Programas sociais, o arroz com feijão e o pão nosso de cada dia

            As discussões da opinião pública no momento1 enfatizam a existência de enorme respaldo popular derivado do acerto das políticas sociais, em especial dos programas de combate à pobreza. Por certo, se as ações sociais governamentais estão contempladas com sucesso, respaldadas na satisfação dos beneficiários, espera-se como decorrência a constatação de que a população tem alcançado maior acesso aos alimentos, haja vista que a erradicação da fome se configura como objetivo explícito dessas medidas. Como corolário, minimizaria os problemas nutricionais da população.
            Tal diagnóstico implicaria que as intervenções governamentais federais dos últimos três anos seriam as responsáveis pela reversão do contexto de fome e desnutrição esboçado pela agência encarregada de empreender ações que garantissem o alcance da meta de erradicação do fenômeno social da fome no país.
            A magnitude do universo de pessoas pode ser expressa pela significativa ampliação recente da abrangência de beneficiários da chamada 'Bolsa Família', que passou a atender aproximadamente 8 milhões de pessoas em situação de risco alimentar, assim classificadas segundo seu perfil de renda.
            Entretanto, os dados recentes da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB)2 indicam que o consumo de alimentos pela população brasileira não acompanhou essa evolução. Ao comparar os qüinqüênios 1997/98 a 2001/02 e 2001/02 a 2005/06 para os três principais produtos da cesta básica dos brasileiros (arroz, feijão e trigo), constata-se um crescimento apenas moderado do consumo desses alimentos.
            Mais ainda, as causas para as mudanças da produção e do consumo não podem de forma alguma serem associadas a efeitos dos programas sociais. Isto porque não apenas contradizem a tendência esperada como também, quando isto não ocorre, por refletirem realidade conjuntural episódica, e não-consistente alteração de trajetória.
            Para o caso do arroz em casca, produto de maior incremento do consumo, verifica-se a existência de ciclos de maior demanda, seguida de desaceleração. Isto impede a formação de tendência clara para a trajetória do consumo desse produto, diferentemente daquilo que se observa para a produção que seguidamente apresenta evolução favorável da oferta (figura 1).

Figura 1 - Evolução da produção e do consumo de arroz em casca, Brasil, safras 1997/98 a 2005/06

Fonte: dados básicos da CONAB

            Essa hipótese pode ser confirmada por meio da variação entre os pontos extremos dos qüinqüênios considerados, ao contabilizar crescimento de produção de 25,6% no período 1997/98-2001/02 e de 9,65% em 2001/02-2005/06. Já o consumo registrou 2,1% e 8,3%, respectivamente, para os mesmos períodos (tabela 1).

Tabela 1 - Comparação da evolução da produção e consumo de arroz, feijão e trigo, variação percentual em blocos das cinco últimas safras, 1997/1998 a 2001/2002 e 2001/2002 a 2005/2006

Produto
Produção
Consumo
.
97/98 a 01/02
01/02 a 05/06
97/98 a 02/03
02/03 a 05/06
Arroz em casca
25,6
9,6
2,1
8,3
Feijão
35,2
23,0
20,0
5,0
Trigo
-
31,6
-
1,9
Fonte: dados básicos da CONAB

            Dessa maneira, se no período 1997/98-2001/02 há um significativo avanço da produção brasileira, foi no período 2001/02-2005/06 que o consumo avançou de forma mais expressiva. Mas esse desempenho pode ser debitado muito mais a uma situação de preços muito baixos, cujo resultado é a significativa crise dos rizicultores gaúchos, do que propriamente a aumento de demanda por esse alimento derivada da implementação dos programas sociais.
            O desempenho da produção e do consumo de feijão apresentou comportamento característico de uma ironia da história. No período de inexistência de programas como o Fome Zero, substituído posteriormente pelo Bolsa Família, o consumo de feijão variou 20%, enquanto no qüinqüênio seguinte, já sob vigência de ambos os programas, essa taxa é de apenas 5%; ou seja, apenas um quarto daquilo que havia alcançado (tabela 1). Com tendência sustentável, a produção manteve evolução acima de 20%, respondendo diretamente à conjuntura de preços altos da entrada do ano-agrícola 2005/2006.
            Mais uma vez, a transferência de renda adicional para as famílias em situação de risco, quanto ao acesso aos alimentos, não trouxe grandes aumentos na demanda de feijão, ainda que a produção estivesse preparada para atendê-la caso surgissem pressões nesse sentido (figura 2).

Figura 2 - Evolução da produção e do consumo de feijão, Brasil, safras 1997/1998 a 2005/2006 

Fonte: dados básicos da CONAB

            Nesse produto em que não há a opção de abastecimento em grandes volumes no mercado internacional, os programas sociais não promoveram a estabilização dos preços. Estes têm se comportado como numa gangorra de variações, uma vez que os preços estimuladores do final da safra 2004/2005 levaram a preços não-remuneradores. Assim, o prognóstico é de redução expressiva da produção nas próximas colheitas, com os preços atraentes para os agricultores refletindo uma realidade meramente episódica de curtíssimo prazo. Esse fato não pode ser vinculado a resultado da implementação dos programas sociais.
            No caso do trigo, um dos componentes da dieta humana mais disseminado sob a forma de farinha e misturas, o incremento do consumo não ocorre no primeiro qüinqüênio e alcança apenas 1,9% de variação positiva no segundo, embora a oferta tenha tido um brilhante desempenho, com crescimento de 31,65% no segundo qüinqüênio (tabela 1). O aumento dessa oferta propiciou, num primeiro momento, uma relativa substituição de importações, que historicamente respondem pelo abastecimento doméstico, para em seguida recuar de forma persistente.
            No trigo, o efeito mais recente das políticas públicas de erradicação da fome não se verifica, uma vez que o consumo mostra pequena elevação, enquanto a produção nacional recua de forma consistente (figura 3).

Figura 3 - Evolução da produção e do consumo de trigo, Brasil, safras 1997/1998 a 2005/2006 

Fonte: dados básicos da CONAB

            Trata-se de um nítido efeito do câmbio que barateou de forma decisiva o produto importado. Ainda assim, a demanda agregada focou praticamente estagnada, com os preços baixos impactando negativamente a produção brasileira.
            A análise conjunta da evolução da produção e do consumo desses três alimentos básicos mostra que não há relação entre o comportamento desses indicadores e a execução recente de programas sociais concebidos como de segurança alimentar. Essa conclusão torna-se ainda mais pungente quando tais informações são cotejadas com a dinâmica demográfica da população brasileira no período.
            Em 2000, último censo demográfico, a população brasileira era de pouco mais de 169,5 milhões de residentes, evoluindo em 2005 para 187,6 milhões. Portanto, foram agregados ao mercado de demanda de alimentos 18,1 milhões de novos brasileiros. Somente esse número adicional de pessoas deveria, por si só, impulsionar a demanda por alimentos, fato que deixou de ocorrer mesmo sob um desembolso de aproximadamente R$ 10 bilhões no último ano.3

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1 Por certo, os programas sociais como Bolsa Família têm impacto decisivo na melhoria da qualidade de vida das pessoas de menor renda , como também isso pode ser observado nos atendidos pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e no imenso número de famílias brasileiras atendidas pela aposentadoria da previdência pública, mesmo sendo não-contributivos. A significativa ampliação dos beneficiários representa passo importante para a melhoria da distribuição de renda brasileira. Entretanto, o que aqui se quer demonstrar é o equívoco de pretender vincular o sucesso dessas ações ao incremento da produção dos denominados alimentos básicos. Mesmo porque, com o aumento da renda apropriada pelos mais pobres, o que se espera é o aumento do consumo de produtos de maior elasticidade de renda (troca do feijão pela carne de frango, por exemplo). E, com isso, as estruturas da agricultura mais beneficiadas pelo incremento de demandas derivadas são as eficientes cadeias de produção agroindustriais, e não necessariamente a produção do arroz com feijão e do trigo para o pão nosso de cada dia.
2 CONAB: www.conab.gov.br
3 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-85/2006.

Data de Publicação: 19/09/2006

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Celso Luís Rodrigues Vegro (celvegro@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor