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Reservas: incentivo a matas nativas em propriedades rurais
A ampliação da atual proporção das áreas de matas nativas em relação à área total das propriedades rurais mostra-se fundamental tanto para São Paulo quanto para o Brasil como um todo. Retomar essa premissa e discutir caminhos consistentes para a concretização desse objetivo de toda a sociedade representa uma necessidade condizente com a seriedade intelectual. _________________________
Assim, a mesma ênfase com que se procurou mostrar a inaplicabilidade prática do Decreto n° 50.889, editado pelo Governo do Estado de São Paulo1, deve ser dada no sentido de apresentar sugestões de políticas publicas para o correto encaminhamento da solução do impasse existente entre o interesse econômico de lavourar a maior proporção de terras e o da sociedade de manter reservas de matas nativas em nível desejável. E esse desígnio somente se concretizará de forma consistente se for adotado estímulo econômico, uma vez que as transformações econômicas movem a história.
Em espaços territoriais como o paulista, onde a agropecuária não encontra mais fronteira para expansão horizontal e, ao contrário, há recuo de 500 mil hectares desde o final da década de 1960, medidas impositivas geram apenas conflitos e quase nenhum resultado. Essa situação mostra-se evidente, uma vez que a soma das lavouras e das pastagens, que consistem nos mais amplos espaços de solo utilizados pela agropecuária, diminuiu de 17,4 milhões de hectares anuais, na média do triênio 1969-1971, para 16,9 milhões de hectares em 2002-20042.
Dado o padrão de desenvolvimento da agropecuária paulista, há pouco espaço para que se imponha o cumprimento da legislação de reserva legal, tanto nas lavouras quanto na pecuária, o que exigiria um mínimo de 4,4 milhões de matas nativas nos 22 milhões de hectares ocupados pelas propriedades rurais estaduais, além das já obrigatórias áreas de preservação permanente (APPs). Duas conseqüências imediatas dessa imposição seriam o custo da recomposição dos 3,7 milhões de hectares necessários ao cumprimento da legislação, orçado em R$ 14,8 bilhões, e as perdas de receita bruta da ordem de R$ 5,6 bilhões2.
A discussão da aplicabilidade dessa legislação referente à reserva legal vem sendo motivo de polêmicas há mais de quatro décadas. E seu cumprimento é postergado desde a criação da Lei Federal n° 4.771 de 15 de setembro de 1965, denominada Código Florestal, com base nos artigos 14 e 16, que instituiu esse procedimento. No Congresso Nacional, existem propostas de revisão desse instrumento legal. A crítica ao percentual definido nessa lei mostra-se tão contundente quanto consistente.
Para um dos mais renomados defensores da agricultura sustentável, 'o valor ora adotado de 20% de reserva obrigatória é um número esotérico, sem qualquer base na realidade, sem qualquer estudo prévio. Alguém inventou o número 20 assim como poderia inventar 10 ou 5, sem qualquer base técnica, sem apoio na realidade. Nas áreas agrícolas paulistas não existem 20% de floresta a preservar e o cumprimento dessa exigência implicaria em converter áreas produtivas em novas florestas plantadas. Nesse caso quem iria pagar a conta?'3.
Assim, ao par da discussão necessária sobre a magnitude da proporção de reserva legal a ser exigida, há um elemento determinante da competitividade setorial derivado da necessidade de definição de quem vai pagar a conta não apenas da recomposição como também da manutenção das áreas de reserva legal. Isso porque esses custos configuram ônus sem contrapartida de receita, implicando em manter capital 'morto' em razão de que parcela representativa do patrimônio fundiário não pode ser utilizada de forma produtiva, além dos custos de manutenção. Essa nova modalidade de custo 'São Paulo' faria com que a agropecuária paulista perdesse competitividade, não apenas no plano nacional, como também em relação aos principais concorrentes internacionais que não adotam medidas similares nas respectivas agropecuárias.
A posição defendida pelas lideranças setoriais, nesse caso, pode ser expressa na colocação de que 'exigir 20% de reserva florestal nas áreas agrícolas paulistas é uma utopia. Se tivermos remanescentes florestais, vamos preservá-los com a condição de que a sociedade fique com o ônus. Não há razão para que um agricultor, que eventualmente tenha uma reserva em solo agricultável, somente ele fique com o castigo de não poder dar a essa área uma função econômica. A sociedade, através dos governos, deve desapropriar e pagar as florestas que pretende preservar' 3. A resposta a essa colocação mostra-se crucial para o sucesso de qualquer medida que pretenda ampliar a proporção das áreas de matas nativas nas propriedades rurais paulistas e mesmo brasileiras.
As políticas impositivas contra a lógica das transformações capitalistas tendem a não produzir resultados. Da forma como foi editado, o Decreto n° 50.889/2006 faz lembrar os decretos da realeza inglesa do século XVI que se configuraram infrutíferos para evitar a expropriação do campesinato, ainda na acumulação primitiva na origem do capitalismo. Karl Marx faz alusão ao fato que 'um decreto de Henrique VII, de 1489, proibiu a destruição de todas as casas camponesas, às quais pertenciam pelo menos 20 acres de terra. Num decreto de Henrique XVIII, a mesma lei foi revogada. A lei ordena a reconstrução das propriedades camponesas decaídas, determina a proporção entre campos de cereais e pastagens, etc. As queixas do povo e a legislação, que a partir de Henrique VII, continuamente por 150 anos, se voltava contra a expropriação dos pequenos arrendatários e camponeses foram igualmente infrutíferas'4. Para obstar essa lógica, são eficientes apenas incentivos econômicos que compatibilizem as necessidades sociais com a transformações capitalistas que movem a história.
E é isso que o Governo do Estado de São Paulo deveria buscar. Para isso deveria seguir o exemplo do vizinho Estado do Paraná no tratamento dessa questão. Nas terras paranaenses, 'desde o fim do ano passado, a Reserva Barbacena, localizada na pacata cidade de São Pedro do Ivaí, no noroeste do Paraná, recebe R$ 8.823,00 por mês para manter parte de sua floresta nativa. O dinheiro tem um só objetivo: garantir que a área verde particular continue viva e saudável. E ela está. O recurso pago pelo município permitiu melhorias significativas na Barbacena. A reserva de 554 hectares contratou um guarda-parques para inibir a ação de ladrões de palmito e fechou parceria com a EMBRAPA para a datação das espécies vegetais e animais que habitam o espaço. Além disso, desenvolve um programa de educação ambiental com a comunidade, que faz visitas monitoradas nas trilhas da floresta. Dentro da mata não se vê um papel no chão'5. Trata-se, portanto, de um incentivo econômico para viabilizar projetos ambientais de interesse de toda a sociedade.
O relevante nesse caso é destacar o mecanismo de incentivo fiscal adotado. 'A idéia do programa é estimular a criação da chamada Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). Na prática entrega nas mãos do proprietário da área preservada parte da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) que antes ficava com as prefeituras. No Paraná, as RPPNs são levadas em conta na hora de definir a fatia que cada município terá do ICMS que o Estado arrecada e repassa às prefeituras. As RPPNs fazem parte do chamado ICMS ecológico, repassado em função das áreas verdes preservadas. O que o Paraná está fazendo de novo é garantir que parte do ICMS ecológico recebido pelos municípios seja repassado aos proprietários das RPPNs' 5. Essa medida poderia ser implementada em São Paulo, complementando a adoção do ICMS ecológico que destina às prefeituras 0,5% do valor distribuído, mas apenas para municípios que tiverem áreas de preservação de propriedade do Governo Estadual.
Mas outra medida poderia ser, por parte do governo federal, a utilização do Imposto Territorial Rural (ITR) para esse fim. As propostas em andamento de municipalização desse tributo sobre o patrimônio são inadequadas, uma vez que se configuram num retrocesso fiscal perpetrado na agricultura brasileira. No passado, isto foi um desastre pois município não gosta de cobrar imposto; logo, municipalizar não é a solução.
Desde logo, há que se repensar a magnitude da arrecadação do ITR, um vez que as sete milhões de propriedades rurais existentes pagam apenas R$ 240 milhões anuais, enquanto apenas o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) da capital paulista soma R$ 2,4 bilhões, ou seja, 10 vezes mais. E não vai ser a municipalização do ITR que permitirá a construção da justiça tributária.
O ITR federal é, assim, requisito para uma reforma tributária consistente na agricultura, que elimine os efeitos em cascata dos tributos indiretos (ICMS, IPI, etc.). Haveria também que obrigar os municípios a cobrar um patamar mínimo de IPTU, uma vez que alguns não cobram nada. No Estado de São Paulo, por exemplo, são exatamente os municípios agropecuários que assim procedem. Dos 425 municípios cuja renda é toda advinda do setor agrícola, 47% não arrecadam quase nada com IPTU e vivem às custas dos fundos de participação estadual e federal. Assim, na reforma tributária, a proposta seria criar o Imposto Sobre Valor Adicionado (IVA) para todas as cadeias de produção da agricultura (fusão do ICMS e do IPI), com o ITR sendo usado numa política adequada de compensação ambiental.
As tarifas do ITR seriam reajustadas para níveis mais altos, mas haveria um desconto em função do cumprimento da legislação das áreas de proteção permanente (APPs) e de reservas legais. A título de exemplo, para cada 1 hectare de mata nativa preservada como reserva legal ou área de proteção permanente, o proprietário rural teria um desconto no ITR equivalente a 2 hectares de área produtiva.
Vejam o caso de dois proprietários de 100 hectares, um com 30 hectares de mata nativa (mais ou menos 20% de reserva legal e 10% de APP) e outro com 1 hectare de mata nativa (apenas APP, sem reserva legal). O proprietário que mantivesse os 30 hectares de mata nativa receberia da sociedade como retorno o direito de pagar quase nada de ITR, pois a área preservada e averbada em escritura faria com que pagasse o imposto sobre 60 hectares de área produtiva; ou seja, teria isenção sobre 90 hectares, pagando assim ITR apenas sobre 10% da área de sua propriedade.
Já o proprietário rural que mantivesse apenas 1 hectare de mata nativa teria desconto do ITR apenas sobre 2 hectares de área produtiva; ou seja, pagaria ITR sobre 97% da área de sua propriedade. Visto dessa forma, política ambiental consistente é aquela em que a sociedade premia quem realiza a preservação ambiental.
É para isso que o ITR deve continuar como um imposto federal. Na esfera municipal, o ITR só geraria conflitos na medida em que os municípios onde se planta um determinado produto (cana-de-açúcar, por exemplo) tentariam cobrar mais ITR para compensar o ICMS drenado pelas indústrias (usina ou destilaria, no caso) instaladas noutros municípios. Seria levar a guerra fiscal para cada município, quando ela já é inaceitável entre os estados.
Além disso, tal medida não teria qualquer efeito fiscal relevante e se perderia um poderoso instrumento de políticas de ocupação do espaço. No futuro, poderiam ser incluídas medidas anti-monocultura, por exemplo. Com isso, o ITR, em vez de tratado como mais um imposto dentro da política arrecadatória, seria instrumento de política compensatória. Assim, seria dado passo importante no sentido de superar a visão financista da questão tributária, agindo no interesse da sociedade que remuneraria as ações de preservação e recomposição das matas nativas. 6
1 Trata-se de dispositivo legal editado em de 16 de junho de 2006, que 'dispõe sobre a manutenção, recomposição, condução e regeneração natural e compensação da área de Reserva Legal de imóveis rurais no Estado de São Paulo'.
2 Para uma visão mais detalhada desses impactos, ver GONÇALVES, José S & CASTANHO F°, Eduardo Pires Reserva Legal: impactos à agropecuária paulista. Revista Agroanalysis 26 (7): 44-46, julho 2006.
3Ver o artigo de Fernando Penteado Cardoso, Presidente da Fundação Agrisus: ' Reserva florestal de 20% no Estado de São Paulo'. Jornal Direto no Cerrado. Maio/Junho 2006. Pág. 4.
4Essa passagem está em MARX, Karl A assim chamada acumulação primitiva. O Capital, Vol I Tomo 2. Abril Cultural, São Paulo, 1984. págs 265-266. Interessante que Marx cita o fato de que Francis Bacon em Essays, Civil and Moral, havia considerado que 'o decreto de Henrique VII era profundo e digno de admiração ao criar explorações camponesas e casas rurais de determinado padrão' e que Thomas Morus, em sua Utopia, falou de um país singular 'onde as ovelhas devoram os seres humanos'. Entretanto, foi isso que acabou acontecendo pela inaplicabilidade do Decreto.
5Veja o artigo de BARROS, Betina & WATANABE, Marta. ICMS ajuda a manter floresta particular no PR. Jornal Valor Econômico, de 18 a 20 de agosto de 2006. Pág. A 12.
6 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número 86/2006.
Data de Publicação: 24/08/2006
Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor