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Biocombustíveis e Insegurança Alimentar
A produção mundial de etanol, em 2005, foi de 9,66 bilhões de galões. O Brasil contribuiu com 45,2% desse volume, produzindo álcool a partir da cana-de-açúcar, e os Estados Unidos 44,5%, a partir do milho. Esses números são encontrados em interessante artigo de C. Ford Runge e Benjamin Senauer1. Argumentam que no final de 2006 havia 110 refinarias de etanol em operação e 73 em construção nos Estados Unidos e que, no final de 2008, quando estiverem em operação, a capacidade americana de produção de etanol será de 11,4 bilhões de galões por ano. Esses números impressionam e podem sugerir a seguinte indagação: o interesse americano pelo etanol em particular, e pelos biocombustíveis em geral, estaria associado a preocupações com o meio ambiente ou com os preços elevados do petróleo? A preocupação com o meio ambiente parece não ser prioritária para os Estados Unidos que não ratificaram o protocolo de Kyoto2, o que os desobriga de reduzir as emissões de Gases do Efeito Estufa. A intenção declarada de reduzir esses gases em 7% durante o período que vai de 2008 a 2012 não tem a mesma força do compromisso assumido pelos signatários que ratificaram o protocolo. As declarações das autoridades americanas deixam claro que a principal intenção dos estímulos à produção de biocombustível é reduzir a importância do petróleo na matriz energética do país3. De qualquer maneira, sejam preocupações de natureza estratégica ou ambiental, o fato é que o interesse americano pelo etanol induziu uma onda de otimismo no Brasil, que percebe uma ótima oportunidade de negócios: além do domínio da tecnologia na produção de álcool, que remonta ao Proálcool criado em 1975, é reconhecida a superioridade da cana-de-açúcar em relação ao milho na produção de etanol4. Ao lado da euforia aparentemente justificada pelas oportunidades de negócios que os biocombustíveis abrem, algumas ponderações acerca dos riscos econômicos e sociais que essa opção causa precisam ser feitas. O trabalho dos professores Runge e Senauer é um bom exemplo: manifesta a preocupação com a insegurança alimentar, questionando de que maneira o crescimento das chamadas culturas energéticas pode piorar a situação das pessoas cronicamente famintas no mundo5. Os autores argumentam que a disseminação do uso de biocombustíveis elevará os preços dos alimentos. Citam previsões para 2010 e 2020 do International Food Policy Research Institute (IFPRI), de Washinghton D.C., mostrando que, se os preços do petróleo continuarem subindo, o que parece ser a tendência, os preços de importantes produtos agrícolas se elevarão nas proporções bastante significativas. Mandioca é o caso mais grave, pois é a base da alimentação das populações mais carentes do mundo, e seus preços seriam elevados em 33% em 2010 e 135% em 2020 (Tabela 1).
Tabela 1 - Previsão de Aumento dos Preços de Produtos Agrícolas, 2010 e 2020
Produto | | |
| | |
Milho | | |
Oleaginosas | | |
Trigo | | |
Mandioca | | |
Fonte: IFPRI.
O efeito dessa alta de preços seria devastador sobre as camadas mais pobres da população mundial. Os professores comparam resultados de um estudo de 2003, prevendo que os preços dos alimentos se mantivessem constantes, com a suposição de que essas previsões do IFPRI se realizem. No primeiro caso o número de pessoas cronicamente famintas declinaria de 812 milhões para 625 milhões em 2025, se a produtividade agrícola crescesse o suficiente para manter os preços dos alimentos estáveis.
Se a maior demanda por biocombustíveis fizer com que as previsões do IFPRI se concretizem, o número de pessoas que cairiam abaixo da linha de insegurança alimentar poderia aumentar em 16 milhões para cada aumento percentual no preço dos alimentos. Isso significa que em 2025 haveria 1,2 bilhão de pessoas cronicamente famintas no mundo, quase o dobro do número previsto para a situação de estabilidade dos preços.
Como o Brasil é um dos mais fortes participantes no mercado de biocombustível, sua contribuição para a construção desse cenário mundial não será desprezível e os reflexos sobre os brasileiros mais pobres podem ser grandes também. No passado a implementação do Proálcool, que teve início em 1975, provocou grande disputa pelos fatores de produção em detrimento das culturas tradicionais, particularmente das voltadas para o mercado interno. Se não houve grande impacto nos preços dos alimentos, há que se levar em conta que a economia brasileira era fechada, o governo administrava os preços dos produtos considerados relevantes e se convivia com um ambiente inflacionário que, em boa medida, mascarava os sinais do mercado.
Atualmente, a conjuntura é outra: o aumento na demanda por biocombustíveis se coloca num ambiente de abertura, desregulamentação dos mercados e estabilidade econômica. Se resultar em aumento dos preços dos alimentos no mercado interno, as importações não mais serão válvulas de escape para os problemas de abastecimento, dado que o avanço dos biocombustíveis não se restringe às terras brasileiras, mas poderá implicar mudanças radicais na alocação de recursos em todo o mundo.
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1Este artigo foi desenvolvido a partir do trabalho de RUNGE, C. F.; SENAUER, B. How biofuels could starve the poor. Disponível em: <http://www.foreignaffairs.org/20070501faessay86305c-ford-runge-bejamin-senauer/how-biofuels-could-starve-the-poor.html>. Acesso em: 19 jun. 2007. Em 2005 a produção mundial de etanol foi de 579 mil barris/dia, sendo que a participação brasileira foi de 47,8% contra 43,9% dos Estados Unidos (SANT’ANNA, A. A.; COSTA, M. M.; ALBERNAZ, A. U. S. Estratégias ambientais para o desenvolvimento brasileiro. Brasília: BNDES, 15 jun. 2007. (Visão do Desenvolvimento, n. 31). Para 2006 a Agência Internacional de Energia (AIE) projetou produção de 863 mil barris/dia (VIEIRA, D. Produção mundial de biocombustíveis deve dobrar até 2012. Portal Exame, jul. 2007. Disponível em: <http://portalexame.abril.com.br/ae/economia/ m0133261.html>. Acesso em: 18 jul. 2007.).
2Pelo Protocolo de Kyoto os países industrializados se comprometeram a reduzir a emissão de gases de efeito estufa em 5,2% entre 2008e 2012, em relação ao ano-base de 1990.
3Essa postura ficou bem clara na recente visita do presidente George W. Bush ao Brasil.
4Souza e Andreoli (2007), por exemplo, mostram que o balanço de energia para converter milho em etanol é negativo. Para cada 1 kcal de energia fornecida pelo etanol, gasta-se 29% a mais de energia fóssil para produzir o álcool, enquanto para a cana-de-açúcar o resultado é positivo: 1 kcal de energia consumida para produção de etanol, há um ganho de 3,24 kcal de etanol produzido (SOUZA, C.; ANDREOLI, S. P. Cana-de-açúcar: a melhor alternativa para conversão da energia solar e fóssil em etanol. Economia e Energia, n. 59, dez. 2006 - jan. 2007. (Texto para discussão, n. 59). Disponível em: <http://ecen.com/eee59/eee59p/cana_melhor_conversorl.htm>. <http://www.foreignaffairs>. Acesso em: 18 jul. 2007.).
5Famintas são as pessoas que não ingerem diariamente a quantidade necessária de calorias para que se mantenham saudáveis e produtivas.
Palavras-chave: biocombustíveis, segurança alimentar, etanol.
Data de Publicação: 27/07/2007
Autor(es):
Cesar Roberto Leite da Silva (crlsilva@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Maria Auxiliadora de Carvalho (macarvalho@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor