pag. Mimeo.
5 Tomou-se apenas os limites superiores do publico
abrangido pelo PRONAF. Maiores detalhes ver Manual de Crédito Rural: Resolução
CMN 3223.
6 Isso sem
considerar o caráter declaratório do valor da renda agropecuária bruta para
efeito dos contratos do PRONAF, propiciando, tal como em outras políticas
públicas compensatórias com renda declarada pelo pretendente, inúmeras
distorções e imensa dificuldade de averiguação, dado o alto grau de
informalidade tributária e fiscal da agricultura familiar.
7 Essa perda de universalidade do conceito face às diferenças regionais e entre agricultores de uma mesma região é reconhecida pelos próprios formuladores das políticas para a agricultura familiar, como BIANCHINI, Valter...2005(op cit nota 2), ao aduzir que 'O PRONAF já vem trabalhando nesta direção, criando ações específicas para grupos de produtos e atividades específicas, tais como o PRONAF Florestal, o PRONAF Semi-Árido, o PRONAF Reservas Extrativistas e o PRONAF Pesca'.
8 Ver
sobre a questão recente do emprego na agricultura, GONÇALVES, José S.
Agricultura: crescimento e desemprego. IEA- APTA, São Paulo, Dezembro de 2004. (publicado na Homepage
http//www.iea.sp.gov.br).
9 Artigo registrado no CCTC-IEA sob
número HP-52/2005
Data de Publicação: 16/06/2005
Autor(es):
José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
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