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Defesa sanitária como parte da qualidade de produtos e processos
As diversas propostas sobre as questões de produtos e processos, presentes na agenda em especial de 2006, mostram que, em regra, não há uma compreensão adequada da institucionalidade - e com a profundidade necessária - de temas setoriais estratégicos para o desenvolvimento da agricultura. _________________________
As transformações produtivas, que foram tremendas desde os anos 1960, levaram à superação de antigos obstáculos ao desenvolvimento e colocaram outros na agenda. E essa nova agenda exige outra concepção de intervenção estatal, centrada em outros pressupostos e assentada sobre outra institucionalidade. Esse é o caso da qualidade de produtos e processos1.
O debate sobre os temas emergentes tem sido refém do atraso conceitual e institucional. Na verdade, o poderoso aparato estatal estruturado para realizar a modernização agropecuária ainda condiciona as argumentações e vem sufocando a emergência do novo. Vai e vem e as postulações trazem elementos que parecem vislumbrar avanços mas os submete à velha e arcaica estrutura institucional desenhada para o ciclo anterior nessa perspectiva de desenvolvimento da agricultura2.
Uma questão em que menos houve avanços foi exatamente a qualidade de produtos e processos, crucial para a sustentação da competitividade externa da agricultura brasileira. Esta, pela multiplicação de barreiras de cunho não-tarifário, vem ganhando expressão e já faz as primeiras vítimas3.
Nada mais peada pelo atraso que a discussão sobre qualidade de produtos e processos. Desde logo, as antigas estruturas do aparelho de estado tentam dominar essa temática moderna e nova, bem como submetê-la aos seus desígnios, sem ter nítido que isso não se mostra possível por concepção.
Tanto assim que se tem tratado de políticas de defesa agropecuária, ou seja, do particular, sem atentar para o espectro mais amplo dos predicados da qualidade que isso exige. Na verdade, não se construiu uma aparato regulatório consistente com a qualidade de produtos e processos, que envolva legislação, institucionalidade e competências dos entes federativos. E persistem atuações tópicas e episódicas.
Por certo, a sanidade animal não se resume à aftosa como a sanidade vegetal não se resume a cancro cítrico, principais ações federais. Nem essa intervenção pode ficar ao sabor da relevância econômica, que traz para a primeira prioridade uma possibilidade de a gripe aviária atingir a avicultura brasileira. E nem simplesmente ignorar a Sigatoka Negra que atingiu os bananais do Vale do Ribeira, com enormes impactos para os pequenos e médios produtores da região que ostentam os piores indicadores econômicos e sociais paulistas.
Há que se avançar na institucionalidade, de maneira a formar uma concepção nacional, compatível com os padrões internacionais, e assumir a qualidade de produtos e processos como requisito vital, indo muito além da visão de Estado Desenvolvimentista para construir o novo Estado da Regulação. Assim como as agências reguladoras formam o novo aparato estatal noutros segmentos econômicos relevantes, é preciso fazer o mesmo com a qualidade de produtos e processos.
Trata-se de uma estratégia nacional de inserção competitiva com lastro na qualidade de produtos e processos. Esta implica na certificação de qualidade com rastreabilidade adequada numa visão de 'food safety', e não apenas de atuar em defesa sanitária, restringindo-se ao conceito de edificação de 'zonas livres de febre aftosa' e outras moléstias.
Uma imensidão de exemplos, que revelam a inoperância e a inconsistência das atuações federal e estaduais nessa questão da qualidade de produtos e processos, pode ser enumerada. Vejam-se alguns para não ficar no vazio. A regulação dos transgênicos mostra-se mais relevante que a da aplicação de defensivos agropecuários? Têm-se uma emperrada estrutura de análise e regramento para a criação e o uso comercial de transgênicos, mas nenhuma que ordene o uso de defensivos agropecuários, a não ser um oneroso e emperrado processo de registro de produtos.
Aí surge um princípio norteador, que coloca a garantia de qualidade, incluindo o poder de polícia, como uma função precípua e indelegável do Estado. Por isso, não pode ser pensada como a constituição de estrutura pública financiada, como atualmente, em grande parte, por taxas que encarecem os produtos e dificultam a adoção de processos.
Os maiores penalizados são exatamente os menores empreendimentos. Há que se forjar racionalidade na concepção da estrutura de taxas, compatível com a capacidade de arcar com os respectivos custos, bem como das exigências das políticas de defesa da qualidade para que não inibam a adoção generalizada de boas práticas de produção e de processamento.
De outro lado, nessa escuridão propiciada pelo embate ideológico ao invés do debate das idéias, mistura-se tudo no mesmo cadinho como se na noite 'todos os gatos são pardos'. Ora, os transgênicos são todos iguais? Devem submeter-se a uma única regra genérica que obrigue todos a tomarem, necessariamente, a decisão imposta e típica do medicismo dos anos 1970, enunciada no slogan 'Brasil: ame-o ou deixe-o'? De maneira alguma. Há que ser verificada a enorme diferenciação entre as concepções e os impactos econômicos, sociais e ambientais existente nos diversos transgênicos.
A soja RR consiste na construção de uma submissão econômica na medida em que o uso da variedade implica no uso de herbicida com a molécula do glifosato. Assim, o monopólio duplo do gen e da molécula cria condições econômicas peculiares que devam ser reguladas de maneira a permitir o uso amplo dessa inovação, como um requisito da modernidade competitiva, sem deixar os agropecuaristas desprotegidos em termos de defesa econômica.
O mesmo não se aplica ao feijão transgênico, resistente ao 'mosaico dourado' que dizima plantações de pequenos e médios lavradores em diversas regiões do Brasil, em especial nas áreas próximas das plantações de soja onde a população de mosca branca (transmissor) se multiplica pois o vírus do mosaico dourado não ataca a soja. Apesar de ambos serem transgênicos, não faz o menor sentido a perpetuação de uma legislação que dê tratamento restritivo e similar tanto à soja RR quanto ao feijão resistente ao mosaico dourado, visto que os impactos sociais, produtivos, econômicos e ambientais são muito distintos. A legislação deveria tipificar transgênicos, reconhecendo a imensa distinção existente entre eles, da mesma forma que é urgente sua incorporação desburocratizada à normalidade produtiva.
No plano federativo, deve se deixar claro que as unidades descentralizadas não têm competência, a não ser delegada e de forma precária (porque sem acompanhamento de recursos), para realizar políticas consistentes de qualidade de produtos e processos. Dessa maneira, propostas de políticas estaduais para essa questão vital, na institucionalidade atual, carecem de conhecimento da realidade setorial e representam promessas que não se concretizarão sem o enfrentamento do desafio de reestruturar o aparato regulatório nacional.
Assim, a maioria das propostas estaduais formuladas é absolutamente sem sentido e irrealizável. Tais propostas carecem de regramento federal mais consistente em função de contrariar a ordem legal vigente que permite às unidades da federação apenas o exercício limitado de funções delegadas. Até mesmo estimulam ensaios catastróficos na forma da edição de ciclos de 'guerra sanitária' na agropecuária, que geram enormes distorções alocativas, talvez mais graves que a 'guerra fiscal'.
Há que se estruturar mecanismos consistentes de controle social e de governabilidade sobre essa estrutura de defesa, que, por se tratar de uma atividade econômica, deva ser típica da agricultura. Essas premissas de controle social e de governabilidade devem, em primeiro lugar, permitir o contraditório à cidadania, elemento fundante do Estado Democrático de Direito. As instituições devem ter desenhos objetivos que evitem a sobreposição de funções e, com isso, a prevalência de uma em detrimento de outra.
Nesse pressuposto, quem policia e pune (atividade típica de defesa na fiscalização da observância de procedimentos), e por isso apreende e destrói produções em desconformidade, não deve ser responsável por educar (extensionistas que ensinam o controle de pragas e doenças focando diversas alternativas técnicas viáveis). Da mesma forma, quem emite a ordem de apreensão de produtos em desconformidade (também típica de defesa) não deve ser a mesma instância que produzirá as provas dessa desconformidade (análise laboratorial).
Quem aplica a legislação pode até apresentar sugestões de leis e decretos normativos e estabelecer padrões punitivos (multas, apreensões e destruição), mas não deve deter o poder de estabelecer essa legislação que deva caber a instância superior submetida ao controle social. Afinal, nessa legislação há sempre conflitos de interesses entre grupos econômicos e grupos sociais, além da necessidade de arbitragem cotidiana de contenciosos que não deve ser atribuição de instâncias de fiscalização, como a defesa da agricultura que visa agir na aplicação irrestrita da legislação pertinente e dentro de seus limites.
Torna-se fundamental avançar, muito mais que na mera formalidade de regulamentação da Lei Federal nº 9.712, de 20 de novembro de 1998, que modificou o capítulo VII – defesa agropecuária, da Lei Federal nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991 (Lei Agrícola). Nessa legislação, há praticamente nenhum espaço para ações pró-ativas dos governos estaduais, o que tornam inócuas as propostas formuladas nesse sentido, como muitas que vêm sendo apresentadas à opinião pública.
Falta também definir a operacionalidade, com a construção de um sistema nacional de qualidade de produtos e processos na agricultura que defina de forma nítida limites de competências e responsabilidades das unidades federativas. É preciso estruturar, por meio de instrumento legal adicional, uma instituição pública dotada de autonomia operacional (redes de instituições com concepções compatíveis no plano das demais instâncias da federação brasileira) para executar as ações de defesa da agricultura, num conceito mais amplo que o de sanidade animal e vegetal.
A legislação federal vigente, peada à visão do passado, não toca no elemento crucial representado pelos conflitos existentes dentro do próprio aparelho de estado, no que diz respeito à qualidade de produtos e processos. As lutas quase fratricidas entre agentes dos Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente e da Agricultura criam enorme insegurança jurídica e normativa derivadas de conflitos de competência que devam ser equacionados para que a decisão governamental seja coerente com o sentido de unidade. Daí ser fundamental rever não apenas todo o aparato regulatório como também o aparato institucional que o operacionaliza. Isto tanto no governo federal quanto nos governos estaduais.
A concepção adequada para essa agência federal representa um desafio na construção de institucionalidade compatível com eficiência operacional e adequado gerenciamento de conflitos. A primeira questão a ser enfrentada está em separar a formulação da operacionalização das normas da política de qualidade, para garantir uma visão republicana no plano federativo, com a concentração das decisões regulatórias numa única Câmara Federal de Regulação da Qualidade na Agricultura.
Tal Câmara deve envolver todas as instâncias decisórias do governo, desde que compatibilizada com a plena descentralização institucional e federativa das ações operacionais. Nas unidades da federação, devem ser previstos mecanismos similares que visem garantir maior controle social sobre os processos decisórios, além de se evitar a exacerbação de posições corporativistas e ampliar a legitimidade da referida Câmara.
Ademais, como segundo pressuposto, para a defesa da sociedade e da cidadania, há que se garantir o espaço para o contraditório. Isto somente será factível com a realização das provas e contraprovas laboratoriais por instituições independentes da estrutura operacional que produziu a autuação em situação de plena autonomia operacional, além da constante necessidade de desenvolvimento científico dos procedimentos analíticos visando à rapidez e à exatidão.
Assim, os laboratórios credenciados não podem nem devem pertencer à estrutura das instituições operacionais de defesa. As normas de credenciamento devem ser fixadas pela Câmara Federal de Regulação da Qualidade na Agricultura e a execução da referida exigência, bem como sua fiscalização, estar a cargo de outras instâncias do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA) e das secretarias estaduais de agricultura.
No terceiro pressuposto, as decisões sobre os valores e a tipologia dos serviços a serem cobrados pela instituição que detém autonomia operacional sobre o sistema de qualidade (incluindo a defesa agropecuária) devem ser da competência exclusiva do ministro do MAPA no plano federal e dos secretários da agricultura no plano estadual. As taxas nesse caso, por serem compulsórias e obrigatórias, correspondem a instrumentos de natureza tributária e não devem ser objeto de delegação de competência por interferirem de forma direta nos custos das cadeias de produção da agricultura.
É preciso considerar, ainda, a política de recursos humanos com remuneração adequada ao exercício de função indelegável do Estado e sujeita a operar com atividades de elevados valores econômicos. Essas premissas são fundamentais para que essa ação pública seja executada com eficiência e controle social, de maneira a atender aos preceitos de governabilidade, dentro dos contornos do Estado Democrático de Direito.
Por isso, instituições e instâncias distintas devem ser construídas para cada função precípua, com controles sociais objetivos e espaços para o pleno exercício da cidadania. Nesse redesenho, as análises laboratoriais devem ser enfocadas pela estrutura governamental como prioridade para a competitividade da agricultura. Não apenas se deve certificar a qualidade rastreada do produto nacional mas também definir parâmetros para o estabelecimento de barreiras não-tarifárias a fim de evitar riscos à agricultura nacional e ao consumidor brasileiro em função de importações de produtos.
O aprimoramento da legislação da defesa da agricultura exige constante avanço da capacidade e da qualidade das análises e das estruturas laboratoriais, conferindo maior rapidez e precisão, além de maior credibilidade no comércio internacional. Daí a necessidade de uma política de construção de redes de laboratórios para prestação de serviços definindo de forma explícita o espaço para o público e para o privado. Conquanto sejam fundamentais, as estruturas públicas não podem exercer o monopólio da realização das análises laboratoriais. Devem, sim, estruturar mecanismos de franquia e certificação de qualidade laboratorial que permitam, via monitoramento dos resultados, a consolidação de rede privada e descentralizada de análise laboratorial.
Isto porque não existem recursos orçamentários suficientes, nem no governo federal e muito menos ainda nos governos estaduais, para sustentar a execução desses serviços pela estrutura pública. A ela devem ser reservadas apenas as análises essenciais não cobertas pelo setor privado (para alguns pequenos empreendimentos socialmente estratégicos, por exemplo) e as de monitoramento da rede privada (contraprovas), cumprindo procedimentos explicitados na edificação da rede de laboratórios certificados.
Ademais, dada a definição conceitual de separação de competências, da mesma forma que quem aplica a legislação de qualidade (inclusive defesa sanitária) não deva fazer a prova laboratorial, não faz sentido quem produz analisar e certificar seu próprio produto. Isto tem de ser feito com exigência de laboratório independente.
Os recursos públicos devem ser utilizados na modernização da rede laboratorial mantida pelas instituições de pesquisa científicas e tecnológicas e universidades, articulando-as numa estratégia consolidada e programando investimentos nessa logística de excelência. Esta deveria ser uma prioridade para o desenvolvimento da agricultura paulista e brasileira. Fundamental incluir na agenda do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) uma linha de crédito de investimento, se possível a taxas incentivadoras, para a estruturação de rede de excelência de serviços laboratoriais privados para a agropecuária em todo o território nacional.
Da mesma maneira, configura-se a estruturação de agência de defesa da agricultura com a atribuição de gerenciar a certificação da qualidade de produtos e processos. São requisitos rastreabilidade adequada, recursos e estruturas compatíveis, políticas de recursos humanos que garantam evolução funcional, capacitação e remuneração condizentes com o exercício de uma função pública por definição.
Trata-se de contingência da modernidade, com a construção de instâncias de Governo compatíveis com o Estado da Regulação. Estas devem ser capazes de enfrentar o desafio de empreender um novo ciclo de desenvolvimento da agricultura (paulista e nacional) que se constituiu líder mundial na produção tropical. 4
1 Ver GONÇALVES, José S. Qualidade certificada e rastreada como determinante da competitividade da agricultura: análise setorial como insumo do processo produtivo. Revista Informações Econômicas 35 (10):63-71, 2005.
2 Ver GONÇALVES, José S. Agropecuária brasileira: anos gloriosos que não voltam mais, agosto de 2006. (publicado na Homepage http//www.iea. sp.gov.br).
3 Ver sobre isso GONÇALVES, José S. & VEGRO, Celso Luis Rodrigues. Pimenta, castanha e mel: primeiras vítimas da ausência de rastreabilidade, agosto de 2006 (publicado na Homepage http//www.iea. sp.gov.br).
4 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-81/2006.
Data de Publicação: 16/08/2006
Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor