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SP agroindustrial-exportador e especialização regional da agricultura
A estrutura da agropecuária paulista tem sido correntemente apresentada como marcada pela diversificação agropecuária. Isto porque, numa enorme gama de produtos, a participação estadual no contexto nacional se mostra relevante. Mas seria essa uma percepção correta da realidade desse segmento da agricultura praticada em São Paulo? _________________________
A resposta consistente é não, mas é fundamental aprofundar essa análise. Ao partir da incorreta percepção de uma agropecuária paulista diversificada, tem se projetado políticas públicas sem a consistência compatível com o avanço setorial. Isto tem ocorrido particularmente nas políticas governamentais estaduais das últimas décadas.
O conceito de diversificação agropecuária está datado historicamente para marcar o surgimento de outras atividades agropecuárias relevantes após a crise do café na década de 1930. Mesmo combalida, a economia cafeeira paulista dominou hegemonicamente o cenário da agropecuária estadual até a década de 1970. Tanto assim que as análises setoriais pontuavam a interessante subdivisão entre valor da produção com café e valor da produção sem café, exatamente para ressaltar a estruturação de novos segmentos produtivos1.
Exatamente os anos 1970 pontuariam a convergência de movimentos transformadores da produção agropecuária. Estes consistiam no avanço significativo da internalização do padrão agrário da 2ª Revolução Industrial por força da implantação das agroindústrias de bens de capital e insumos, das agroindústrias processadoras e das agroindústrias de alimentos; da radicalização da modernização agropecuária e da revolução da estrutura de mercados e dos processos de formação de preços pela emergência dos supermercados. Essas transformações econômicas mudaram a dinâmica da própria economia, mais do que alteraram a dinâmica da agricultura que ampliou a agregação de valor ao produto agropecuário2.
Essa transformação se processou de forma profunda na agricultura estadual. Elevou São Paulo da condição de primário-exportador à de agroindustrial-exportador, na medida em que cerca de 80% das vendas externas da agricultura estadual consistem de produtos processados. Com isso, o Estado diferencia-se das demais unidades da federação brasileira que se mantêm ainda primário-exportadoras3.
Assim, tiveram também de ser redatados os conceitos, dentre os quais o de diversificação produtiva. Avaliou-se a pertinência do seu uso ou redefiniu-se seu conteúdo à luz das mudanças, sob pena de difundir abordagens eivadas de viés pretérito, tendo como conseqüência proposições equivocadas de políticas públicas.
A inconteste modernidade estrutural e produtiva da agricultura paulista coloca limites ao conceito de diversificação agropecuária. As agroindústrias processadoras e, quando não, as logísticas de padronização e beneficiamento de produtos 'in natura', fundamentais agregadoras de valor ao produto agropecuário, implicam na configuração de um entorno de elevada especialização produtiva. Isto se mostra fundamental para a redução dos custos de produção e de transação, definidores da competitividade interna e externa.
Logo, as cadeias de produção modernas e competitivas, que formam o elemento marcante da agricultura paulista, produzem de forma inexorável a prevalência da especialização produtiva da agropecuária. E nem poderia ser diferente, ainda que persistam apostas, em especial do ruralismo arcaico4, na ultrapassada visão de agropecuária descolada do universo mais amplo da agricultura industrializada.
Essa forma de leitura da estrutura da agricultura consiste na necessidade de enxergar o agropecuarista dentro de um emaranhado representado pelas teias de agronegócios que envolvem as modernas cadeias de produção setoriais, com a perda de autonomia produtiva (tecnológica) e, consequentemente, econômica. Como fornecedor especializado de uma dada matéria-prima agroindustrial, não está ao seu dispor a alternativa de optar por distintas lavouras e criações disponíveis num universo marcado pela diversificação agropecuária.
As cadeias de produção configuram mecanismos de governança produtiva e econômica típicos de economias agroindustriais integradas. Assim, a busca da competitividade é uma aposta na construção da orquestração de interesses dentro da cadeia de produção da roça à mesa ('farm to table') implicando na submissão da parte ao todo. E nesse espaço de aprofundamento da especialização produtiva, que vem sendo acirrado na agricultura paulista, o maior cuidado está exatamente em obstar o espaço de posturas oportunistas do ruralismo arcaico.
Este, nas crises de um segmento agropecuário, aposta na exacerbação dos conflitos entre elos das cadeias de produção, ao invés de apostar na construção do interesse orquestrado para que o conjunto ganhe a necessária competitividade e com isso obtenha dividendos econômicos. Dessa forma, tenta reviver como farsa a velha pendenga entre lavradores e atravessadores dos anos 1950 e 1960, pontuada no antigo Relatório Klein & Sacks5, travestida para o agora nos conflitos entre lavradores e agroindustriais.
Montados numa falsa diversificação agropecuária, esses ruralistas arcaicos exacerbam postulações que levam a rupturas com perda de espaço econômico exatamente para os agentes produtivos mais dispersos, os agropecuaristas. Por apostar na farsa da repetição da história, tentando fazê-la rodar no sentido anti-horário, esquecem-se que essa nova ocorrência assume sempre a forma de tragédia.
É o caso da cadeia de produção sucroalcooleira que a despeito do Estatuto da Lavoura Canavieira dos anos 19506 produziu, pela exacerbação freqüente dos conflitos, uma estrutura produtiva com monumental verticalização. Dessa forma, praticamente inexiste um mercado de matéria-prima (a cana para indústria) tal a preponderância da agropecuária das canas próprias das usinas.
A postulação pela existência da diversificação agropecuária representa a única alternativa do ruralismo arcaico para justificar políticas públicas de desenho pretérito. Vislumbram nada mais além dos 'fios de arame das cercas das propriedades rurais', como se o mundo além delas, de complexas e modernas estruturas agroindustriais, fosse uma miragem.
Isto porque aceitar a existência da agricultura moderna, sustentada em uma agropecuária diferenciada regionalmente pela especialização produtiva, seria o mesmo que referendar a realidade que pretendem negar, da insignificância política enquanto atores sociais e da irrelevância e inconsistência de suas postulações pretéritas. Seria o fim para esse segmento arcaico assumir que a agricultura paulista somente pode ser pensada de forma consistente com base em políticas agroindustriais integradas.
A realidade, entretanto, mostra-se madrasta dessas concepções pretéritas. Como pode ser classificada de diversificada uma agropecuária como a paulista na qual metade da renda bruta é produzida por duas cadeias de produção - a sucroalcooleira e a de carnes - que em relação ao valor da produção da agropecuária paulista representavam 50,7% em 2002, 50,1% em 2003 e 52,3% em 2004 (tabela 1)?
Mais ainda, quando se visualiza a área agropecuária, duas gramíneas representadas pela cana e pelas pastagens ocuparam 79,3% do solo cultivado em 2002, os mesmos 79,3% em 2003 e 78,8% em 2004, o que reforça a noção de especialização produtiva (tabela 2). E exatamente essas duas ocupações produtivas (pastagens e cana) enfrentam-se mutuamente na concorrência por espaço desde o início dos anos 1970. A expansão canavieira deu-se preponderantemente sobre áreas de pastagens, envolvendo mudanças de milhões de hectares que transitaram de uma monocultura para outra.
Com esse registro histórico e com os números mostrados, já seria insustentável a defesa da idéia de diversificação agropecuária. Mas há outros equívocos derivados dessa noção pretérita que, pelo viés que provocam no desenho das políticas públicas, devam ser apontados.
A ocupação do espaço move-se ao ritmo da ampliação do espaço necessário à expansão de uma dada cadeia de produção, com dinamismo sustentado pela ampla e crescente demanda internacional pelos produtos gerados. A cana para indústria avança principalmente sobre as pastagens produtoras de carne bovina e leite (de menor renda por hectare). Mas também amplia seus plantios em áreas de matérias-primas (laranja) e outras atividades de superior renda bruta por unidade de área (tabela 3).
Interessante verificar que as culturas com maior renda bruta por unidade de área, como as frutas e as olerícolas, apresentam como característica exatamente a especialização regional, tal como as novas áreas de cafés adensados de qualidade. Dessa maneira, a tendência mostra-se no sentido da especialização em torno de poucas de atividades.
A especialização regional mostra-se consistente ao negar a concepção de diversificação agropecuária. Tanto que, ao olhar para a renda bruta por unidade de área, se observa que os maiores valores ocorrem exatamente nas Regiões Metropolitanas (RM) da Baixada Santista e de São Paulo, que se mostram muito superiores à media estadual e às verificadas nas Regiões Administrativas (RA) de São dos Campos e de Presidente Prudente, as menores da agropecuária paulista (tabela 4).
Esse desempenho deriva exatamente da especialização regional pela presença da banana (fruta) na Baixa Santista e das frutas e olerícolas do cinturão verde paulistano, bem como da pecuária de leite no Vale do Paraíba e da pecuária de corte em Presidente Prudente. Dessa maneira, promover o desenvolvimento regional mostra-se mais complexo que simplesmente apostar na ação pública genérica. Está na necessidade de construir uma opção de especialização regional consistente, seja pela agregação de valor ou expansão de atividades já existentes, seja pela criação de novo negócio agropecuário dinâmico.
Um equívoco corrente na argumentação da diversificação agropecuária consiste em não levar em conta os diferentes tamanhos territoriais das diversas regiões administrativas paulistas para cotejá-las a partir da ótica da composição das referidas agropecuárias. A RA de Presidente Prudente tem a maior área agropecuária (12,9%) mas um percentual muito inferior no tocante à renda bruta gerada (6,1%). Já na RM da Baixada Santista têm-se a menor área agropecuária (0,05%) mas um valor da produção proporcionalmente muito maior (0,17%) (tabela 5).
Esses indicadores reforçam a convicção de que inexiste no Estado de São Paulo a propalada diversificação agropecuária. Ao invés disso, ocorre consistente especialização regional.
Ao destacar as cinco principais atividades formadoras da renda bruta das agropecuárias regionais, verifica-se que em 11 das 15 RAs elas representam mais de 80% da renda total: Baixada Santista (99.6% sendo 96,8% de banana); Registro (97,5% sendo 80,2% com banana); Franca (88,4%); Barretos (87,7%); Central (85,5%); Bauru (84,8%); Presidente Prudente (84,0%); Marília (82,1%); Araçatuba (80,7%); São José dos Campos (80,7%) e Ribeirão Preto (80,4%). Mesmo nas quatro RAs cuja participação das cinco atividades mais relevantes forma menos que 80%, elas são maiores que 50%. E em todas elas verifica-se enorme especialização interna, como os espaços canavieiro, pecuário e da laranja em São José do Rio Preto (69,7%); do cinturão verde (limítrofe do espaço metropolitano paulistano) e das áreas canavieiras e de grãos de Campinas (63,4%) e Sorocaba(51,9%); e do cinturão verde de São Paulo (63,1%)(tabela 6).
Verifica-se assim que, na esmagadora maioria do espaço agropecuário estadual, a regra consiste na especialização produtiva em função de um segmento agroindustrial dinâmico.
Há que se destacar ainda a presença de um fenômeno distinto da diversificação agropecuária, mas que amplia a gama de atividades no mesmo espaço territorial. Trata-se da complementarização agropecuária dos sistemas de rotação de culturas, como os modelos de integração lavoura-pecuária que impulsionam a produção de grãos e fibras nas áreas de renovação de pastagens e de renovação de canaviais. Talvez o exemplo mais contundente disso seja o amendoim que representa 4,5% da renda agropecuária bruta da RA de Ribeirão Preto, que responde por 36,8% da renda estadual com essa lavoura (tabela 6).
Nesses casos, as atividades adicionadas ampliam a rentabilidade e reforçam a consistência de dada cadeia de produção, propiciando melhor uso das potencialidades do solo e redução dos custos operacionais da renovação. Por isso, são atividades complementares.
Na realidade paulista, ocorreu a formação de um imenso mosaico de agropecuárias especializadas, que pode ser visualizado ao se identificar, em cada RA, as atividades regionais com relevante participação estadual. Essa representatividade local, além da banana (67,5%) de Registro, envolve o abacaxi (84,1%) e o tomate de mesa (54,6%) de Araçatuba; o sorgo (40,2%) de Barretos; a goiaba de mesa (52,3%) da RA Central; a batata doce (72,5%) de Presidente Prudente; o alface (61,2%) e o caqui (53,0%) de São Paulo; o limão (51,8%) e a borracha (51,7%) de São José do Rio Preto; a mandioca para indústria (47,4%); o ovo (44,2%) e o trigo (40,9%).
Mesmo nas regiões em que pretensamente poderia ser detectada diversificação, a especialização se faz presente. É o caso da região de Campinas, com o figo de mesa (99,4%), a uva de mesa (40,5%) e o abacate (42,1%) mais ao sul da RA; o frango de corte (43,8%) no norte regional e a cebola (55,4%) e a batata (49,4%) nos municípios mais a oeste, formando especializações regionais características.
O mesmo se visualiza em Sorocaba onde o pêssego de mesa (54,7%) e o tomate para mesa (44,2%) concentram-se nos contrafortes da Serra de Paranapiacaba; o trigo (54,6%) e o feijão (53,1%) no Sudoeste Paulista; a batata (47,7%) nos campos gerais e o repolho (50,8%), a beterraba (44,2%), a abóbora (43,1%) e a abobrinha (42,4%) nos espaços sorocabanos próximos à capital (tabela 7).
Tem-se, assim, espraiada pelo território paulista uma imensa gama de agropecuárias regionais especializadas que conformam o aproveitamento de oportunidades sócio-edafo-climáticas diferenciadas. Estas conferem singularidade a esses espaços produtivos, mas situam-se muito longe da idéia de que isso conforme uma realidade de diversificação agropecuária.7
1 Faz-se aqui essa referência como uma homenagem ao Instituto de Economia Agrícola (IEA) que completou 64 anos, tendo surgido da Comissão de Estudos de Economia Rural organizada em 09/09/1942, formando uma das pioneiras e principais instituições de pesquisa em economia aplicada à agricultura do Brasil. A referência sobre o tratamento da análise da renda agropecuária bruta, destacando o valor da produção com e sem café, pode ser encontrada no clássico 'o livro vermelho': INSTITUTO DE ECONOMIA AGRÍCOLA -IEA. Desenvolvimento da agricultura paulista, IEA/SAA, São Paulo, 1972. 319p.
2 Para uma análise do processo específico da agricultura paulista, ver GONÇALVES, José Sidnei. Dinâmica da agropecuária paulista no contexto das transformações da sua agricultura. Revista Informações Econômicas 35 (12):65-98, 2005. Sobre como esse processo altera a dinâmica econômica, nunca é demais referir-se ao clássico do grande Ignácio Rangel, pioneiro dessa abordagem ao aduzir que nessa mudança 'as tarefas de elaboração dos produtos primários são realizadas em unidades especializadas (fábricas) o que implica em criar um setor novo, fora da agropecuária mas dentro do país. Esse setor é a manufatura ou no sentido corrente a indústria. É a criação desse setor que muda toda dinâmica da economia', em RANGEL, Ignácio El Desarollo Econômico en Brasil, CEPAL(ESCOLATINA), Santiago do Chile, 1954, 167p.
3 Sobre o perfil das exportações da agricultura paulista, ver GONÇALVES, José Sidnei. & SOUZA, Sueli Alves Moreira. Exportações dos agronegócios segundo o perfil de agregação de valor no primeiro semestre de 2006. IEA- APTA, São Paulo, setembro de 2006 (publicado na Homepage http//www.iea.sp.gov.br).
4 O ruralismo arcaico contempla a convergência de forças políticas que sempre lutaram contra as mudanças estruturais na agricultura brasileira e que configuraram a sociedade brasileira como uma sociedade de história lenta. Esse ruralismo de idéias pretéritas no passado dos anos 1950 lutou contra a modernização agropecuária, mais à frente nos anos 1960 lutou (como sempre) contra a reforma agrária, nos anos 1970 lutou (como luta ainda hoje) contra a hegemonia do capital agroindustrial. Assim pretende negar o óbvio e, por isso, é tão pernicioso quanto os reformistas que apostam numa reforma agrária como redenção do 'campesinato'. Ainda que tivessem havido na sua acepção histórica 'camponeses' no Brasil, o que é discutível, transformações industriais nas três revoluções industriais colocam como barreira à entrada a 'inserção pela ponta'. Isso significa que o esforço da internalização do novo padrão exige que os novos empreendimentos incorporem o ápice da base técnica disponível, em toda as suas acepções estruturais (gerenciais, tecnológicas, sociais e culturais), não havendo tempo para que se dê a chance de 'educar' uma imensa legião de assentados cujo domínio tecnológico corresponde ao de uma agropecuária rudimentar.
5 Trata-se de um clássico estudo doa anos 1950, segundo o qual agropecuaristas isolados eram explorados de forma impiedosa por atravessadores que produziam uma realidade de carestia no emergente espaço urbano. Ver: BRASIL, Comissão de Desenvolvimento Industrial. O Problema da Alimentação no Brasil: Relatório Klein e Saks, Rio de Janeiro, 1954.
6 O Estatuto da Lavoura Canavieira, concebido como instrumento de pacificação dos conflitos entre fornecedores e usineiros, determinava que parcela preponderante da matéria-prima fosse produzida por fornecedores. A história de conflitos o fez letra morta, com os fornecedores perdendo expressão. Mais recentemente esses conflitos deixaram de ser relevantes dada a preponderância das usinas. Sobre isso, interessante ver as reflexões de um de seus criadores em MIRANDA, V.C. Agroindústria açucareira: sonho e realidade. SIMPÓSIO SOBRE SÓCI0-ECONOMIA CANAVIEIRA(Anais), COPLANA/STAB/FCAVJ-UNESP, Jaboticabal, 1978. p 11-27.
7 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-104/2006.
Data de Publicação: 11/10/2006
Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor