Agricultura paulista, especialização regional e políticas públicas

           A questão da especialização regional característica da agricultura paulista toma contornos fundamentais, e quase sempre não percebidos, no desenho das políticas públicas estaduais1. Pode-se mesmo dizer que a não-compreensão adequada dessa dimensão e da estrutura da agricultura paulista está na raiz da fragilidade da presença do governo paulista em promover ações relevantes para o dinamismo setorial.
            Isto porque essa perspectiva contraria a atual estrutura de instituições públicas, conformando uma inapetência para atuar de forma decisiva na promoção do desenvolvimento setorial. Desde os anos 1930, vem ocorrendo uma progressiva concentração do poder de realizar políticas públicas para a agricultura no governo federal, deixando reduzido espaço para as estruturas estaduais2 que não operam o crédito agropecuário. Estas têm função apenas delegada na qualidade de produtos e processos (defesa agropecuária), não acessando de forma consistente, por demanda do Governo Estadual, os fundos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para investimentos privados.
            Dentre as instituições públicas estaduais para a agricultura, estrutura de elevada competência acumulada está nas unidades da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA). Com algumas modificações, a estrutura da APTA está desenhada desde o início dos anos 1960 quando foram lançadas as bases do processo de modernização agropecuária. Tais unidades têm uma concepção de institutos disciplinares que envolvem a agronomia, a zootecnia, a pesca e aquicultura e a tecnologia de alimentos.
            Para a exacerbação da produtividade como resultante do aprofundamento das especialidades, típica da exigência da modernização agropecuária, essa concepção mostrou-se consistente. Tanto assim que foi crucial para a concretização da internalização, nos anos 1970, do padrão agrário da 2ª Revolução Industrial, tanto em São Paulo quanto no Brasil. As contribuições foram fundamentais para o processo de transformação da agricultura, no qual a diversificação agropecuária, para mais além do café, consistia num objetivo econômico estratégico.
            Na verdade, existia uma 'divisão do trabalho inovativo', na medida em que a pesquisa pública paulista desenvolvia ou adaptava material genético e chancelava técnicas de controle de ocorrências de moléstias agropecuárias (pragas e doenças, etc). Isso nos vários segmentos da produção animal e vegetal, com ação ampliada na busca de agregação de valor (tecnologia de alimentos) e da racionalidade econômica (economia aplicada).
            Essa ação pública era chancelada pelo crédito rural subsidiado que ampliava a demanda por fertilizantes e defensivos fornecidos por parte das novas plantas das agroindústrias de bens de capital e insumos implantadas pelo II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND). O material genético público tinha como característica a elevada resposta em produtividade, com o uso mais intenso desses insumos, ao mesmo tempo em que também se adaptava progressivamente aos desígnios da mecanização de processos, da mesma forma que ensejava maior rendimento agroindustrial.
            Noutras palavras, a concepção da estrutura pública mostrou-se consistente com a diversificação agropecuária que levasse à diversificação de oportunidades e ampliasse o horizonte do padrão agrário em implantação. E o sucesso nesse caso foi absoluto, mensurado em elevados indicadores de taxa interna de retorno dos investimentos em pesquisa3.
            Porém, concretizado o objetivo de mudança estrutural e passadas mais de duas décadas de aprofundamento do padrão agrário da 2ª Revolução Industrial em São Paulo, o movimento setorial demanda outra concepção de organização pública para dar conta de empreender um novo ciclo dinâmico para a agricultura. Tomando por base apenas a agropecuária dentro do imenso complexo produtivo da agricultura paulista, as evidências empíricas acima apresentadas revelam três grandes eixos ordenadores, antagônicos à idéia de diversificação agropecuária.
            O primeiro deles identifica as duas grandes cadeias de produção especializadas de dimensão estadual, por estarem presentes em praticamente todo o território paulista. São elas a de cana para indústria e a da pecuária de corte. Conquanto exista competição por área para plantio entre essas duas atividades, a cana avança no sentido Oeste, embalada pela demanda internacional e nacional de açúcar e álcool, e a pecuária de corte se moderniza alavancada pelas vendas externas, pois a carne paulista representa 69% da carne brasileira exportada.
            Na cana para indústria, ocorre o limite do desenvolvimento da agricultura no qual a agropecuária quase inexiste como setor autônomo. Por ser a cana própria das usinas quase a totalidade da cana moída, se tem aí a plenitude da agroindústria como expressão de segmento econômico da agricultura.
            Na pecuária, que cede área de pastagens, não faz sentido dizer que 'o boi vai para outro lugar'4, pois há elevação da produtividade. Assim, o rebanho cresceu para 14 milhões de cabeças numa área de pastagens que recuou para níveis próximos a 10 milhões de hectares, havendo espaço para maior contração. Isto porque na outra ponta a integração lavoura (grãos)/pecuária não apenas complementariza atividades econômicas como eleva a produtividade da pecuária.
            O segundo deles identifica a existência de grandes cadeias de produção concentradas num conjunto de regiões, formando espaços especializados da agricultura de dimensão regional. Podem se citar a cadeia de produção de sucos cítricos no entorno de Bebedouro e em deslocamento para as áreas próximas a Bauru onde multiplicam-se novos laranjais; a cadeia de florestas econômicas que formam as grandes manchas de pinus e eucaliptus no Sudoeste Paulista e em outras regiões estaduais; os espaços produtores de grãos e fibras do Sudoeste Paulista, no entorno de Ituverava-Franca, e do Vale do Paranapanema (Assis), bem como outros espaços de lavouras; os cafés de Franca, de São Sebastião da Grama, de Piraju-Tejupá e de outras áreas da cafeicultura de qualidade; as diversas bacias leiteiras paulistas.
            Estas, dentre outras cadeias de produção, configuram espaços ocupados por atividades consistentemente especializadas, mas que assumem perfis regionais mais específicos. Assim, promovem singularidades do ponto de vista econômico que são fundamentais na definição das respectivas competitividades.
            O terceiro deles identifica a existência de uma enorme gama de pequenas cadeias de produção especializadas localmente. Conquanto tenham reduzido impacto na renda bruta agropecuária total, tais cadeias apresentam elevada importância local, seja porque desenvolveram complementaridade com uma grande cadeia de produção - caso do amendoim das áreas de renovação de cana ribeirão-pretanas - seja porque construíram estruturas produtivas locais modernas. São exemplos a banana do Vale do Ribeira, o abacaxi de Guaraçaí na Região Administrativa de Araçatuba, o feijão do Sudoeste Paulista, as frutas de Jundiaí-Campinas e as olerícolas do Cinturão Verde, para citar algumas.
            Em quaisquer desses casos, a especialização produtiva envolve um conjunto de especificidades fundamentais para a compreensão da realidade e a intervenção governamental consistente com vistas ao desenvolvimento econômico.
            Há dois elementos unificadores desses três eixos que condicionam a condição de sucesso das políticas públicas: a idéia de cadeia de produção e as especificidades decorrentes da especialização produtiva. Como não se é competitivo pela parte, a noção de cadeia de produção, ao negar autonomia à disciplinaridade, forja a necessidade de organizar estruturas estatais sob a ótica da multidisciplinaridade; isso tanto para as grandes cadeias de produção estadual quanto para as cadeias de produção regionalmente especializadas.
            Essa foi a grande mudança conceitual que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) trouxe à pesquisa pública brasileira desde seu surgimento nos anos 1970. Ou seja, forjou estruturas muldisciplinares tanto nas estruturas para atender grandes cadeias de produção (milho e sorgo, trigo e soja) quanto naquelas destinadas a focar as grandes regiões brasileiras (cerrados, trópico semi-árido, etc). Para isso, eliminou a quase dezena de institutos do antigo Departamento Nacional de Pesquisa e Experimentação Agrícola (DNPEA), não sem conflitos no enfrentamento do corporativismo5.
            No Estado de São Paulo, a estrutura não se modifica apesar de sua notória inadequação estrutural. A força do corporativismo se converge na tentativa de obstar avanços organizacionais, ao defender o retrocesso como no caso dos recentemente criados pólos regionais de desenvolvimento tecnológico e centros por cadeia de produção, novidades recentes da estrutura da APTA, ainda submergidos na anacrônica concepção disciplinar da pesquisa pública estadual.
            Todavia, uma gestão que pretenda ensejar dinamismo, no sentido de promover um novo ciclo de desenvolvimento da agricultura estadual, deve enfrentar esse desafio de superar o corporativismo latente, que se ancora numa falsa diversificação agropecuária. Os tempos recentes revelam progressiva perda de inserção institucional na realidade da agricultura estadual organizada em cadeias de produção.
            Mais ainda, deve se deixar de lado o espaço restrito da agropecuária dentro da agricultura e, em função disso, a tese superada de diversificação agropecuária. Há que se pensar a totalidade da agricultura paulista na sua dimensão real e pujante de moderno complexo produtivo.
            Uma leitura estrutural da agricultura paulista, em primeiro lugar, mostra uma agroindústria de bens de capital e insumos que fornece esses elementos de modernidade para as demais unidades da federação brasileira. Esta forjou um núcleo endógeno de excelência, principalmente em bens de capital como equipamentos agropecuários que colocam o Brasil em lugar diferenciado no contexto das agriculturas mundiais.
            Em segundo lugar, destaca-se a pujança das cadeias de produção da agropecuária enquanto estruturas modernas e especializadas. Em terceiro lugar, há a portentosa estrutura de agregação de valor agroindustrial pelas agroindústrias paulistas de processamento e de alimentos.
            Para mais além da agropecuária, tem-se aqui a necessidade de políticas agroindustriais integradas, numa agricultura que se move com base nos ciclos clássicos de aceleração e desaceleração sob o impacto dos investimentos, e não mais pelos anos maus ou bons decorrentes do 'melhor ou pior humor de São Pedro'.
            Além disso, há uma imensa desigualdade regional a ser enfrentada. A simples observação do mapa paulista, desenhado segundo os grupos do Índice Paulista de Responsabilidade Social (IPRS), revela que os municípios mais desenvolvidos estão localizados no eixo Anhanguera-Bandeirantes. Ou seja, concentram-se na linha que une os espaços metropolitanos da Capital e de Campinas e prolongam-se no sentido de Ribeirão Preto.
            Tal linha está cravando um verdadeiro precipício de distâncias estruturais para as demais regiões paulistas, em especial as localizadas mais no Sul/Sudoeste do Vale do Ribeira e do Alto Paranapanema. Esse mapa do IPRS revela níveis de desenvolvimento que respondem à concentração da ação pública de excelência como as universidades e instituições de pesquisa, dentre elas aquelas voltadas para a agricultura.
            O rompimento com esse ciclo reprodutor de aprofundamento das disparidades exige o redesenho institucional. No plano educacional, este está contido na interiorização das estruturas universitárias, como as unidades diferenciadas da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) e as Faculdades de Tecnologias (FATECs).
            Mas a agricultura - que deve ser o motor desse desenvolvimento estadual, com a redução das distâncias regionais, devido à sua expressão territorial - exige uma estrutura organizacional regional autônoma. Esta deve levar em conta a necessidade de desenvolver singularidades, ao mesmo tempo em que, numa visão de cadeia de produção, rompa com a monodisciplinaridade. Dessa forma, é possível identificar, potencializar e criar vantagens de origem que catapultem a renda das diversas estruturas especializadas das cadeias de produção de dimensão local.
            Em síntese, numa agricultura especializada regionalmente e organizada em cadeias de produção complexas, as políticas públicas devem ter o recorte de políticas agroindustriais integradas, que transformem diferenças em oportunidades. Só assim é possível evitar que essas diferenças se multipliquem como desigualdades, que se mostram no resultado da prevalência da ultrapassada concepção de diversificação agropecuária.6

_________________________
1 A demonstração da agricultura paulista especializada regionalmente pode ser vista em GONÇALVES, José Sidnei. São Paulo agroindustrial-exportador e agricultura com alta especialização regional. IEA-APTA, São Paulo, setembro de 2006 (publicado na Homepage http//www.iea. sp.gov.br).
2 Esse processo de centralização das políticas públicas para a agricultura está detalhado de forma competente em DULLEY, Richard D. Políticas Agrícolas em São Paulo, 1930-80: o papel da Secretaria da Agricultura, Rio de Janeiro, CPDA/UFRJ, 1988. 301p. (Dissertação de Mestrado).
3 Dentre muitos estudos consistentes que comprovaram no plano empírico o elevado sucesso da pesquisa pública paulista para a agricultura, consubstanciando elevadas taxas internas de retorno, ver a relevante e original contribuição de SILVA, Gabriel Luiz Seraphico Peixoto da. Produtividade agrícola, pesquisa e extensão rural: evolução e determinantes da produtividade agrícola. IPE/USP. São Paulo. 1984. 144p.
4 Essa resposta de um dado candidato a governador, quando indagado a respeito de como via o conflito entre a pecuária bovina e a cana para indústria no processo atual de expansão sucroalcooleira, revela um conhecido preconceito em relação à pecuária, que leva muitos a fazer das pastagens sinônimo de terra improdutiva, o que se mostra um redundante equívoco no caso paulista. Ver sobre o assunto GONÇALVES, José S & CASTANHO F°, Eduardo Pires Defesa da reserva legal não justifica preconceito contra pecuária. IEA-APTA, São Paulo, julho de 2006 (publicado na Homepage http//www.iea. sp.gov.br).
5Essa concepção, ao superar a antiga visão isolada de institutos com ótica disciplinar, mostra-se mais consistente, como transformação organizacional compatível, com a modernidade das cadeias de produção e, mais ainda, das teias de agronegócios. Sobre isso, ver ÁVILA, Antonio Flávio Dias O corporativismo na EMBRAPA; o fim de um modelo de gestão. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.12, n.1/3, p.83-94, 1995
6 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-102/2006.

Data de Publicação: 05/10/2006

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor