Febre aftosa em estados vizinhos: SP perde nas exportações por falha alheia

            As limitações na capacidade de realização de políticas públicas pelas unidades da federação brasileira consistem numa constatação inquestionável. Recortes setoriais, como a agricultura, permitem concluir pela inexistência, dentro do pacto federativo vigente, de possibilidades concretas de ações pró-ativas no espaço estadual, da ótica de que sejam capazes de transformar a realidade.
            Quase a totalidade dos instrumentos tributários - fiscais, financeiros e normativos - estão dispostos em agências federais como resultado de um processo de contínuo esvaziamento das competências estaduais de execução de políticas setoriais. Isto ocorre em função do processo concentração do poder de formular e executar medidas, iniciado nos anos 1930 e que atinge seu ápice no momento atual.
            O Estado de São Paulo, como unidade da federação que ponteou o processo de transformações econômicas derivadas da industrialização, está entre os que mais sofreram com essa fagocitose de competências e de possibilidades financeiras de realizar políticas públicas setoriais. Verbas e competências concentradas em instituições federais peiam as ações estaduais.
            Para ficar no plano da agricultura, o governo paulista já teve instrumentos de uma política consistente de seguro agropecuário até que a centralização da década de 1960 levou ao desmonte dessa ação. Além disso, as políticas federais simplesmente ignoram a existência da portentosa estrutura pública de pesquisa, defesa e extensão rural construída pelo Estado. Dada a concentração de poder do pacto federativo atual, há um estreito espaço para essas políticas estaduais estratégicas destinadas à agricultura.
            Isto porque não apenas competências normativas e operativas foram avocadas pelo governo federal como também os recursos das receitas públicas concentram-se na instância federal, e não retornam em proporção razoável ao Tesouro estadual. O problema seria menor se as agências federais dessem conta de ensejar ações que sustentassem de forma adequada a agricultura paulista. Mas isso não ocorre e a penalização desse segmento estratégico da economia estadual mostra-se inquestionável porque visível.
            No momento em que se discute a mudança no pacto federativo, há que se colocar a questão da defesa sanitária. Trata-se de ampliar proposta de descentralização do poder de legislar sobre questões de segurança para as unidades da federação, pois se tem nítido que no plano nacional uma fragilidade das políticas de segurança pública está na fiscalização das fronteiras nacionais contra o tráfico de drogas e de armas, entre outras ocorrências. Os contornos são similares e a necessidade de rediscussão do pacto federativo nesse campo tem o mesmo conteúdo e a mesma magnitude.
            A crise decorrente da detecção dos focos de febre aftosa no Mato Grosso do Sul coloca isso bem à mostra. A enorme fronteira seca entre aquela unidade da federação e países vizinhos está no âmago do problema. Tal como no caso das drogas e das armas, a entrada não-controlada de animais sem certificação sanitária, e com ausente controle alfandegário, consiste na causa principal da ocorrência dos focos de febre aftosa.
            E mais: esse episódio revelou a imensa fragilidade do pacto federativo. É que inexiste um arcabouço regulatório, na forma de Código Nacional de Defesa Sanitária, que fixe as linhas mestras dessa ação pública no sentido estrutural e que defina as competências das instâncias federativas (municipais, estaduais e federais), bem como os mecanismos de compensação para minimizar os impactos econômicos e sociais dessa ocorrência.
            O foco original foi detectado em Mato Grosso do Sul, mas houve uma extensão de seus efeitos sanitários para o rebanho paranaense que havia recebido animais daquela unidade da federação. Mais do que isso, as decorrências econômicas desse fato sanitário foram mais amplas e atingiram em cheio a pecuária paulista, com expressivas perdas de renda.
            E as ações federais se resumiram a aplicar recursos no controle do foco em Mato Grosso do Sul, sem quaisquer medidas reparatórias para as perdas nos rebanhos paulista e paranaense, seja no nível privado seja no espaço público. Não houve a destinação de aportes adicionais de recursos federais para que essas unidades da federação adotassem medidas preventivas ou de mitigação dos impactos econômicos perversos.
            Isso decorre da fragilidade do pacto federativo brasileiro tanto no campo da defesa sanitária quanto em outros assuntos relevantes da segurança do público. Segurança sanitária consiste num elemento de garantia da vida e, por isso mesmo, em tópico estratégico dos direitos e das garantias individuais dos cidadãos. Mais ainda: como ficam os prejuízos econômicos para os pecuaristas paulistas? Há que mensurá-los e buscar uma forma de repará-los, pois a ocorrência do foco de aftosa, além da ineficiência da proteção por parte da estrutura técnica do Mato Grosso do Sul, decorre de inconsistência da ação precípua federal de vigilância das fronteiras nacionais.
            Os embargos à carne bovina brasileira, praticados por mais de meia centena de nações, afetaram em quase nada as exportações brasileiras do produto, mas produziram consideráveis prejuízos à pecuária paulista. E isso não será resolvido com mera suspensão das medidas de embargo por parte das nações importadoras. Exige-se, assim, que o governo federal promova alguma ação que estimule de forma efetiva a retomada das exportações da pecuária paulista.
            As exportações brasileiras de carne bovina (BR), mesmo com a detecção do foco de febre aftosa em Mato Grosso do Sul, mantiveram expressiva tendência de crescimento. Em 1997, foram obtidos US$ 475 milhões com a venda externa da carne bovina brasileira e, em 2000, este valor quase duplicou, para US$ 828 milhões. Nos anos seguintes, a geração de divisas advinda desse comércio alcançou US$ 4,0 bilhões em 2006, dada a incrível aceleração nas exportações, reflexo de outro problema sanitário, ou seja, a detecção do 'Mal da Vaca Louca' nos rebanhos de nações produtoras e importadoras (figura 1).
            No plano da exportação nacional, portanto, os impactos da detecção do foco de febre aftosa no Mato Grosso do Sul foram pouco expressivos. Mas quando são avaliados os impactos nas exportações das unidades da federação as perdas são expressivas para algumas delas, inclusive para o Estado de São Paulo, atingido pelo embargo das nações importadoras mesmo sendo um espaço territorial livre da ocorrência de aftosa nos seus rebanhos.


           

            Basta verificar que, após o episódio sanitário, as exportações paulistas (SP), que eram crescentes e acompanhavam a tendência nacional, estancaram esse processo, obtendo US$ 1,8 bilhão em 2004, patamar que se repete até 2006. Enquanto isso, os outros estados (OE), que haviam obtido US$ 469 milhões em 2003 (ano anterior à comprovação do foco), mostraram vertiginoso crescimento para atender aos mercados que embargaram a carne bovina paulista, alcançando US$ 2,2 bilhões (figura 1). Suspensos os principais embargos no final de 2006, nada indica que a realidade anterior seja recomposta na mesma magnitude para as vendas paulistas.
            A relação dessa perda de ritmo das exportações paulistas de carne bovina com o foco de febre aftosa do Mato Grosso do Sul fica nítida quando se desagregam as exportações de carne bovina em não-processadas (atingidas pelo embargo) e em processadas (não afetadas pelas medidas dos países importadores). As vendas externas brasileiras de carne bovina não-processada tiveram um aumento similar ao do total da carne bovina, saindo de US$ 234 milhões em 1997 para US$ 3,3 bilhões em 2006 (figura 2).
            Entretanto, as exportações paulistas, que haviam crescido de US$ 161 milhões em 1997 para US$ 1,4 bilhão até 2004, recuaram para US$ 1,3 bilhão em 2006. Enquanto isso, as vendas dos demais estados apresentaram um avanço vertiginoso, alcançando US$ 2,0 bilhões em 2006, simplesmente mais que quintuplicando nos últimos três anos, devido ao embargo da carne bovina não-processada paulista em razão do foco de aftosa no vizinho Mato Grosso do Sul. Isto, após crescerem em ritmo lento, de US$ 74 milhões em 1997 para US$ 387 milhões em 2004.
            No plano da exportação nacional, portanto, os impactos da detecção do foco de febre aftosa no Mato Grosso do Sul foram pouco expressivos. Mas quando são avaliados os impactos nas exportações das unidades da federação as perdas são expressivas para algumas delas, inclusive para o Estado de São Paulo, atingido pelo embargo das nações importadoras mesmo sendo um espaço territorial livre da ocorrência de aftosa nos seus rebanhos (figura 2). Noutras palavras, mesmo não tendo aftosa em seu rebanho, o Estado de São Paulo sofreu pesadas perdas nas suas exportações de carne bovina não-processada, cedendo mercado a outros estados.



            A solidez desse argumento fica mais concreta quando se avalia o comportamento das exportações paulistas de carne processada, que não foi submetida a embargo pelas nações importadoras. Se as vendas brasileiras desse produto cresceram de US$ 241 milhões em 1997 para US$ 725 milhões em 2006, no caso paulista o ritmo foi semelhante indo de US$ 145 milhões para US$ 527 milhões no mesmo período de tempo (figura 3). Assim, as exportações paulistas de carne bovina processada não foram afetadas na expressão de seu avanço absoluto e relativo em função da ocorrência de aftosa no Mato Grosso do Sul, mantendo-se a sua representatividade nacional.


 

            Isto fica nítido quando se avaliam os patamares da representatividade das exportações paulistas nos totais nacionais. Nas vendas externas totais de carne bovina, que cresceram de 64,4% em 1997 para 69,0% em 2004, as exportações paulistas mostram expressivo recuo enquanto percentual do volume nacional, atingindo apenas 45,8% em 2006, após os embargos decorrentes da constatação da presença de febre aftosa em unidade da federação vizinha (figura 4).



            Esses indicadores de proporcionalidade, quando contrastados com os níveis de agregação de valor ao produto carne, revelam os impactos deletérios na pecuária paulista do foco de febre aftosa em estado vizinho. A participação paulista nas exportações nacionais de carne bovina não-processada, e portanto submetida aos embargos das nações importadoras, recuou de 68,4% em 2004 para apenas 39,9% em 2006. Já na carne bovina processada e não embargada, o percentual apresentou ligeira elevação, indo de 71,7% em 2004 para 72,6% em 2006 (figura 4)
            E as perdas econômicas são expressivas, pois as vendas paulistas para o exterior da carne bovina não-processada deveriam ter atingido US$ 2,3 bilhões em 2006, embora tenha alcançado apenas US$ 1,3 bilhão nesse ano, caso houvesse sido mantida a proporcionalidade paulista nas exportações brasileiras desse produto (média de 68,8 % no triênio 2002-2004). Em números absolutos, as perdas paulistas com as exportações de carne bovina não-processada atingiram o expressivo montante de US$ 946 milhões em 2006 (figura 5).


         

            Interessante verificar que perdas de US$ 946 milhões, convertidas em moeda brasileira pela taxa média anual de câmbio (R$ 2,16/US$), equivalem a R$ 2,0 bilhões em valores correntes de 2006. Trata-se, pois, de uma perda de renda altamente significativa, que corresponde à metade do valor da produção de carne bovina derivado do rebanho paulista que alcança algo em torno de R$ 4,0 bilhões, segundo estimativas do Instituto de Economia Agrícola (IEA)1. Assim, são expressivos os impactos negativos na renda da pecuária paulista em função da corrência de foco de febre aftosa em Mato Grosso do Sul, dado que o atendimento às exportações brasileiras passou a ser progressivamente realizado por outras unidades da federação.
            Para agravar ainda mais a magnitude dos impactos negativos, há que se considerar que, após a detecção do foco de febre aftosa em Mato Grosso do Sul, a proporção dos embarques pelo Porto de Santos cresceu de 63,2% para 80,5% em valor e de 47,4% para 78,0% em peso. Enquanto isso, as participações das exportações paulistas de carne bovina resfriada e congelada (parcela majoritária da carne bovina não-processada) recuaram de 67,1% para 30,7% em valor e de 66,9% para 33,3% em peso (tabela 1).

Tabela 1 - Participações nas exportações brasileiras de carne bovina resfriada e congelada, embarques no Porto de Santos e do Estado de São Paulo, 2004-2006
 

Porto de Santos
São Paulo
Ano
% Valor
% Peso
% Valor
% Peso
2004
63,2
47,4
67,1
66,9
2005
68,3
56,5
60,0
60,3
2006
80,5
78,0
30,7
33,3

Fonte: IEA/APTA a partir de dados básicos da SECEX/MDIC

            Noutros termos, mesmo perdendo renda na exportação de carne bovina, o Estado de São Paulo continua sendo a plataforma de embarque para a carne bovina brasileira. Assim, além dos impactos negativos na renda setorial, passa a ter sua logística comprometida com o escoamento de produtos originários de outras unidades da federação que transitam pelo seu território e são embarcados para o exterior em porto paulista. E a manutenção da excelência da logística de transporte, em especial a de rodovias, implica em ônus a ser arcado pelas políticas estaduais de transporte que sequer recebem repasses da contribuição específica cobrada com essa finalidade, a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) incidente sobre combustíveis.
            Em suma, há dupla perda para São Paulo como decorrência da presença de febre aftosa no rebanho do Mato Grosso do Sul. E a fragilidade da ação federal, não apenas na fiscalização da fronteira como também na mobilização de esforços no sentido de prevenir essa ocorrência sanitária, causou enormes prejuízos para a economia paulista, sem que tenham sido tomadas medidas compensatórias plausíveis. Não se trata apenas de alocar mais recursos para reforçar as ações estaduais de defesa sanitária, o que não ocorreu, mas também de envidar esforços diplomáticos específicos para livrar São Paulo do peso das perdas por falha alheia.
            Tais fatos demonstram a dimensão do desafio de reestruturar o pacto federativo brasileiro também para a agricultura, comprometido que está pelos mecanismos de guerra fiscal e pela inexistência de um sistema regulatório consistente para qualidade de produtos e de processos, incluindo a defesa sanitária. Daí a necessidade de convergir iniciativas que solucionem esse problema estrutural que afeta duramente a agricultura, enquanto setor inerente à ocupação do espaço, e que acabam por gerar distorções alocativas sérias. Há que se defender com firmeza os interesses de São Paulo no plano nacional, em especial nesse caso de sua pecuária que está pagando pelo que não fez.2

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1 Ressalte-se que os preços da carne desossada, resfriada ou congelada, utilizados na avaliação da exportação, por serem preços de venda dos frigoríficos, são muito maiores que os preços recebidos pelos pecuaristas paulistas. Assim, a comparação realizada consiste em apenas formar um parâmetro para dar a dimensão econômica das perdas.
2 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-015/2007.

Data de Publicação: 05/03/2007

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Carlos Nabil Ghobril (nabil@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor