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Apreciação cambial e déficit público: uma aplicação de teoria dos jogos
Desde o final de 2002 a taxa de câmbio no Brasil apresenta um contínuo processo de valorização. Quadro 1 - Matriz de Resultados do Jogo BACEN versus Governo1
Em linhas gerais, esse processo está relacionado ao fato de que há maciça entrada de dólar no País pelas contas de Transações Correntes e de Capitais. Em relação às contas de Transações Correntes, há expressiva entrada de divisas estrangeiras através da Balança Comercial. O aquecimento da economia mundial elevou a demanda por commodities, fato que impulsionou os preços internacionais desses produtos. Esse aumento de preços no mercado externo alavancou as exportações brasileiras, sendo que as commodities se destacam em relação à pauta de exportações do País.
Por outro lado, dado que o regime cambial no Brasil é de taxas de câmbio flutuantes, porém, com flutuação suja, isto é, o Banco Central do Brasil (BACEN) faz intervenções no mercado de câmbio com o objetivo de evitar expressivas variações cambiais, que afetem consideravelmente as tomadas de decisões dos diversos agentes econômicos, principalmente pelo lado dos investimentos. Observa-se que, apesar dessas intervenções, o real continua a se valorizar frente ao dólar. Basicamente, na tentativa de deter o avanço da valorização cambial, o governo emite títulos públicos, via BACEN, com taxas de juros superiores àquelas praticadas no mercado internacional.
Esse processo funciona da seguinte forma: 1) o BACEN vende títulos no mercado doméstico com taxas de juros relativamente mais elevadas que as praticadas no mercado externo na tentativa de esterilizar reais, os quais precisaram ser emitidos pela entrada de dólares decorrentes das exportações; 2) isso atrai o capital internacional, pois é mais vantajoso para os investidores estrangeiros terem em seus respectivos portfólios títulos que pagam maiores taxas de juros; 3) a entrada desse capital internacional se faz pela Balança de Capitais; 4) para tentar esterilizar essa nova entrada de capitais estrangeiros, o governo emite mais títulos e o processo continua. O resultado dessas operações é que a dívida pública eleva-se, o que obriga o governo a emitir mais títulos para financiar suas dívidas.
Basicamente, duas são as vertentes que discutem qual a melhor maneira de se deter esse processo continuo de valorização cambial.
A primeira vertente, denominada de 'Doença Holandesa', parte do princípio de que as exportações, principalmente de commodities, têm como resultado a entrada expressiva de dólares para a economia doméstica e, como conseqüência, há contínuo processo de valorização da moeda nacional frente à moeda externa, prejudicando a indústria doméstica de duas formas: 1) desestimulando as exportações, principalmente de produtos industrializados, pois os produtos domésticos ficam mais caros relativamente aos produtos externos e 2) aumentando as importações de produtos industrializados, acirrando a concorrência no mercado doméstico e prejudicando a indústria nacional. Nesse caso, segundo essa linha de pensamento, a saída seria aumentar o controle sobre a entrada de capitais externos, ou então, colocar tarifas para as exportações de commodities, fatores que inibiriam a entrada de dólares na economia e, como conseqüência, reverteria esse processo de valorização cambial até se atingir uma taxa de câmbio de 'equilíbrio'. Qual deveria ser o patamar para essa taxa de câmbio denominada de 'equilíbrio' é uma outra história.
A segunda vertente, a qual é denominada de 'Ortodoxa', parte do princípio de que a valorização cambial não é uma questão de política econômica, mas sim, de governo. De acordo com essa linha de pensamento, no longo prazo as intervenções do BACEN no mercado de câmbio são inócuas e, somente em determinados momentos, ou seja, no curto prazo, é que essas intervenções podem exercem algum efeito sobre esse processo de valorização do câmbio.
Essas intervenções no mercado cambial apresentam dois aspectos relevantes. Por um lado, eleva o montante de divisas do País em termos de acumulação de reservas, e isso é muito bom, pois reduz a vulnerabilidade do País a choques externos, por outro, esse processo induz prejuízos ao BACEN, pois essas reservas adicionais não podem ser simplesmente acumuladas, uma vez que não rendem juros. Normalmente, a alternativa consiste em aplicar esse excesso de reservas no mercado internacional, adquirindo títulos do governo norte-americano, considerado um investimento sem risco. No entanto, as aplicações em títulos do governo americano rendem juros inferiores àqueles que o governo brasileiro paga aos investidores estrangeiros detentores de seus títulos e, mais uma vez, o BACEN incorre em prejuízos. Portanto, para a vertente 'Ortodoxa' a melhor alternativa seria a redução do déficit público, pois essa atitude inibiria a necessidade de novas emissões de títulos para financiar a dívida pública.
A partir da vertente 'Ortodoxa', o objetivo deste artigo é elaborar um modelo com base em Teoria dos Jogos e verificar o que seria o mais adequado a fazer tanto em termos da questão cambial quanto do próprio déficit público.
Em primeiro lugar, é necessário frisar que os conceitos de Teoria dos Jogos serão apresentados de forma sucinta, pois esse é um campo muito vasto da teoria econômica. A Teoria dos Jogos estuda o comportamento estratégico racional, ou seja, analisa situações em que há interação estratégica entre os jogadores, isto é, onde a ação de um jogador afeta outro jogador e vice-versa. Por sua vez, os jogadores são agentes que tomam decisões e seus objetivos residem em maximizarem seus respectivos ganhos. As estratégias são as regras que determinam os planos de ações por parte dos jogadores. Payoff (ou recompensa) corresponde aos ganhos (ou perdas) dos jogadores após as jogadas. Matriz de resultados corresponde à forma matricial (ou estratégica) de representação do jogo. Estratégia dominante é a melhor escolha do jogador, 'independentemente' das ações dos demais jogadores. Equilíbrio é a combinação de estratégias na qual cada jogador escolhe a melhor alternativa possível. Equilíbrio de Nash é a combinação de estratégias onde nenhum dos jogadores tem incentivo a mudar 'unilateralmente' sua escolha.
O jogo em questão terá dois jogadores (BACEN e Governo), esse é um tipo de jogo simultâneo, isto é, um jogo 'em que cada jogador ignora as decisões dos demais no momento em que toma a sua própria decisão, e os jogadores não se preocupam com as conseqüências futuras de suas escolhas' (FIANI, 2006, p.50)1. As estratégias possíveis para cada jogador são as seguintes: Governo emite (aumenta dívida) ou não emite títulos (não aumenta dívida); BACEN intervém (compra dólares) ou não intervém (não compra dólar). A forma estratégica desse jogo está representada no quadro 1.
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| | (-2, -2) | | (-2, 0) |
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| (0, -2) | | (0, 0) |
1 As setas representam as preferências dos jogadores.
Fonte: Elaborado pelo autor.
Os valores das respectivas recompensas são no sentido de somente indicarem as preferências de cada jogador, ou seja, têm somente sentido simbólico (Quadro 1).
A análise do jogo pode ser conduzida pelas linhas ou então pelas colunas. Para iniciar a análise, nesse caso, serão utilizadas as linhas. Sendo assim, dado que o Governo emite novos títulos, se o BACEN compra dólares ambos perdem 2, ou seja, o Governo eleva sua dívida e conjuntamente aumenta o prejuízo do BACEN, pois as reservas também aumentam, por outro lado, dado que o governo emite novos títulos e o BACEN não compra dólares aumenta potencialmente2 a dívida do governo (-2), enquanto a recompensa do BACEN é nula. Portanto, nesse caso, para o BACEN é preferível não comprar dólares (setas no sentido da esquerda para direita), isto é, melhor não ganhar nada do que perder 2 (Quadro 1).
Ao se analisar a segunda linha, dado que o Governo não emite novos títulos (não aumenta dívida), se o BACEN compra dólares no mercado, ele perde 2 (prejuízo ao aumentar as reservas), no entanto, dado que o Governo não emite novos títulos (não aumenta dívida), se o BACEN não compra dólares (não eleva seu prejuízo). Nesse caso, sob o ponto de vista do BACEN é preferível não comprar dólares (setas no sentido da esquerda para direita), ou seja, é melhor não ganhar nada do que perder 2 (Quadro 1).
Agora, analisando-se as colunas, têm-se as opções do Governo. Na primeira coluna, dado que o BACEN compra dólares, caso o Governo emita novos títulos ambos perdem 2, ou seja, aumenta a dívida do governo e eleva-se o prejuízo do BACEN. Por outro lado, dado que o BACEN compra dólares, se o Governo não emite novos títulos, o BACEN perde 2, porém, o ganho do Governo é nulo. Portanto, para o governo é melhor não ganhar nada do que perder 2, sendo assim, o sentido das setas é de cima para baixo (Quadro 1).
Finalmente, na segunda coluna, dado que o BACEN não compra dólar, se o Governo emite novos títulos sua dívida aumenta (perde 2), enquanto o BACEN tem ganho nulo. Por outro lado, dado que o BACEN não compra dólar, mas o Governo não emite novos títulos, o ganho de ambos é nulo, e para o Governo, é mais vantajoso não ganhar nada do que perder 2, sendo assim, o sentido da seta é de cima para baixo (Quadro 1).
A partir do quadro 1, dois resultados podem ser observados. Em primeiro lugar, tanto o Governo quanto o BACEN possuem estratégias dominantes. Para o BACEN, a estratégia dominante é não intervir no mercado de câmbio, enquanto para o Governo, a estratégia dominante é não emitir novos títulos. Outro ponto relevante é que há equilibro de Nash, o qual se encontra na célula em amarelo no quadro 1, pois é nessa célula que as setas horizontal e vertical convergem simultaneamente.
Portanto, a partir desses resultados, dado que neste momento as reservas internacionais se encontram no seu maior patamar em níveis históricos, não há sentido de o BACEN intervir constantemente no mercado de câmbio para tentar deter o processo de valorização do real em relação ao dólar, pois além de serem inócuas, essas intervenções induzem prejuízos cada vez mais acentuados nas contas do próprio BACEN. No entanto, em função do acúmulo de reservas, que permite certa tranqüilidade ao País para enfrentar algum possível choque externo, o Governo poderia repensar sua estratégia tanto em relação à política fiscal quanto monetária, isto é, racionalizar os gastos públicos, pois a carga tributária do País é uma das mais elevadas do mundo, fato que inibiria a emissão de novos títulos públicos e conseqüentes quedas das taxas de juros domésticas, tornado-as menos atrativas em relação aos juros externos, que desestimulariam a entrada de capital externo, o que resultaria em menor pressão sobre a taxa de câmbio, em termos de valorização de real relativamente ao dólar.
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1FIANI, R. Teoria dos jogos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. 388 p.
2Uma vez que esses títulos estão em poder do BACEN, não necessariamente precisam ser utilizados para aquisições de divisas, pois podem ser empregados unicamente para atender aos objetivos da política monetária. Sendo assim, neste último caso incorre-se em aumento da dívida pública, também.
Palavras-chave: déficit público, teoria dos jogos, taxa de câmbio.
Data de Publicação: 10/12/2007
Autor(es): Mario Antonio Margarido (mamargarido@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor