Agricultura paulista e mudanças na estrutura de representação

            A recente mudança na estrutura de representação da agricultura paulista - com o fortalecimento do Conselho de Agronegócios da Federação da Indústria do Estado de São Paulo (FIESP), formalizado em concomitância com um Departamento de Agronegócios que lhe confere base operacional - é relevante por reafirmar o sentido de que as transformações econômicas movem a história. Essa ocorrência assume mais consistência quando a presidência desse processo é conferida a uma das maiores lideranças da agricultura brasileira, marcada por ser dotada de visão avançada, nada menos que o ex-ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento Roberto Rodrigues1.
            Trata-se de avanço essencial para as transformações econômicas paulistas e brasileiras. Rompe com o velho equívoco do conflito agropecuária/indústria, ao assumir a necessidade da promoção da orquestração de interesses nas cadeias de produção como fundamental para a competitividade do principal segmento de economias continentais integradas: a agricultura. Representa por outro lado, em termos brasileiros, a primeira e mais consistente medida de avanço da estrutura de representação setorial para mais além da visão de agropecuária, limitada pelas divisórias das cercas das propriedades rurais.
            As transformações da agricultura no desenvolvimento econômico não apenas impulsionaram a geração de riqueza e de emprego setorial para mais além da agropecuária como também avançam para inseri-la de forma plena no processo de financeirização da riqueza. Nesse movimento, a emancipação de atividades, antes circunscritas ao campo, multiplicou fábricas tanto de bens de capital e insumos quanto de processamento e, no ritmo em que isso caminhava, a agricultura diferenciava-se da agropecuária, agregando valor ao produto da produção biológica.
            As culturas que antes dominavam as paisagens submergiram progressivamente em cadeias de produção, construindo mecanismos diversos de coordenação vertical que revolucionaram as estruturas de mercado e os processos de formação de preços. Em função disso, era nítido que esse avanço na estrutura de representação setorial deveria ocorrer em São Paulo.
            Uma leitura da realidade estrutural da agricultura paulista revela com nitidez essa necessidade de evolução na estrutura representativa. A composição da área agropecuária paulista em 2005 mostra que a expressiva soma de 4,9 milhões de hectares, dos 8,8 milhões de hectares de lavoura, é ocupada por culturas absolutamente integradas em estruturas agroindustriais, praticamente tornando sem sentido a noção de agropecuária (tabela 1).

Tabela 1 - Composição da área agropecuária, Estado de São Paulo, 2005

Atividades econômicas
Milhões de ha
%
Lavouras anuais e de mandioca
2,8
14,81
Lavouras perenes 
1,1
5,82
Cana 
3,8
20,11
Florestas econômicas
1,1
5,82
Lavouras totais
8,8
46,56
Pastagens
10,1
53,44
ÁREA AGROPECUÁRIA 
18,9
100
Fonte: Instituto de Economia Agrícola (IEA)

            É o caso da cana, cuja prevalência das canas próprias das usinas beira a totalidade, seja em cultivos nas suas próprias terras seja em terras ocupadas mediante arrendamento, cujos agropecuaristas existem quase que apenas formalmente para efeitos tributários. Por certo, há fornecedores de cana nas terras paulistas, mas absolutamente integrados nas estruturas agroindustriais. Tanto que até mesmo a cotação da cana para indústria virou um indicador do nível de açúcar total recuperável (ATR) pela eliminação da estrutura clássica de mercado enquanto ação de vendedores e compradores livres.
            Outro segmento constitui-se nas florestas econômicas da consistente cadeia de produção de madeira, celulose e papel, plantadas pelas agroindústrias desse segmento produtivo.
            As lavouras clássicas, ainda submetidas às vicissitudes da existência de mercado livre de produtores e compradores, no Estado de São Paulo, são minoritárias na produção vegetal. Ocupam com certeza menos que 3,9 milhões de hectares, pois não foram consideradas as produções agroindustriais verticalmente integradas para trás de outras espécies.
            Para manter-se enquanto expressão da maioria e formar a base da agropecuária paulista enquanto segmento da agricultura, há que se considerar a pecuária com os 10,1 milhões de hectares de pastagens. Ainda assim, parcela expressiva dessas produções agropecuárias apenas articula-se de formas distintas em cadeias de produção agroindustriais. Fica nítido, entretanto, que a produção agroindustrial com integração vertical para trás responde pela ocupação de significativa extensão da área agropecuária estadual.
            Para reforçar a importância da mudança na estrutura de representação enquanto um desenho mais consistente com a realidade da agricultura paulista, há que se verificar como a produção agropecuária paulista acessa os mercados. As exportações estaduais do setor, no período 1997-2005, mostram que os produtos processados representam em torno de 80% das vendas setoriais (mínimo de 72,4% e máximo de 84,8%), ficando os produtos básicos com 20% das receitas das transações com o exterior. Já nas demais unidades da federação brasileira esses índices giram em torno da metade para cada perfil de agregação de valor ao produto final (figura 1).

Figura 1 - Proporção de agregação de valor nas exportações de manufaturados dos agronegócios, produtos processados e básicos, São Paulo (SP) e Outros Estados (OE), Brasil, 1997-2005 

Fonte: IEA/APTA/SAA-SP, a partir de dados básicos da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (SECEX/MDIC)

            Fica também demonstrado que as cadeias de produção agroindustriais são expressivamente majoritárias nas exportações paulistas, conformando uma realidade muito distinta daquela passada em que vigia a prevalência da agropecuária. Também por esse ângulo há que se buscar novas concepções de representação setorial de forma consistente com a estrutura produtiva da agricultura moderna.
            Mas, ainda no tocante ao comércio externo, há outro aspecto que permite verificar mais um elemento de diferenciação da agricultura paulista. Trata-se da elevada participação estadual nas importações setoriais. Ainda que cadentes de 44,1% em 1997 para 37,5% em 2005, a participação mostra-se expressiva (figura 2).

Figura 2 - Importações da agricultura, São Paulo e Brasil, 1997-2005 

Fonte: IEA/APTA/SAA-SP, a partir de dados básicos da SECEX/MDIC

            O detalhamento da pauta de aquisições externas torna mais contundente o fato de que essas transações configuram um outro elemento de diferenciação estrutural da agricultura paulista. A participação das compras externas de bens de capital e insumos no total das compras setoriais cresceu de 30,1%, em 1997, para 39,3% em 2005 (figura 3). Isto deriva do fato de que as agroindústrias que configuram o núcleo endógeno do D1 do moderno padrão agrário, que abastecem imensas áreas de cultivo da agricultura inclusive de outras unidades da federação, estão instaladas em São Paulo.

Figura 3 - Importações de bens de capital e insumos da agricultura, São Paulo, 1997-2005 

Fonte: IEA/APTA/SAA-SP, a partir de dados básicos da SECEX/MDIC

            Portanto, em síntese, a conjunção dos três elementos estruturais da agricultura paulista revela a importância do novo espaço da representação setorial dentro da FIESP para a dinâmica econômica do Estado, reforçando a configuração da agricultura como principal setor de economias continentais como a brasileira. Isto porque na agricultura paulista essa realidade se mostra incontestável no fato de que:

a) a esmagadora maioria proporcional das lavouras estaduais é, na verdade, formada de produções agroindustriais verticalizadas para trás;
b) São Paulo se configura como agroindustrial-exportador pela proporção majoritária de produtos processados nas exportações; e
c) no território paulista está instalado o moderno núcleo endógeno da agroindústria brasileira de bens de capital e insumos da agricultura.

            Essa configuração estrutural exige que a representação seja conformada numa visão de cadeia de produção que atue verticalmente dentro da agricultura e não se limite à sua parcela minoritária na produção de riqueza representada pela agropecuária (em torno de 10% do total da agricultura paulista). Esse avanço, entretanto, coloca o setor privado paulista na vanguarda das mudanças institucionais, mas deve ser acompanhado de outros que promovam maior consistência da compreensão da dinâmica da agricultura estadual.
            Uma das idéias superadas de forma inexorável consiste na visão de diversificação agropecuária, típica do ruralismo arcaico porque fora de tempo e de lugar. Esta tinha sentido apenas nos anos 1950 e 1960 quando o grande desafio era incentivar outras lavouras e criações para que ganhassem expressão econômica e pudessem fazer superar o domínio cafeeiro.
            Na atualidade, o que se verifica é o processo inverso de especialização regional conformando um amplo mosaico de atividades geradoras de riqueza e empregos. Este ganha importância exatamente na sua dimensão regional - e mesmo local -, ao proporcionar às configurações regionais da agricultura paulista dinâmicas específicas que tornam impróprias abordagens genéricas, incompatíveis com a especificidade de cada cadeia de produção agroindustrial especializada2.
            Da mesma maneira, a conformação de vantagens de origem, como elemento de alavancagem, conduz à visão de potencialização das singularidades dos processos produtivos, resultando em mais um elemento determinante da especificidade regional.
            Essa especialização regional característica da agricultura paulista, ao contemplar lógicas específicas numa visão de cadeia de produção submetida à governança da agroindústria, não apenas faz superada a idéia de diversificação agropecuária como também promove o aprofundamento das especificidades ao conformar um intenso processo de complementarização produtiva. Isto porque, nas práticas de uso mais intenso do solo com rotação de culturas, emergem associações de complementaridade que solidificam a especialização regional.
            São exemplos as ações de integração de lavouras (grãos) com pecuária nos espaços de renovação das pastagens; de plantio de amendoim e soja nas áreas de renovação de canaviais; e de sofisticação das cestas de produtos ofertados com espécies e variedades complementares em termos de período de colheita nas lavouras modernas de frutas e olerícolas frescas.
            Outro ponto crucial, dentre muitos que se mostram superados pela realidade estrutural da agricultura paulista, é o conceito de defesa agropecuária ou de defesa sanitária como às vezes esse assunto é abordado. Por óbvio que se trata de questão crucial para a competitividade setorial das cadeias de produção da agricultura, em especial a exportadora.
            Mas para ser adequado a uma agricultura agroindustrial-exportadora como a paulista, nada mais reducionista e estreita estruturalmente que a visão de risco sanitário pensado tão-somente na lógica agropecuária. A dimensão da qualidade de produtos e processos, numa economia agroindustrial integrada como a paulista, não pode ser reduzida ao aspecto meramente sanitário, mas amplificado para a visão de segurança alimentar.
            Assim, a concepção de defesa da agricultura, numa visão de segurança alimentar, revela-se muito mais consistente com a realidade setorial paulista que a antiga visão de defesa sanitária e de risco sanitário que emergiu nos anos 1940. Essa era a visão do setor público estadual na reforma de janeiro de 1942, quando foi criado o então Departamento de Defesa Sanitária, extinto em 1969.
            A essencial regulação da qualidade de produtos e processos em economias agroindustriais integradas como a paulista contempla aspectos muito além da questão sanitária. Ou seja, depende de avanços fundamentais na concepção e institucionalidade de normas exclusivamente federais3 – nesse campo, os estados têm mera função complementar delegada. Tais normas ainda não foram debatidas de forma conveniente dada a prevalência no cenário político de posturas ruralistas de conteúdo pretérito que utilizam o conceito contemporâneo de agronegócios para sustentar práticas políticas e visões setoriais datadas de décadas passadas.
            Por fim, o desafio do desenvolvimento da agricultura paulista exige que sejam atualizados os conceitos usados na análise estrutural desse setor econômico estratégico. Muito se tem escrito e falado sobre a perda de importância orçamentária e de reconhecimento social das políticas estaduais para a agricultura, em especial as de cunho produtivo realizadas pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento.
            A sensação prevalecente entre os agentes do aparato público corresponde à de abandonados das prioridades governamentais e submetidos a orçamentos cada vez mais minguados. Isto ocorre tanto no plano estadual quanto no federal onde as funções clássicas das ações públicas para a agricultura (pesquisa, defesa e extensão), somadas, têm recebido algo em torno de 0,3% dos respectivos orçamentos.
            Por certo é muito pouco, mas somente mais recursos não resolvem. Há que se pensar em estruturas públicas mais consistentes com a realidade da agricultura dos agronegócios, organizada em cadeias de produção. Ao invés das pretéritas políticas agropecuárias, devem ser ensejadas políticas agroindustriais integradas, concebidas num horizonte conceitual muito mais amplo e compatível com a visão de agricultura estruturada em cadeias de produção. Isto porque passaram por processo de industrialização relevante, que determina outra dinâmica para o investimento que conduz o horizonte setorial "para mais além da estagnação" 4 quando outras regiões brasileiras sofrem com a crise5.
            O desafio para as autoridades paulistas está posto. O setor privado dá passos à frente ao conformar pioneirismo na mudança da estrutura de representação com a consolidação da ação para os agronegócios no seio da FIESP, a poderosa e operosa representante da indústria paulista.6

____________________
1 Ver Roberto Rodrigues toma posse em conselho da Fiesp. Disponível em http://www.estadao.com.br/ agronegocios/noticias/2006/out/09
2 Sobre a especialização da agricultura regional, ver GONÇALVES, José S. SP agroindustrial-exportador e especialização regional da agricultura. IEA-APTA, São Paulo, outubro de 2006 (publicado em http//www.iea.sp. gov.br)
3 Sobre qualidade de produtos e processos ver GONÇALVES, José S. Defesa sanitária como parte da qualidade de produtos e processos. IEA- APTA, São Paulo, agosto de 2006 (publicado em http//www.iea.sp.gov.br)
4 A discussão sobre a crise recente da agricultura brasileira revela bem essa compreensão equivocada sobre os elementos determinantes da dinâmica setorial, na medida em que, ainda que a crise contraditoriamente vem sendo colocada como de gravidade crescente e generalizada, as exportações setoriais continuam batendo recordes e alargando saldos comerciais. A citação entre aspas do texto é uma homenagem e uma lembrança de um clássico da literatura econômica brasileira, datado dos primórdios dos anos 1970. Esse texto mostrava as perspectiva de crescimento da economia brasileira à época , contradizendo a visão de alguns estruturalistas segundo os quais a economia brasileira estava estagnada. Suas conclusões se mostraram consistentes com os desdobramentos futuros nos anos seguintes à sua publicação. Trata-se do artigo TAVARES, Maria da Conceição & SERRA, José Mas allá del estancamiento, una discussion sobre el estilo del desarollo reciente de Brasil. Trimestre Econômico 33 (152), CEPAL, out-dez 1971.
5 Sobre a crise da agropecuária, ver GONÇALVES, José S. Crise atual da agropecuária brasileira: perfil, perspectivas e dilemas. IEA-APTA, São Paulo, setembro de 2006 (publicado em http//www.iea.sp.gov.br)
6 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-107/2006.

Data de Publicação: 16/10/2006

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor