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Agenda para um PAC da agricultura: eliminação de riscos estratégicos
A agenda do debate para a construção das bases de um PAC para a agricultura, proposta inicialmente pelo professor Roberto Rodrigues, deveria ainda contemplar a eliminação dos riscos estratégicos1 que configuram os diversos matizes de insegurança na dinâmica setorial, afugentando o investimento.
Um primeiro risco é o denominado agronômico, decorrente de fatores climáticos e ambientais não-controláveis, além de problemas sanitários derivados de fatos imponderáveis como a introdução de agentes causais exógenos de qualquer natureza que afetem não apenas a condução das atividades agropecuárias, mas também o próprio patrimônio produtivo rural.
A resposta para esse risco consiste na estruturação de uma sistemática de seguro da renda agropecuária, segundo níveis consistentes com a escala eficiente para a competitividade da atividade segurada. Na agricultura norte-americana, o seguro rural representa a mais relevante política transversal para a sustentabilidade produtiva setorial, sendo que as políticas governamentais configuram mecanismos de elevado subsídio ao prêmio.
Na verdade, a segurança produtiva e a estabilidade da renda, que formam as expectativas consistentes quanto ao futuro, produzem redução dos spreads de risco cobrados pelos financiadores e maior confiança para que os agropecuaristas tomem as suas decisões de produção. A decisão de plantio ou de confinamento por parte de um agropecuarista uma vez tomada, dentro do ciclo produtivo de no mínimo 120 dias, não pode ser revertida sem prejuízos palpáveis em termos de custos variáveis já realizados.
É diferente de uma fábrica onde se pode parar a linha de montagem a qualquer tempo, eliminando-se custos variáveis com matéria-prima e mesmo com pessoal. Numa agricultura financiada por vendas antecipadas, e cuja prerrogativa de modernidade avança para a coordenação vertical via contratos (que podem ser até títulos financeiros), a segurança produtiva propiciada por um mecanismo consistente de seguro rural mostra-se estratégica.
E o subsídio ao prêmio deve ser o único e permanente subsídio público para a agropecuária de escala no Brasil. Isso garante maior harmonia e melhoria dos mecanismos de coordenação vertical na agropecuária, maior estabilidade e credibilidade de contratos e, com certeza, menores custos públicos que aqueles derivados da eqüalização de juros do crédito rural oficial e dos incorridos com as securitizações e renegociações da dívida rural.
Mas a edificação de um sistema consistente de seguro rural no Brasil exige que seja considerado um ponto fundamental que vem sendo motivo de tergiversação por parte das lideranças agropecuárias: o planejamento econômico da produção agropecuária. Na agricultura norte-americana, esse planejamento não apenas se mostra elevado como também efetivo. E não se trata de definir caso a caso, por agropecuarista, o que deva ou não deva plantar, nem de intervir nos tamanhos dos empreendimentos.
Trata-se apenas de ir mais além da aplicação do denominado conceito de zoneamento agro-ecológico. Esse parâmetro técnico serve fundamentalmente para definir, sob distintos padrões tecnológicos, em quais espaços geográficos se pode plantar com maior ou menor sucesso uma dada cultura agropecuária. Mas esse indicativo, ainda que básico, se mostra muito aquém do exigido para uma sistemática consistente e sustentável de seguro rural.
A produção agropecuária exige mais que plantar e colher bem, pois seu sucesso depende da existência de logística compatível com a colocação do produto obtido nos diversos mercados. Em termos econômicos, os custos de transação são tão relevantes quanto os custos de produção. Assim, uma sistemática de seguros rurais de sucesso exige que se realizem avanços para mais além do seguro agro-ecológico, adotando o conceito de zoneamento econômico. Isto implica definir os territórios em que os agropecuaristas poderão recorrer a esse mecanismo oficial de proteção de riscos climáticos e sanitários.
Mais ainda, por certo o zoneamento econômico de uma atividade, numa economia continental como a brasileira, deverá abarcar espaços territoriais de superfície inferior àquela factível no zoneamento agro-ecológico. Há que se ter rigidez nesse fato, bem como é fundamental para a regulação inerente a essa política pública que cada propriedade rural geo-referenciada tenha um histórico de ocorrência de sinistros por cultura ou fenômeno climático, de maneira que seja possível aprimorar o zoneamento econômico que deve privilegiar territórios mais aptos.
Isso implica na conformação de um cadastro cuja credibilidade e transparência estejam acima de qualquer suspeita. O que se quer aqui colocar é que a construção de um sistema de seguros rurais com sustentabilidade - e compatível com a segurança produtiva da agropecuária brasileira - exige mudanças no aparato estatal e aprimoramento da estrutura regulatória ainda não pensada no caso brasileiro.
Torna-se quase imperativo que seja determinada para uma instituição existente ou que seja construída uma agência específica para fiscalizar e gerenciar essa política de seguros rurais. Como no passado o Banco do Brasil foi a agência pública para o crédito rural.
Trata-se de avançar na construção da estrutura pública típica da idéia de Estado da Regulação, em que agências públicas devem manter o monopólio do poder de polícia (fiscalização) e atuar como garantidoras de direitos da cidadania. No caso, em função de que o cadastro das ocorrências de sinistros seja confiável e transparente, porque documentado.
A estruturação do instrumento legal em lei federal de seguro rural, constituindo fundo para subvenção de parte do prêmio, e a superação dos limites pela recente eliminação do monopólio do resseguro representam avanços importantes no sentido de uma política de seguro para a agropecuária brasileira. Mas se trata ainda de início de caminho. E isso está fora do PAC.
No conjunto dos riscos estratégicos, outro elemento fundante e relevante está no fato de que não há como pensar em medidas estruturantes para a agricultura brasileira sem tocar num ponto estratégico: o patrimonialismo fundiário.
Nesse ponto há que se fugir do lugar comum. Não basta nem celeridade nas decisões judiciais nem participar da efêmera discussão sobre os índices de produtividade com base nos quais estariam estabelecidos os limites para a desapropriação para fins de reforma agrária. Essa condição foi superada pelo desenvolvimento capitalista na agricultura e não mais está posta na agenda da agricultura brasileira. Daí a extemporaneidade das propostas de solução do conflito fundiário com base nos instrumentos jurídicos existentes forjados nos anos 1960.
A concepção de política fundiária está ultrapassada porque não rompe com a arcaica cultura patrimonialista agrária. Na verdade, não se coloca em questão a propriedade da terra nos termos como foi historicamente definida, pois preconiza que o patrimônio de uma pessoa seja desapropriado e passe a ser propriedade de outras. Há que romper com essa cultura arraigada em todos os quadrantes e grupos sociais da agropecuária brasileira.
O âmago do problema está no fato de que essa cultura patrimonial se estabeleceu sob as bases de um sistema cartorial ineficiente, que não apenas não garante o direito à propriedade como também enseja insegurança jurídica consubstanciada em diversas 'interpretações doutrinárias' emanadas nas decisões judiciais dos conflitos fundiários. Mais ainda, a propriedade da terra transforma o patrimônio fundiário num 'capital morto', uma vez que não manifesta a plenitude de suas potencialidades como lastro de um mercado de capitais consistente e como alavancagem do financiamento do investimento na agricultura. Além disso, propicia um mercado de terras não aderente à dinâmica do processo de transformação da agricultura.
Nesse sistema cartorial, a insegurança jurídica que permeia a propriedade da terra conforma um risco patrimonial inibidor do investimento. Em função disso, há que se superar esse fato rompendo como esse sistema cartorial como na agricultura norte-americana onde os títulos fundiários com execução extrajudicial conformam o principal papel do portfólio da imensa rede de bancos regionais de origem agrária. Nas principais nações capitalistas desenvolvidas, a qualidade dos títulos de propriedade em termos de mobilidade e segurança jurídica, porque inquestionável, representa um elemento fundante do mercado de capitais e da estrutura de financiamento.
Ressuscitar o 'capital morto' representado pela propriedade fundiária é essencial para o novo ciclo de desenvolvimento da agricultura. O primeiro passo para esse processo foi dado com a exigência de redefinição dos limites escriturais das propriedades rurais com base no seu completo geo-referenciamento, que abrangerá a totalidade dos imóveis rurais em alguns anos. O próximo passo consiste em criar um derivativo fundiário lastreado nesse direito de propriedade, com título líquido e certo transferível mediante endosso e negociável no mercado secundário.
A criação desse derivativo teria como contrapartida a garantia inquestionável do direito patrimonial da propriedade rural geo-referenciada nos termos da legislação vigente. Da mesma maneira, em razão de a agricultura brasileira não necessitar nos próximos dez anos de expansão horizontal da fronteira agropecuária, seria tomada a decisão de congelamento por esse período dos níveis de ocupação atual, para que seja regularizada a situação do amplo espaço territorial brasileiro já ocupado.
Isto porque o estancamento do processo de acumulação primitiva, com a expansão desenfreada da fronteira agropecuária que adentrou os limites da floresta amazônica, é fundamental não apenas da ótica ambiental, com redução das queimadas e derrubadas, como também para o adensamento do uso do solo no espaço territorial já ocupado.
Não faz sentido esperar que tal ocorra persistindo um extemporâneo processo de acumulação primitiva cujos 'ganhos patrimoniais' da abertura de uma propriedade com pecuária na fronteira sejam maiores em cinco ou mais vezes que a renda bruta média da pecuária de corte, notadamente na atividade de cria, nos territórios já ocupados. O reordenamento da ocupação territorial inclui necessariamente reduzir ao mínimo as possibilidades desse extemporâneo processo de acumulação primitiva na fronteira agropecuária.
Para tanto, a agenda de um PAC para a agricultura deve incluir ampla reforma institucional que envolva mudanças constitucionais e legais, revendo dispositivos alusivos à propriedade territorial, fundamentada num princípio de garantia de segurança jurídica plena da propriedade da terra, no mesmo processo que retire qualquer impedimento à execução judicial do penhor da mesma que encarece processos judiciais e reduz a capacidade de alavancagem de financiamento com base no patrimônio fundiário.
Interessante notar que travas constitucionais e legais, como a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, consistem em obstáculos que princípios envelhecidos interpõem ao desenvolvimento da agricultura, tendo o mesmo efeito da insegurança jurídica da não-garantia do pleno direito de propriedade dos imóveis rurais. O tamanho da propriedade rural não representa parâmetro para mais nada na agricultura moderna, e normas baseadas nesse axioma correspondem a um paradigma pretérito.
E esse axioma pretérito acaba penalizando exatamente atividades intensivas em terras, que em espaços rurais de pequena extensão permitem viver com elevadas rendas por unidade de área famílias com padrão de classe média. Têm-se aí as granjas avícolas, as estufas de olerícolas e flores, os cafezais adensados que produzem alta qualidade de bebida e os plantios adensados de frutas frescas. Todas são atividades de elevada renda e altos coeficientes de emprego por unidade de área. A grande dificuldade de ampliação de financiamento desses segmentos está exatamente no baixo poder de alavancagem de recursos dada a limitação relativa à impenhorabilidade.
Há um amplo universo de aspectos derivados dessa insegurança jurídica que peiam o poder de alavancagem de financiamento com lastro no patrimônio fundiário. Daí a necessidade de revisão conceitual dos elementos determinantes desse direito de propriedade, eliminando o risco patrimonial com a garantia de segurança jurídica associada ao desmonte do arcaico sistema cartorial. Isto abriria espaço para o mercado secundário de títulos fundiários que inclusive contribuirá para o próprio ordenamento da ocupação do espaço territorial pela agropecuária. E isso está fora do PAC.
Um terceiro risco estratégico consiste na generalização da gestão de riscos de mercado, não apenas de preços, mas também da prática de realização de produção contratada com base nos mecanismos de venda antecipada.
Essa estratégia parece estar na prioridade governamental, em especial para o amplo segmento agropecuário formado pelas atividades de escala. Na medida em que se reduzem a níveis insignificantes os riscos climático e sanitário, com o seguro rural, e patrimonial com base em garantia do direito de propriedade com a financeirização da riqueza fundiária, resta a necessidade de gerenciamento de riscos de mercado para conformar os instrumentos plenos de propiciar maior estabilidade à dinâmica agropecuária.
Assim, mais que uma aposta, as políticas federais deveriam ser instrumentalizadas, progressivamente, com base em atuações no mercado formal de derivativos agropecuários, por meio da compra de títulos lastreados nos produtos que se queiram incentivar em operações executadas em bolsas nacionais de mercadorias.
Importante salientar que o desmonte do atual problema crônico, representado pela dívida rural que assumiu magnitudes inaceitáveis como proporção do PIB setorial, implica na revisão do (e mesmo rompimento com o) velho mecanismo governamental de apoio à agropecuária com base no crédito rural nas suas várias modalidades. Ao financiar o custeio e mesmo o investimento e a comercialização com lastro em derivativos negociáveis no mercado financeiro, a gestão das políticas governamentais deixa de ser refém de complicados embates, envolvendo sucessivas renegociações da dívida que não encontram solução plena no horizonte de tempo projetável, sem que seja estancado seu crescimento pelo efeito bola de neve.
As operações de hedge não se limitam a transações com derivativos que financiem a produção, enquanto instrumentos contratuais de venda antecipada. Mas devem abranger, crescentemente, a proteção contra variações cambiais, que podem reduzir os preços internos de agropecuaristas que operam com mercadorias cuja formação de preços se dá no mercado internacional, devido à valorização da moeda nacional num regime de câmbio flutuante.
Uma das discussões mais acaloradas na economia brasileira, em especial na agricultura, consiste em que o setor estaria sendo penalizado pela taxa de câmbio sobrevalorizada. Também se utilizam, de forma recorrente, do argumento de que a origem da crise agropecuária de grãos e fibras deriva de que, na safra 2004/2005, os insumos tenham sido comprados a um dólar cima de R$ 3,00 e as vendas tenham se processado a um dólar abaixo de R$ 2,30.
Essa diferença teria produzido um elevado descompasso entre custos agropecuários e receitas que estaria na origem do elevado endividamento rural. Por certo, a valorização cambial teve algum efeito sobre o descompasso entre receitas e despesas agropecuárias, mas não consiste nem no único nem no mais importante fator a problematizar a rentabilidade das lavouras de grãos e fibras do Brasil Central.
Vejam que o petróleo, no mesmo período, saltou de US$ 24,00/barril para mais de US$ 70,00/barril e, mesmo com o menor repasse desse aumento de preços para o óleo diesel e outros derivados, ainda que em moeda nacional, as pressões de custos foram expressivas. E como os grãos e fibras dos cerrados são mega-lavouras intensamente mecanizadas, que utilizam intensamente insumos da petroquímica e exigem para chegar aos portos de exportação o transporte rodoviário também movido a diesel, os impactos na competitividade foram decisivos.
Ora, exatamente isso ampliou as possibilidades e elevou os preços internos dos biocombustíveis, em especial do álcool. Na medida em que os preços do petróleo apontarem para baixo, alteram-se os preços relativos, ampliando a competitividade estrutural das mega-lavouras de grãos e fibras. Mas, se apontarem para cima, os produtos da vez serão os biocombustíveis. E esse movimento dos preços relativos pareados no petróleo acaba por definir as competitividades específicas, ora dos grãos e fibras ora do álcool. Acompanhar esse movimento representa um imperativo para o agropecuarista.
Falta ainda discutir as mudanças no patamar do câmbio com a valorização da moeda brasileira sobre a rentabilidade da agropecuária. Nesse ponto, há que argumentar que, como pensam alguns economistas respeitáveis, a situação de valorização da moeda nacional produz a manifestação da denominada 'doença brasileira', numa alusão ao conhecido caso da 'doença holandesa'. Por ela, as exportações de commodities acabam produzindo crise generalizada, e mesmo perda de competitividade externa dos produtos de maior valor agregado pela transformação industrial, devido à valorização da moeda nacional.
Nesse sentido, acredita-se que a agropecuária brasileira tenha sido vítima de seu próprio sucesso. Isto porque, como a responsável pela construção e ampliação dos mega-superavits da balança comercial brasileira, a agricultura acaba por saturar o mercado cambial, gerando uma insuportável pressão para a valorização da moeda brasileira. Aceita essa premissa, há que ter nítido que a única forma de reduzir os impactos da valorização da moeda brasileira no curto prazo é, contraditoriamente, a redução dos superavits setoriais, não devendo ser esperadas novidades advindas dos responsáveis por essa política macroeconômica.
A agropecuária brasileira deve, dessa maneira, ter aprendido a lição do episódio recente de descompasso derivado da elevada valorização da moeda nacional, como na safra 2004/2005. Os efeitos em termos de endividamento teriam magnitudes muito menores se os agentes tivessem compreendido que a mudança do regime cambial, de fixo para flutuante, implicou na revogação de uma situação de 'hedge natural', e com isso há que se proteger de riscos cambiais fazendo hedge. Mas, para todo o mercado de derivativos em geral, é preciso buscar a redução dos custos operacionais, bem como fazer uma ampla campanha de popularização e educação quanto à importância das operações em bolsas para a gestão de riscos de mercados. E isso não está no PAC.2
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1Uma outra forma de risco estratégico, representada pelo risco sanitário inserido numa problemática mais ampla da regulação da qualidade de produtos e processos, também não tratada no PAC, já foi tratada de forma considerada consistente no artigo Defesa sanitária como parte da qualidade de produtos e processos, de José Sidnei Gonçalves, pesquisador do IEA-APTA, em agosto de 2006 (publicado em http//www.iea.sp.gov.br).
2 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-07/2007.
Data de Publicação: 06/02/2007
Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor