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Grãos e fibras: competitividade sucumbe à crise e revela atraso institucional
A questão da modernidade na agricultura, como em toda sociedade brasileira, tem sido enfocada de forma superficial, impedindo a leitura correta da consistência e do tamanho dos movimentos cíclicos de crise e euforia do desempenho setorial. No passado recentíssimo, a euforia nos conduzia e a opinião pública era bombardeada por profusão de notícias que envolviam supersafras e destacavam os magníficos resultados em termos de produtividade, auferidos pela agropecuária brasileira de grãos e fibras. _________________________
No presente, nem sequer se atenta com cuidado para o fato de que, em três safras seguidas, a quantidade total produzida emperrou, não repetindo o volume de 124 milhões de toneladas de grãos da safra 2002/03. Curiosamente, esta é a herança mais consistente deixada pelo governo anterior que, portanto, também nesse aspecto está longe de ser maldita.
Na mesma toada, como exemplo, a competitividade magnífica da produção brasileira de algodão em pluma estaria sendo minada pela política de subsídios norte-americana. Isto levou os brasileiros a apresentar contestação junto à Organização Mundial do Comércio (OMC), afinal vitoriosa com a condenação da política estadunidense.
Tal se processou sem ter em conta que o Brasil era importador de algodão até 1999. A auto-suficiência foi obtida com a adoção do câmbio flutuante a partir de janeiro desse ano, o que acabou elevando substancialmente a taxa de câmbio nos anos seguintes, estimulando o algodão dos cerrados.
A reversão da tendência de crescimento da taxa de câmbio, que caiu de forma significativa, associada a preços internacionais cadentes, produziu uma crise sem precedentes na lavoura algodoeira. Na safra 2005/06, essa atividade sofreu redução substancial da quantidade produzida, abrindo espaço para um novo surto importador da pluma. Noutras palavras, pelo simples fato da ocorrência do óbvio, na medida em que o câmbio flutuante flutua, o que parecia sólido desmanchou-se no ar.
Muitos outros exemplos poderiam ser listados na agropecuária brasileira, mas apenas por esse caso pode verificar-se que a modernidade produtiva nem sempre corresponde à modernidade competitiva. A competitividade agropecuária implica necessariamente em dois fatores para ser sustentável: produtividade e institucionalidade.
Nos grãos e fibras, a produtividade do trabalho envolve dois dos principais fatores econômicos. Pode ser alcançada pelo incremento das produtividades da terra (quilogramas por hectare) e operacional (hectare por homem-dia), cuja multiplicação acaba gerando maior quantidade produzida por homem-dia.
As inovações tecnológicas em insumos e máquinas produziram e vêm produzindo magníficos avanços na produtividade do trabalho na agropecuária de grãos e fibras. Essa ocorrência se manifesta basicamente por duas razões: a produção brasileira dessas commodities evoluiu percentualmente mais que a expansão da área plantada e máquinas cada vez mais potentes, bem como a intensificação da mecanização em todas as operações produtivas do plantio à colheita, fizeram a produção dessas commodities crescer em proporção ainda mais expressiva que a do pessoal ocupado.
Se isto consiste no único retrato da modernidade, a agropecuária brasileira de grãos e fibras mostra-se competitiva no contexto das nações. Mas essa face moderna da agropecuária de grãos e fibras, sozinha, infelizmente, não garante a competitividade. Trata-se de condição necessária mas não suficiente, fato nem sempre colocado nos devidos termos na mais recente reprise do 'Brasil, ame-o ou deixe-o' que envolveu a agricultura brasileira na fase de euforia de ainda ontem. Há que se construir uma institucionalidade compatível com essa modernidade produtiva, o que, para desespero dos próceres do liberalismo e do mercado auto-regulável, exige a presença do Estado.
Essa exigência da modernidade ainda não foi construída no Brasil. Isto, mesmo sem levar em conta que a modernidade agropecuária representou perda de empregos para os trabalhadores, conquanto tenha produzido empregos qualificados e melhor remunerados para poucos. Também não contabiliza que mais de 60 mil produtores desapareceram apenas no algodão. Dos mais de 61 mil que produziam um milhão de toneladas de pluma no algodão meridional (São Paulo e Paraná) dos anos 1980, cerca de mil deles produzem atualmente a mesma quantidade no algodão dos cerrados (Mato Grosso e Oeste da Bahia).
Mesmo que isso seja assumido como contingência do desenvolvimento, na crença que na continuidade haveria ampliação das oportunidades de empregos melhores senão para os pais ao menos para os filhos (desde que se invista em educação), tal não basta para garantir a competitividade sustentável na agropecuária de grãos e fibras. É preciso, portanto, construir o edifício da institucionalidade adequada.
Mas essa modernidade institucional não representa conquista fácil numa sociedade de história lenta, em que a revolução burguesa se arrasta por séculos, o que acaba por produzir transformações sem ruptura. Isto ocorre em todos os horizontes da vida brasileira. Nas mudanças econômicas a modernidade produtiva reforça, ao invés de superar, os resquícios do atraso. Não importa, do ponto de vista prático, se os elementos do atraso são concebidos como 'resquícios feudais' ou 'coloniais-escravistas', desde que entendidos como formadores de um desenvolvimento capitalista tardio no tempo histórico e atrasado na concepção institucional1.
O sociólogo e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, ao responder porque políticos brasileiros não dizem ser de direita, define, tanto no plano operacional quanto no teórico, que 'no Brasil, mais que conservadorismo, temos uma mentalidade atrasada. O pensamento conservador filia-se a uma tradição ocidental que estabelece como pilar da ordem a família, a propriedade e os costumes. O nosso conservadorismo não é nada disso. Tem a ver com clientelismo, patrimonialismo, uso indevido de recursos do Estado. Ele não é composto de um ideário, e sim de aproveitadores. Por que a 'direita' no Brasil apóia todos os governos, não importa qual? ... Essa gente toda só quer estar perto do Estado e tirar vantagem dele'2.
Superar essa visão representa o desafio da modernidade institucional, o que necessariamente exige também ultrapassar o outro extremo perverso do corporativismo de todas as matizes.
Esse conservadorismo anacrônico reflete-se numa institucionalidade jurássica que permeia a maioria das discussões nacionais e o desenho de intervenções públicas. O Plano de Metas JK (1957-1961) foi financiado com base no imposto inflacionário para driblar a resistência dos segmentos atrasados da elite brasileira 3. O denominado Milagre Brasileiro foi alavancado pelo crescente endividamento público, o que acabou por levar à crise das finanças públicas do final dos anos 1970, que até hoje compromete a capacidade de ação estatal.
Essa mentalidade de promover a 'privatização do Estado' não tem impedido que o denominado 'segmento da produção' – em especial os 'próceres do atraso'- realize a condenação da elevada carga tributária brasileira. Não leva em conta que, para realizar os desenhos de políticas que propugnam, se exigem maiores montantes de recursos públicos, o que, em última análise, conduziria a carga tributária ainda mais elevada.
Por certo, a carga tributária brasileira ultrapassou o limite do suportável, mas isso decorre de uma estrutura de dispêndios públicos rígida para baixo. Isto ocorre em função de decisões de gastos do passado não financiadas de forma consistente e que cresceram como proporção da riqueza nacional em razão das baixas taxas de crescimento econômico das últimas décadas.
Entretanto, os indicadores atuais da carga tributária formal, ao computar quase que somente os recursos fiscais contabilizados, não podem ser comparados com os do passado. Isto exatamente porque predominava, nos períodos de inflação elevada dos anos 1980 e início da década de 1990, o financiamento da ação pública lastreado em 'recursos fiscais não contabilizados' em função do imposto inflacionário.
Além disso, um sem-número de 'esqueletos financeiros' foi incorporado ao estoque da dívida pública em função da maior transparência dos gastos públicos e do regime de austeridade fiscal adotado com maior consistência na entrada do século XXI. Afinal, a lei de responsabilidade da gestão fiscal (Lei Federal n° 101) é datada de 4 de maio de 2000.
Não há, pois, parâmetros confiáveis para avaliar o real significado da evolução da carga tributária, muito menos dos gastos públicos, com base apenas nos 'recursos fiscais contabilizados' com estatísticas para o período anterior a 2001. A solução do problema da carga tributária elevada exige, mais que demagogia, o enfrentamento da necessidade premente de realizar reformas institucionais no aparelho estatal, de forma concomitante com a reforma tributária, que inclusive envolva um novo pacto federativo4.
Na agropecuária, a evolução do padrão de financiamento segue a mesma lógica. O credito subsidiado dos anos 1960 e 1970 exigiu aportes de recursos governamentais, que elevaram o estoque da dívida pública. Esse foi o padrão de financiamento que propiciou a modernização da agropecuária e a estruturação das agroindústrias de insumos e máquinas, bem como das agroindústrias de processamento e de alimentos.
Noutras palavras, parte relevante do estoque da dívida pública atual decorre de dispêndios públicos passados de sustentação de relevantes investimentos privados na agropecuária a juros negativos, o que promoveu significativa mudança estrutural na economia e na sociedade brasileira. Logo, a dívida pública não reflete somente gastos públicos improdutivos. Talvez, improdutiva tenha sido a continuidade da prática de transformações sem rupturas que postergou o equacionamento da crise fiscal (e com isso da dívida pública) desde o início da década de 1980.
Em continuidade a essa prática histórica de pseudomorfoses, o próprio alicerce do novo padrão de financiamento em gestação deu-se sob a égide da alocação de recursos públicos. Tanto que as securitizações das dívidas nos anos 1990 envolveram substantivas transferências de recursos para que os agropecuaristas pudessem tornar-se adimplentes. Com isso, puderam obter financiamentos para investimentos nos fundos públicos administrados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Esse foi o mecanismo que sustentou o ciclo recente de modernidade da produção brasileira de grãos e fibras, impulsionada pelos preços internos tornados ainda mais atraentes pela desvalorização da moeda brasileira pós-1999.
A crise atual, que envolve a produção de grãos e fibras, mostra a fragilidade institucional dessa agropecuária ainda longe da competitividade sustentável, porque dependente de recursos públicos. Isto vai muito além do efeito dos 'mecanismos de mercado' em função da oferta e demanda de dólar que determina o patamar da taxa de câmbio.
A reivindicação de rolagem das dívidas dos agropecuaristas está sendo feita de olho em subsídios a serem suportados por recursos públicos, a maior parcela deles vinculados a fundos dos trabalhadores. Mas a questão se mostra mais complexa num Estado em penúria fiscal, sem poder elevar a carga tributária e sem os instrumentos institucionais capazes de gerir a crise.
A maioria dos financiamentos por venda antecipada e por compra de insumos prazo safra não representa contratos formais com o setor público para que pudessem ser alterados de forma unilateral por decisão governamental. Por outro lado, essa intervenção pública em contratos privados implica em arcar com os ônus ao exigir a injeção de recursos públicos inexistentes.
O aprendizado a ser retirado dessa crise é que, numa economia global sob regime de câmbio flutuante, o ajuste tem de ser feito a mercado sem aportes de recursos públicos. Para isso, há que se avançar na construção de uma institucionalidade capaz de sustentar o gerenciamento mais consistente das crises.
E os mecanismos estão disponíveis. Exemplos são os títulos financeiros para custeio das safras e as possibilidades de realizar hedge em bolsas de mercadorias para administrar riscos de preços. Basta, portanto, superar os limites do atraso e avançar na inexorável inserção da agropecuária no processo de financeirização da riqueza.
Assustado com 'fantasmas' a respeito do sistema financeiro, cria-se no Brasil um tipo de capitalista culturalmente complicado e pouco afeito a avançar, que tem medo e repugna o que nunca experimentou e, com isso, não entrando nas modernas instituições capitalistas como as bolsas de mercadorias, fundamentais no capitalismo financeiro contemporâneo.
Mais ainda, essa institucionalidade deve implicar no redesenho do Estado, na redefinição das funções e das políticas públicas. Esse novo desenho deve deixar o crédito cada vez mais a cargo do mercado e permitir que se enfrente a verdadeira especificidade da agropecuária, representada pelos riscos climáticos e agronômicos, com base num necessário e consistente sistema de seguro da produção agropecuária, o que tornaria mais estável a renda setorial.
No plano patrimonial, há que se ressuscitar o 'capital morto' representado pela propriedade da terra, criando títulos fundiários com execução extra-judicial que sejam alavancas de um mercado secundário, na mesma medida em que se dê a garantia jurídica inquestionável da propriedade. Em função disso, esses títulos fundiários de melhor qualidade pela garantia plena de direitos devem lastrear o financiamento do investimento a custos muito mais baratos que os vigentes pela garantia dos recebíveis.
Na questão tributária, mais que o tamanho das alíquotas, mostra-se crucial para a agropecuária a eliminação dos constrangimentos derivados do principal imposto sobre o valor adicionado (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e de Serviços - ICMS), com a adoção do princípio do destino. Desenhado pelo princípio da origem, este tributo estadual gera um intrincado e ineficiente emaranhado tributário.
Numa realidade em que os anos 1970 não voltam mais e o Estado não tem recursos substanciais a serem aplicados, como imperativo da modernidade competitiva há que se apostar na mudança da institucionalidade. Para isso, a agenda não inclui como assunto principal a renegociação de dívidas sobre as quais o Poder Público não tem competência por serem contratos da órbita privada. Nem tampouco contempla mais renúncias fiscais que não serão efetivas pelos limites das contas públicas, com recursos sempre inferiores ao necessário e superiores ao que o Tesouro pode dar.
Há que se olhar para o novo padrão de financiamento que sustente um novo ciclo de desenvolvimento, sem contar com recursos governamentais que devam ter aplicações mais nobres e estruturantes. Para isso, há que se promover a reengenharia da institucionalidade atual, sem pretensões exageradas, ao menos para que, enfim, o Brasil avance para o conservadorismo, como superação do atraso.5
1 Essa característica da história da sociedade brasileira está presente na análise da revolução burguesa brasileira de Florestan Fernandes, na visão de sociedade de história lenta de José de Souza Martins, na idéia de mudanças sem ruptura de Ignácio Rangel e na concepção de capitalismo tardio de João Manuel Cardoso de Mello, cada qual dentro de seu objeto e universo conceitual. Para a agricultura, ver GONÇALVES, José S. Mudar para manter: pseudomorfose da agricultura brasileira. , SAA, São Paulo, 1999. 374 p.
2 Entrevista de Fernando Henrique Cardoso a Márcio Sabino: 'Me considero de esquerda', publicada na Revista Veja de 22 de marco de 2006. págs 98-106.
3 Sobre o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, ver o clássico de LESSA, Carlos. Quinze anos de política econômica. Campinas, UNICAMP, 1975 95p.
4 De um lado, há que se equacionar os diversos paliativos que geram distorções alocativas e distributivas brutais sem resultados objetivos em termos de desenvolvimento, principalmente aqueles associados às renúncias fiscais. De outro, há que se equacionar a absoluta incapacidade estatal de realizar ações pró-ativas para o desenvolvimento. Para uma visão desses aspectos inerentes à agropecuária, para a crítica das práticas de renúncias fiscais, ver GONÇALVES, José S. Carga tributária elevada, renúncias fiscais e desempenho da agricultura. IEA- APTA, São Paulo, abril de 2006. (publicado na Homepage http//www.iea.sp.gov.br). Para uma visão da capacidade estatal de realizar políticas pró-ativas, ver GONÇALVES, José Sidnei & SOUZA, Sueli Alves M. Crise das finanças públicas: redução das aplicações orçamentárias na função agricultura afetam as três instâncias federativas. ANAIS DA V INTERNATIONAL PENSA CONFERENCE ON AGRI-FOODS CHAIN/ NETWORKS ECONOMICS AND MANAGEMENT, realizada em Ribeirão Preto (SP), de 27 a 29/07/2005, pelo Programa de Estudos do Sistema Agroindustrial (PENSA) da Universidade de São Paulo (USP) (Resumos e integra em CD) (disponibilizado na íntegra em www.iea.sp.gov.br ).
5 Artigo cadastrado no CCTC-IEA sob número HP-39/2006.
Data de Publicação: 28/04/2006
Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor