Na agropecuária a crise já faz parte do show

            A crise da agropecuária vem atingindo de forma dramática importantes segmentos da produção no campo, em especial nos grãos e fibras, mais propriamente na soja, no milho e no algodão. Face aos preços internacionais elevados, entretanto, outras atividades econômicas ampliam o ritmo de expansão, ganhando território em função de que são reduzidos os obstáculos pela baixa rentabilidade das lavouras e criações até então existentes nos respectivos horizontes próximos.
            Na agropecuária paulista, têm-se o caso da cana para indústria, estimulada pelos preços externos do açúcar e do álcool. Com isso, ela avança sobre antigas áreas de grãos/fibras e pastagens, em especial a oeste e a nordeste do espaço geográfico estadual. A dimensão da crise assume, assim, contornos de distinção quanto à sua localidade, muito embora se apresente nítida sua dimensão no campo e seja necessário evidenciar seus impactos em atividades não-agropecuárias da agricultura.
            Na agropecuária paulista, a crise representa a ruptura com um consistente processo de expansão que se havia iniciado em 1999, na medida em que ganhou força com a mudança da política cambial executada no início desse anos e que levou à desvalorização da moeda nacional nos anos seguintes. Os impactos foram expressivos, tanto assim que o valor da produção agropecuária, em valores constantes, evoluiu de forma persistente e consistente dos R$ 21,0 bilhões em 1999 para R$ 30,0 bilhões em 2004. Com a reversão da tendência cambial para valorização da moeda nacional desde a metade de 2004, a renda agropecuária bruta apresenta leve recuo em 2005, atingindo R$ 29,9 bilhões (figura 1).

Figura 1 - Evolução do valor da produção da agropecuária paulista, 1997-2005 


Fonte: dados do Instituto de Economia Agrícola (Banco de Dados), expressos em valores constantes médios de 2005, após deflacionamento com uso do IPCA do IBGE


            A crise recente representa um represamento das expectativas futuras, que, embaladas por crescimento continuado e significativo, vislumbravam resultados setoriais magníficos a médio prazo. Dessa forma, mais que sua magnitude, representa uma aterrissagem forçada na realidade de uma nação ainda com graves restrições macroeconômicas à sua competitividade global e, com isso, de várias atividades econômicas.
            Há que se destacar, entretanto, a peculiaridade da composição de atividades econômicas da agropecuária paulista em função do desempenho da cana para indústria, que desde o ano agrícola 2002/2003 vem sustentando a agropecuária estadual ao evoluir de R$ 7,3 bilhões em 2003 para R$ 10,8 bilhões em 2005. Enquanto isso, as demais atividades, cuja renda bruta gerada em 1997 (R$ 13,7 bilhões) vinha aumentando desde então, atingem seu teto em 2003 (R$ 20,8 bilhões). A partir daí, apresentam manutenção da renda em 2004 e queda em 2005, para alcançar R$ 19,1 bilhões (figura 2). 
  
        Figura 2 - Evolução do valor da produção da agropecuária paulista, cana e demais atividades, 1997-2005

Fonte: dados do Instituto de Economia Agrícola (Banco de Dados), expressos em valores constantes médios de 2005, após deflacionamento com uso do IPCA do IBGE


            Aí está a razão objetiva pela qual a substituição de pastagens e lavouras por plantios de cana tem se dado em ritmo intenso em várias regiões paulistas. Destaquem-se os efeitos estruturais na medida em que a monocultura canavieira implica numa reestruturação profunda das economias locais. O resultado é perda de sentido econômico para ampla gama do comércio e dos serviços associados às lavouras e criações, até então existente como assistência técnica (planejamento produtivo, contábil, trabalhista e econômico), revenda de insumos e máquinas, oficinas de manutenção, atacadistas e comerciantes, dentre outros.
            Além disso, trata-se de uma mudança que veio para ficar no médio prazo, pois cada lavoura de cana implantada ocupará o espaço físico por no mínimo uma década. As condições favoráveis do mercado internacional do açúcar e do álcool podem ampliar de forma significativa o tempo de vigência desse dinamismo canavieiro.
            Ao estar associado ao aumento da renda gerada pela cana para indústria, o desempenho recente da agropecuária paulista decorre do consistente avanço da balança comercial dos agronegócios estaduais, também impulsionada pela mudança na política cambial. As importações recuaram de US$ 5,6 bilhões em 1997 para o piso de US$ 3,0 bilhões e, mesmo com a valorização recente da moeda brasileira, avançaram para apenas US$ 3,8 bilhões em 2005. Por sua vez, as exportações, que haviam recuado de US$ 6,4 bilhões em 1997 para US$ 5,5 bilhões em 2000, mais que duplicaram desde então, para alcançarem US$ 11,7 bilhões em 2005. Os saldos comerciais dos agronegócios decuplicaram ao saltar de US$ 800 milhões em 1997 para US$ 8,0 bilhões em 2005 (figura 3). 
  
                          Figura 3 - Evolução da balança comercial dos agronegócios paulistas, 1997-2005

Fonte: IEA/APTA/SAA, dados básicos da SECEX/MDIC, expressos em US$ bilhões

            Em síntese, as exportações explicam o crescimento da renda da agropecuária paulista, mesmo porque os produtos da agroindústria sucroalcooleira têm papel determinante nessas vendas externas. De outro lado, a desvalorização da moeda brasileira em 2000-2004 alavancou a competitividade setorial. Isto induziu um surto modernizador que vem garantindo a persistência desse desempenho comercial após a queda da taxa de câmbio verificada desde a metade de 2004, com a notável ajuda dos preços remuneradores para o açúcar, o álcool e, em níveis inferiores mas relevantes, o suco de laranja no mercado internacional. Tratam-se de produtos estratégicos na composição da renda bruta da agropecuária paulista.
            Ainda que na agropecuária paulista, como mostram os indicadores econômicos macro-setoriais, não seja perceptível de forma nítida a profundidade da crise, há que se estar atento para os seus efeitos, como aqueles já mencionados pela mudança na composição de culturas face ao avanço canavieiro. Mas há outros corolários graves que conformam uma perenização de expectativas pessimistas em substituição ao otimismo quase sempre exacerbado do período imediatamente anterior à crise.
            Essa situação pode redundar, quase que invariavelmente, numa menor propensão a investir, o que implicaria numa freada no ritmo de modernização. O resultado seriam menores ganhos de competitividade e piora, em casos extremos, na perda dessa condição pelo sucateamento definitivo de estruturas produtivas consolidadas.
            Um termômetro dessas expectativas consiste nas feiras de tecnologia avançada como a Agrishow Ribeirão Preto, uma das mais importantes no contexto mundial e, com certeza, a mais relevante para a agricultura tropical. A evolução do número de visitantes, dos 43,5 mil em 1996 para os 156,0 mil em 2004, compõe a fase de exacerbação das expectativas favoráveis, enquanto a queda para as 115,0 mil pessoas presentes em 2006 corrobora a reversão daquela aposta otimista (figura 4).

Figura 4 - Evolução do número de visitantes da feira de tecnologia Agrishow Ribeirão Preto, 1996-2006

Fonte: dados coletados para os vários anos a partir da repercussão na mídia paulistana

            O menor interesse em tecnologias avançadas conduz à indesejável situação de menor propensão a investir em ganhos de competitividade e/ou ampliação da capacidade produtiva. Isso se revela de forma dramática nos indicadores de negócios fechados na feira, que mostra o elevado recuo, em valores constantes, de R$ 2,0 bilhões em 2004 para R$ 500 milhões em 2006 (figura 5).

Figura 5 - Evolução do valor dos negócios da feira de tecnologia Agrishow Ribeirão Preto, 2004-2006

Fonte: dados coletados para os vários anos a partir da repercussão na mídia paulistana

            Esse último indicador revela o retrato do desânimo que tomou conta de amplos segmentos da agropecuária brasileira, em especial os mais atingidos pela crise representados pelas commodities algodão, soja e milho.
            Mas outras inferências relevantes podem ser feitas do desempenho da Agrishow Ribeirão Preto enquanto feira de tecnologia avançada estratégica para a agropecuária. Menor interesse revelado na menor presença de público e menor volume de negócios realizados na feira atingem de forma decisiva a formação de expectativas para o futuro de um segmento essencial para a competitividade da agricultura brasileira, representado pela agroindústria de bens de capital para a agropecuária, elemento indutor e garantidor da modernidade.
            Um diferencial que alicerça as expectativas futuras de liderança competitiva da agricultura brasileira na suas principais commodities está exatamente na constituição do moderno núcleo endógeno de produção de máquinas, implementos e equipamentos compatíveis com a agricultura tropical. As condições de trabalho agropecuário em solos tropicais são muito mais abrasivas que a dos temperados, exigindo inovações próprias que foram conquistadas de forma brilhante pela agroindústria nacional de máquinas, implementos e equipamentos agropecuários. Trata-se de algo que de forma alguma pode ser perdido sob pena de comprometer o futuro.
            Confere maior dramaticidade à magnitude das expectativas pessimistas para grãos e fibras a divulgação de que a Agrishow Ribeirão Preto 2006 só atingiu os patamares observados em função da proporção dos negócios para a cadeia de produção de cana para indústria, ainda que com esse desempenho aquém do desejável para a construção de avanços competitivos na agricultura,. Há que se encontrar um caminho com rapidez para a conjuntura e para a estrutura, a fim de que ao menos instrumentos institucionais consistentes com a gestão da crise sejam construídos. Caso contrário, pode estar sendo comprometido o futuro.
            Nada contra a cana para indústria que responde não apenas pelo dinamismo da agropecuária paulista da atualidade mas também da indústria. Afinal, 'os dois índices de emprego industrial de São Paulo registraram em abril o melhor desempenho do ano e a quarta alta consecutiva na criação de vagas. O principal responsável pelo desempenho do emprego industrial paulista é, disparado, o setor de açúcar e álcool, puxado não apenas pelo combustível, mas também pelo uso do açúcar pela indústria alimentícia'1.
            Assim, mesmo na performance da indústria paulista, a agricultura ocupa papel relevante com base na agroindústria sucroalcooleira e isso é auspicioso em economias continentais. Mas não apenas da cana pode depender a renda agropecuária paulista. E, numa situação em que a crise passa a fazer parte do show e a modernidade entra em cana, o sonho de liderança da agricultura tropical brasileira pode estar se convertendo num pesadelo2

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1 Ver 'Açúcar e álcool puxam criação de vagas em SP' disponível em http://www.estadao.com.br/ agronegocios/noticias/2006/mai/11/188.htm
2 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-51/2006.
 


Data de Publicação: 29/05/2006

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor