Reserva legal e leis agrícolas ultrapassadas

            O Decreto Estadual nº 50.889 (de 16 de junho de 2006), que pretende regulamentar parte da legislação florestal no Estado de São Paulo, traz a questão para o centro do debate1. Uma análise sobre as origens desse assunto permitirá compreender os efeitos que essa regulamentação pode causar para o agronegócio paulista e todo o meio rural, bem como esclarecer melhor a situação e as posições a respeito do decreto.
            Em 1964/65, nos primórdios do regime militar, duas leis voltadas para o meio rural foram promulgadas: 'Estatuto da Terra'2 e 'Código Florestal'3. Ambas pretendiam favorecer a implantação do capitalismo no País, a começar pelo campo.
            A primeira queria disciplinar a 'questão agrária', criando uma classe média rural numerosa, atuante e consumidora de produtos industriais. A outra daria impulso às atividades florestais de cunho empresarial no Brasil. Esta última foi importante para a formação de uma indústria de base florestal nacional, mas também decisiva para a devastação de importantes ecossistemas como os campos e os cerrados. Isto porque permitia, senão incentivava, a supressão desses tipos de vegetação para a implantação de florestas homogêneas destinadas à produção de matéria-prima industrial.
            Com algum grau de sanidade, os legisladores da época introduziram na Lei dois dispositivos para manter um mínimo de florestas nativas no País, que foram as áreas de preservação permanente (APPs) e os 20% (50% na Amazônia) de cada propriedade rural que não poderiam ser derrubados, conhecidos como 'reserva legal' 3. E, talvez por se sentirem responsáveis pelo estímulo à destruição, tranqüilizaram suas consciências com esses percentuais.
            Na redação original do Código3, não se fazia distinção entre as duas obrigações e, assim, era comum e administrativamente legal incorporar as áreas de preservação permanente nas de reserva legal, respeitando-se os 20%. No entanto, esse mecanismo, calcado nesse percentual aleatório, nunca foi aplicado de fato porque inconsistente tanto do ponto de vista técnico como ambiental.
            Porém, a partir de certa época (décadas finais do século passado), e mercê de visões cada vez mais urbanas, tal mecanismo acabou sendo considerado a panacéia para a salvação dos ecossistemas. Dessa maneira, atualmente é exigido além das áreas de preservação permanente4, criando situações em que a propriedade fica 'devendo' reserva legal.
            Insista-se que tal 'reserva' peca por fundamentações técnica e teórica que lhes dêem sustentação, desde a sua criação há quarenta anos quando até São Paulo ainda possuía fronteira agropecuária em expansão e, portanto, uma situação totalmente diferente da atual. É importante frisar que esses dois mecanismos do Código Florestal continuam gerando controvérsias e embates jurídicos porque mal resolvidos tecnicamente.

APP ocupação de baixo impacto

            As áreas de preservação permanente ainda possuem razões de ordem ambiental, produtiva e técnica para existir, principalmente no tocante à proteção de corpos d’água, de solos, de vegetação e fauna nativas ou, num sentido mais amplo, de conservação dos recursos naturais e da biodiversidade. O que é discutível é se os parâmetros estipulados para elas são tecnicamente justificados, e mesmo a forma de mantê-las.
            Isso ficou ainda mais evidente com o passar dos anos, visto que muitas áreas rurais foram passando para a esfera da sociedade de serviços e se urbanizaram. Mesmo assim, continuou a ser exigida a existência de APPs e de reservas legais em perímetros urbanos, comprometendo todo um processo de uso racional dos espaços. Foi a partir daí que o tema 'ocupação de baixo impacto das APPs' entrou na ordem do dia.
            Quando se fala em área de preservação permanente, como o próprio nome indica, é suscitada a dúvida do que seja preservar. As entidades internacionais ligadas à questão ambiental têm proposto o desenvolvimento sustentável como única forma viável de conservar os ecossistemas fora das unidades estatais de conservação. Assim, ficam as perguntas: preservar uma área impede seu uso ou não? Impede a ocupação por edificações? É a melhor maneira de conservar ecossistemas no âmbito da propriedade privada? Se a resposta fosse única, a aplicação da lei não teria conflitos.
            Cada tipo de área de preservação permanente merece um tratamento específico que, por seu turno, deve considerar a justificativa técnica que motivou sua criação. De maneira geral, uma questão é consensual: qualquer que seja o uso que possa ser permitido este deve ser sempre de baixo impacto ambiental.
            Verifique-se o caso específico das áreas de preservação permanente que são objeto de muitos conflitos e controvérsias quanto a uma eventual utilização de baixo impacto: topos de morro.
            Preliminarmente, é preciso rememorar que, quando essas áreas foram criadas, o Código Florestal era destinado a regrar apenas o uso da propriedade rural e proteger algumas áreas de notória importância ecológica, como os mangues e as restingas fixadoras de dunas. Naquele contexto histórico, em que o Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico5 pretendia alavancar também o setor florestal brasileiro, as limitações foram feitas para nortear as atividades agrossilvopastoris e proteger áreas litorâneas ainda não ocupadas. Contudo, não tinham nem nunca tiveram o objetivo de normatizar a relação do homem com os recursos naturais em meio eminentemente urbano.
            A proteção do topo do morro teve origem na peculiaridade de algumas formações geográficas. A determinação técnica pretendia impedir o uso de uma área que só era acessível cortando-se outras áreas de preservação permanente, qual sejam as encostas que possuíam declividades acima de 100% (ou 45°), restrição plenamente justificável do ponto de vista técnico, tanto ambiental como agronômico.
            Em outras palavras, a idéia original considerava como sendo morro as elevações cujas encostas eram muito íngremes. Contudo, quando foi feita a regulamentação desse artigo pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA)6, a definição de morro foi alterada para elevações com declividade acima de 30%, acentuada do ponto vista agrícola, mas moderada do ponto de vista da construção civil em pequena escala ou para atividades turísticas, perdendo todo o sentido técnico que motivara a sua criação.
            Dessa forma, a lei florestal, outrora eminentemente rural ou aplicável a regiões ainda não desbravadas, passou a ser parcialmente interpretada de outra maneira, abarcando as regiões urbanas e estados sem fronteira agrícola física a expandir, que, é bom frisar, nunca foram objeto dos estudos técnicos que lastrearam o Código Florestal. Assim, virou instrumento de proibição de uso/ocupação do solo urbano, em vias de urbanização ou ainda para turismo no meio rural, uma lei que pretendia proibir o desenvolvimento das atividades agrossilvopastoris em áreas rurais, numa situação histórica de expansão de fronteira agrícola e cujos acessos, muitas vezes, teriam de ser feitos através de áreas íngremes, altamente sujeitas à erosão.
            Essa alteração, numa primeira análise, pode parecer de cunho preservacionista. Contudo, ao olhar mais atento se mostra perversa com a conservação ambiental. Observe-se o porquê disso.
            Os topos de morro são comuns em regiões montanhosas, como o Vale do Paraíba, no Estado de São Paulo, onde é fácil constatar que as atividades agrícolas há muito abandonaram essas áreas. Mesmo a ocupação com pecuária e silvicultura tem grandes limitações e, salvo em algumas propriedades, não se consegue gerar renda para manter o patrimônio. Restou a elas a bem-vinda ocupação com projetos de turismo e lazer. Contudo, como a proibição da lei é interpretada de forma absoluta, tais projetos de uso e ocupação não conseguem ser aprovados, mesmo que sejam considerados tecnicamente de baixo impacto ambiental e socialmente desejáveis.
            Outro aspecto a considerar é que a discussão das normas regulatórias relacionadas à exata definição de morro, bem como as interferências aceitáveis nas áreas montanhosas, assumiu um caráter eminentemente jurídico, deixando de lado as diretrizes técnicas que deveriam subsidiar o uso e ocupação dessas áreas. Este afastamento da questão técnica faz com que os conflitos se avolumem.
            Apenas para citar exemplos comuns, muitas das fazendas que outrora foram exploradas para extração das matas, com a subseqüente implantação de culturas agrícolas, estão proibidas sumariamente de ocupar locais nobres, já impactados no passado com essas atividades. Hoje, buscam novas alternativas econômicas, ancoradas nas atividades de turismo e lazer. Isso impede que um novo ciclo de organização do espaço rural se dê em bases racionais e sustentáveis, utilizando os modernos conceitos da ecoagricultura7 e gerando conservação dos recursos naturais, empregos e renda.

Uso racional da propriedade rural-o triplo A

            A geração de emprego e renda rural pode se dar tanto pela produção de bens (alimentos, fibras, insumos energéticos, matérias-primas industriais) quanto pela prestação de serviços ambientais (melhoria da produção de água, conservação de solo, proteção da biodiversidade, estocagem de carbono, estabilização de encostas, turismo, atividades científicas, educativas e recreativas). Ora, é fácil verificar que o uso racional se baseia em alguns princípios básicos empregados em qualquer empreendimento.
            Na utilização de uma propriedade rural, é preciso que se observem três grandes balizadores (o Triplo A) para a decisão das atividades a serem desenvolvidas: Adequação Agronômica; Adequação Ambiental e Adequação Social 8. Essa concepção induz a que as terras agrícolas sejam usadas para a agricultura; à pecuária com animais; e, quando inadequadas a esses usos, para florestas ou serviços como turismo.
            Além da conservação e uso correto do solo e da água e da manutenção da flora e fauna, é preciso que a moderna ocupação agrossilvopastoril esteja adaptada às condições locais e seja diversificada. Nessas atividades e no restante das cadeias dos agronegócios, os procedimentos de todo o processo de ocupação/uso/produção devem estar em perfeita sintonia com aquelas condições que são básicas para a obtenção de produtos e serviços de qualidade e ambientalmente adequados.
            Ao lado disso, a cada dia que passa mais se ouve falar de produtos naturais, orgânicos ou isentos de agrotóxicos e dos mercados a eles associados, que crescem a taxas explosivas. Tais tipos de produção aproximam, via mercado, esses dois papéis modernos do espaço rural e podem proporcionar uma solução importante na questão do emprego, da renda e do ambiente.
            Na realidade, esses processos são basicamente aqueles empregados pelos programas de qualidade. Ou seja, produzir com o máximo aproveitamento possível dos insumos, sem desperdícios, de maneira a reciclar, poupar energia e matérias-primas, aproveitar subprodutos, reduzir custos, aumentar a produtividade. Dessa forma, as atividades têm de começar por preservar, manter, conservar e melhorar a quantidade e a qualidade dos recursos ambientais existentes na propriedade, com respeito às normas e à legislação ambientais que por seu turno precisam refletir essas condições.
            É óbvio, no entanto, que a atual legislação não contempla esse leque de preocupações por ser anacrônica e de origem exclusivamente agrossilvopastoril e da fase de desbravamento do território.
            Como desdobramento das avaliações, é determinado o arranjo produtivo da propriedade rural a partir da classificação das suas terras em função da Classe de Capacidade de Uso, criando-se uma tipologia que permite otimizar sua utilização.
            De modo geral, os solos podem ser classificados, segundo suas aptidões, em agrícola, pecuário, florestal e de preservação8. Do mosaico que se estabelece entre eles, gera-se uma gradação entre as propriedades, que vai desde as preponderantemente agrícolas até as dedicadas quase que exclusivamente à preservação6. Mas, em quase todas elas existem gradientes de tipos de usos que lhes conferem a adequação agronômica e ambiental. Em face dessa classificação, é possível dar-se o primeiro passo para os usos possíveis.
            Propriedades predominantemente agrícolas podem ter áreas pequenas e marginais dedicadas às atividades florestais, enquanto as predominantemente florestais podem inclusive criar um novo mercado para reservas legais, aproveitando mecanismo previsto na legislação4 que, no entanto, precisa prever flexibilidade suficiente para tal.

Uma política de reserva legal

            Nada impede que se enxergue o território estadual como uma grande propriedade rural e se aplique a ele os mesmos procedimentos.
            Do ponto de vista técnico, a legislação deve garantir uma produção agrossilvopastoril sustentável ou prestação de serviços que conserve a diversidade biológica em termos de território estadual. Assim, o percentual de reserva legal deveria ser obtido para o Estado e não para propriedades individualizadas. É fácil perceber que o resultado final é maior e com ganhos ambientais evidentes.
            Faça-se um paralelo com uma situação urbana. O que é melhor num loteamento? Que cada casa disponha de um quintal de 20% de sua área e cada família se confine a esse espaço? Ou que se deixem os recuos e as laterais com 5% e os outros 15% sejam incorporados em uma grande área comum onde as pessoas possam interagir criando um padrão de relações muito mais proveitoso do ponto de vista sócio cultural?
            O raciocínio é absolutamente o mesmo no caso da proposta em tela. É muito melhor, do ponto de vista ambiental, haver grandes reservas concentradas do que uma miríade de pequenas reservas em cada propriedade, mesmo porque existem espécies que necessitam grandes territórios para sua sobrevivência. Essa proposta está de acordo com o espírito da atual legislação em vigor, que permite que a autoridade competente distribua as reservas legais da maneira mais eficiente e eficaz.
            Não faz qualquer sentido técnico, ambiental, econômico e muito menos social destinar obrigatoriamente 20% da área de uma propriedade para florestas se, por exemplo, essa unidade for constituída de 100% de terras com vocação agrícola. O inverso também é verdadeiro: uma fazenda cujas terras sejam inadequadas ao uso agrícola não deveria ter apenas 20% de superfície florestal, mas o percentual indicado para tal atividade. Como conciliar esta 'injustiça', já que o Código Florestal exige a reserva legal de 20%?
            É absolutamente fora de questão que as áreas de preservação permanente devam também fazer parte da reserva legal já que, pelo texto legal, têm a mesma função. Além disso, há que se eliminar um grande equívoco técnico que permeia essa visão; ou seja, o de achar que se pode 'aumentar' a biodiversidade. É possível que esta não seja conhecida, mas, sendo ela um dado físico e concreto da natureza, o que foi exterminado não pode ser reposto, muito menos 'aumentado'. Daí a importância de se preservar o ainda intocado pelas atividades humanas, não exclusivamente mas, principalmente, por intermédio de uma rede de Unidades de Conservação.
            Assim, é muito importante que a reserva legal possa estar em uma propriedade que tenha vocação florestal, pela qual o produtor que não tenha aptidão florestal pague um custo de implantação e ou manutenção, formando, por exemplo, reservas por bacias hidrográficas. Ou seja, nem o produtor com vocação agrícola seria 'penalizado', ao ter de destinar parte de suas terras a florestas, nem aquele que tem terras florestais estaria condenado a não ter alternativa, já que auferiria um rendimento para 'produzir' reserva florestal em terras onde atualmente não tem renda alguma, só restrições e proibições.
            A disseminação da aplicação desse dispositivo eliminaria uma série de conflitos no setor rural, adequaria a produção agrossilvopastoril às exigências ambientais, utilizaria suas atividades de produção e de prestação de serviços como geradoras de emprego e fixação de populações no campo e disciplinaria as relações entre poder público e iniciativa privada.
            Portanto, uma política pública de reservas legais pró-ativa deveria estipular para o Estado como um todo uma rede de áreas correspondentes aos percentuais das reservas legais das propriedades existentes no território estadual, bem como estimular a existência de grandes reservas com significados ecológico e ambiental relevantes. Nessa proposta, estaria também prevista uma extensa rede de corredores ecológicos que interligaria esses bolsões de reserva e o sistema de Unidades de Conservação do Estado.
            Estudos já realizados para o Estado de São Paulo 9 indicam que o percentual de terras aptas para usos florestais é superior a 30%; ou seja, superior à percentagem que a legislação florestal federal determina. Em outras palavras, é muito melhor em termos ambientais ter uma política de reservas florestais pró-ativa do que se apegar a filigranas do texto legal, até para que, no futuro, não se seja acusado de ser responsável pela extinção de inúmeras espécies que necessitam grandes territórios para sua preservação.
            Ainda com relação às questões legais, é importante ressaltar que o nosso País adota um sistema econômico e jurídico institucional onde não se discute se a propriedade privada é justa ou não: ela é um direito. O que existem, portanto, são restrições ao seu uso, que podem até ensejar ações que a transfiram de proprietário, através de desapropriações, por exemplo. Estas são feitas, ou deveriam ser, sempre que o interesse público estiver acima do privado, como é o caso da preservação integral.
            Existe Reserva Obrigatória de Alimentos? Claro que não, porque isso seria uma interferência indevida no uso da propriedade.10

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1 GONÇALVES,J.S.&CASTANHO F.,E.P.,Reserva legal: obrigatoriedade e impactos na agropecuária paulista. http://www.iea.sp.gov.br/out/verTexto.php?codTexto=6371
2 Lei Federal n.4505, de 1964
3 Lei Federal n.4771, de 1965
4 Medida Provisória n°. 2.166-67, de 2001
5 PND – I Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico, Ato Complementar n.43 de 1969. Ministério do Planejamento
6 Resolução CONAMA, n.303, de 2002 - Ministério do Meio Ambiente
7Scherr, S.J. & Shames, S. 'Agriculture: a threat or promise for biodiversity conservation?' Arbovitae 30, jun.2006, IUCN/WWF Forest Conservation Newsletter, pg.13
8 Castanho F°, E. P; 'O que é pecuária ecológica e sustentável', in 'Nelore-o boi ecológico que está conquistando o mundo' - Associação dos Criadores de Nelore do Brasil; Ribeirão Preto; SP, 2001
9 Castanho F°, E. P. et al; 'Plano de desenvolvimento florestal sustentável'; Fundação para a Conservação e a Produção Florestal do Estado de São Paulo; volume: único; 47 páginas; São Paulo; 1993
10 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-94/2006.

Data de Publicação: 19/09/2006

Autor(es): Eduardo Pires Castanho Filho (castanho@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor