O Grupo De Cairns E A Defesa Da Liberalização Do Comércio Agrícola Mundial

            O setor agrícola foi sistematicamente excluído das regras do General Agreement on Tariffs and Trade (GATT)1, através de derrogações ou exceções às obrigações, defendidas principalmente pelos Estados Unidos da América (EUA) e pela Comunidade Européia (CE). Cabe ressaltar que os temas relacionados ao setor entraram na pauta de negociações do GATT apenas a partir de 1963, durante a Rodada Kennedy, e que as recessões econômicas dos anos 1970s e 80s2 contribuíram para a manutenção das dificuldades para a regulação do comércio internacional desse segmento de produtos.
            O Grupo de Cairns foi criado em 19863, por iniciativa dos governos de Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, Chile Colômbia, Filipinas, Hungria, Indonésia, Malásia, Nova Zelândia, Tailândia e Uruguai, países exportadores de produtos agrícolas, como resposta ao quadro de protecionismo prevalecente e com o objetivo principal de promover um sistema global de livre mercado agrícola. Paraguai e África do Sul passaram a integrar o Grupo em 1997 e 1998, respectivamente.
            Desde a sua criação, conforme consta na Declaração da primeira reunião ministerial realizada na Austrália, expressou-se a firme defesa de um programa de liberalização de mercado, que deveria incluir a redução substancial do emprego de subsídios agrícolas internos e externos, a remoção de barreiras que dificultavam o acesso aos mercados e a eliminação, dentro de um período acordado, dos subsídios que afetavam o mercado agrícola internacional.
            Já em sua segunda reunião ministerial, realizada no Canadá em maio de 1987, os ministros expressaram os notáveis ganhos obtidos na Reunião Ministerial do GATT em Punta del Este em setembro de 1986, resultantes do papel crucial desempenhado pelo Grupo para colocar pela primeira vez a agricultura no centro da fase de negociações multilaterais então em curso.
            Além disso, reafirmaram que, para o êxito das negociações que se desenvolveriam em Genebra em 1988, seria necessário perseguir os seguintes objetivos básicos: a) inclusão de todas as medidas que afetassem negativamente o comércio agrícola; b) rápida e substancial redução nos níveis de apoio para a agricultura que distorcem o mercado internacional; c) estabelecimento de novas regras ou disciplinas no GATT para assegurar a liberalização do comércio agrícola; d) acordo sobre medidas específicas para reduzir as barreiras de acesso; e) redução de subsídios e todas as outras medidas que têm efeitos negativos sobre o comércio agrícola mundial; f) tratamento diferenciado e mais favorável aos países em desenvolvimento.
            Esses objetivos, quando comparados às regras que foram estabelecidas no Acordo Agrícola4, novamente evidenciam o sucesso obtido pela ação empreendida pelo Grupo de Cairns na defesa de um comércio agrícola mais livre e justo. No entanto, o Acordo Agrícola, embora tenha sido um avanço importante para a regulação do comércio de produtos agropecuários, esteve muito aquém dos resultados desejados. Como ponto negativo, foi apontado o método utilizado para a transformação de medidas não tarifárias em tarifas equivalentes, ou tarificação que, na prática, elevou a margem de proteção a níveis altíssimos, praticamente impedindo a exportação de produtos agrícolas fora das quotas com tarifas reduzidas. Além disso, os EUA e a União Européia conseguiram amenizar o efeito dessas exigências e manter suas políticas protecionistas para a pauta agrícola.
            Assim em 1996, e dez anos após sua criação, o Grupo reafirmou seu compromisso com a liberalização do comércio agrícola em sua 16ª reunião ministerial, realizada na Colômbia, e elaborou uma agenda compacta na qual defendeu que o programa de trabalhos preparatórios para a próxima rodada de negociações sobre agricultura - incluindo a abertura dos mercado (acesso), apoio interno e subsídios de exportação - deveria abranger, em cada área, os assuntos relacionados à implementação das concessões e compromissos da Rodada Uruguai; a melhorias na estrutura de regras e compromissos específicos já acordados; a mudanças na estrutura do Acordo Agrícola; e aos elementos do Acordo Agrícola que são considerados transitórios.
            Em 1997, quando da realização da 17ª reunião ministerial, e sob a constatação que o comércio agrícola permanecia seriamente distorcido e desigual, os ministros defenderam que o compromisso de liberalização multilateral para a agricultura era parte integrante e essencial para o desenvolvimento do sistema multilateral de comércio. Portanto, afirmaram que nas negociações agrícolas previstas para 1999 era fundamental prover uma estrutura em que os resultados para os temas subsídios à exportação, apoio doméstico e acesso ao mercado para os produtos agrícolas estivessem alinhados com as outras áreas do comércio mundial.
            Essa posição foi novamente referendada no comunicado da 18ª reunião ministerial realizada em abril de 1998. Foram definidas como estratégias a intensificação de suas relações e contatos com outros membros da OMC e, em particular, trabalhar para demonstrar que o processo de reforma agrícola traria benefícios para todos os países desenvolvidos e em desenvolvimento. Além disso, defendia-se que a revisão no Acordo de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias não deveria ser utilizada como pretexto para afrouxar as regras estabelecidas na Rodada Uruguai, com base em argumentos não científicos. Clara distinção deveria ser feita entre interesses baseados em considerações científicas e aqueles fundamentados em percepções subjetivas. Assim, a revisão deveria contribuir para definir procedimentos de notificação, prover maior transparência e evitar barreiras arbitrárias e injustificáveis para o comércio. Finalmente, dessa reunião resultou o documento 'Visão do Grupo de Cairns para as Negociações Agrícolas na OMC', no qual se afirma que completar a tarefa de liberalização do mercado agrícola significaria importantes benefícios em termos de crescimento econômico, promoção de bem-estar, segurança alimentar e desenvolvimento sustentável.
            A segurança alimentar seria obtida através de fontes mais diversificadas e seguras de oferta, ao mesmo tempo em que mais produtores - incluindo produtores pobres de países em desenvolvimento - também estariam aptos para responder às forças de mercado e a novas oportunidades de geração de renda na ausência da fronteira de competição de alimentos fortemente subsidiados. Além disso, restrições às exportações não deveriam ser permitidas se empregadas com o objetivo de forçar ruptura na oferta de alimentos no mercado mundial.
            Os integrantes do Grupo de Cairns também consideraram que, em muitos casos, os subsídios agrícolas e restrições de acesso estimularam a adoção/manutenção de práticas agrícolas que resultaram prejudiciais ao meio ambiente. Assim, reformar essas políticas poderia contribuir para o desenvolvimento de um ambiente sustentável no meio rural.
            Especificamente com relação à reforma do tema 'Subsídios à exportação', o Grupo declarou não haver justificativa para mantê-los e que, nas negociações de 1999, estas políticas discriminatórias e distorsivas do livre funcionamento do mercado deveriam ser totalmente eliminadas e proibidas, assim como, os créditos para exportação deveriam ser conduzidos sob uma disciplina internacional efetiva, evitando assim que os governos repassassem subsídios para tais créditos.
            Quanto ao 'Acesso ao mercado', as oportunidades para os produtos agrícolas, inclusive produtos com valor adicionado, deveriam ser baseadas nas mesmas condições aplicadas para outros produtos e serem comercialmente viáveis. As tarifas deveriam ser a única forma de proteção, a escalada tarifária deveria ser removida, os picos tarifários reduzidos e providenciado aumento substancial nos volumes comercializados sob cotas tarifárias.
            Sobre o ‘Apoio doméstico', o Grupo esperava, como resultado das negociações, uma maior redução na aplicação dos instrumentos com essa finalidade para os produtos agrícolas, sendo que todos os subsídios domésticos que distorcem o comércio deveriam ser eliminados.
            Apesar dos esforços empreendidos pelo Grupo, a Rodada de Negociações, realizada em Seattle em novembro de 1999, resultou em fracasso e nova Rodada teve início em Doha5.
            No ano de 2000, o Grupo de Cairns se manifestou através de sua 21ª reunião ministerial, declarando que o mercado agrícola mundial permanecia altamente distorcido pela manutenção dos subsídios à exportação, altos níveis de apoio doméstico e severas restrições para o acesso aos mercados (através do emprego de medidas tarifárias, sanitárias e fitossanitárias e outras não tarifárias). O total de apoio e proteção para os produtores nos países desenvolvidos estava em torno de US$ 360 bilhões, o que significou um retorno aos níveis dramáticos praticados na metade da década de 1980. Assim, as negociações agrícolas na OMC deveriam remover a descarada discriminação contra alimentos in natura e os processados. Os ministros argumentaram que políticas que causam danos para outros países não poderiam ser justificadas sob o pretexto de interesses não comerciais, como são os argumentos da multifuncionalidade6 da agricultura desenvolvidos por CE, Japão e Coréia.
            Em 2001, foram realizadas mais duas reuniões ministeriais: em setembro em Punta del Este e em novembro em Doha. Na reunião de setembro, os ministros mostraram preocupação com o apoio total dos países da OCDE, que estava em torno de US$ 1 bilhão por dia, e a proteção praticada via tarifas e barreiras não tarifárias, destacando o emprego de medidas sanitárias e fitossanitárias injustificadas. Nesse sentido, reiteraram a necessidade de: a) eliminação de todas as formas de subsídios à exportação; b) aumento substancial da abertura de mercado, através de profundo corte nas tarifas, nos picos tarifários, remoção de escalada tarifária e eliminação de medidas não tarifárias de cunho protecionista; c) maior redução no apoio à produção doméstica distorsivo de mercado, com vistas a sua eliminação.
            Também reforçaram que tratamento especial e diferencial em todas as áreas é necessário para atender as necessidades dos países em desenvolvimento. O Grupo entende que o acesso ao mercado num mundo livre dos subsídios é essencial para promover o desenvolvimento e eliminar a pobreza nos países em desenvolvimento.
            Em novembro, o foco da Reunião esteve nas distorções no mercado agrícola mundial, visto que têm como resultado perverso arruinar a possibilidade dos países em desenvolvimento de promover crescimento sustentado, obter o desenvolvimento e eliminar a pobreza.
            Na 24ª e última Reunião Ministerial, realizada na Bolívia em outubro de 2002, o Grupo denunciou que os subsídios e a proteção concedidos pelos países desenvolvidos a seus produtores rurais somaram US$ 310 bilhões em 2001. Nesse sentido, reiterou os seguintes objetivos a serem perseguidos nas negociações em curso: eliminação completa e imediata de todos os subsídios à exportação; substancial redução dos subsídios domésticos que provocam distorções no comércio; e substancial abertura de mercado para todos os produtos agrícolas – em particular os tropicais, cultivados nos países em desenvolvimento, e aqueles que possam substituir cultivos ilícitos. Finalmente, os ministros declararam que sem avanço na liberalização do comércio agrícola a Rodada de Doha corre o risco de fracassar.
 
 

1  Acordo assinado em 1947 e que tinha como objetivos a diminuição das barreiras comerciais e a garantia de acesso eqüitativo aos mercados por parte de seus signitários.
2  Essas recessões levaram os países desenvolvidos à celebração de acordos de restrição voluntária de suas exportações e ao aumento dos subsídios aos produtos agrícolas. 
3  Ano em que teve início a Rodada Uruguai, concluída em abril de 1994 em Marrakesch, que resultou na assinatura do primeiro Acordo Agrícola e na substituição do GATT pela Organização Mundial de Comércio (OMC).
4  Destacam-se entre outras: a) redução dos direitos aduaneiros de 36% para os países desenvolvidos, com uma redução mínima de 15% para cada um dos produtos, e de 24% para os em desenvolvimento, em um período de 6 e 10 anos, respectivamente, contados a partir de janeiro de 1995; b) 'tarificação' de todas as restrições não-tarifárias às importações; c) manutenção do acesso corrente por quotas tarifárias, para evitar o efeito de menor acesso aos mercados; d) queda de 21% das quantidades exportadas com subsídios, e de 36% das despesas orçamentárias destinadas para esta finalidade.
5  A firmação de novo Acordo Agrícola está prevista para janeiro de 2005.
6  Incluem entre outros a revitalização das comunidades rurais, a preservação do meio ambiente e a segurança alimentar.

Data de Publicação: 12/12/2002

Autor(es): Valquiria da Silva Consulte outros textos deste autor