Carga tributária elevada, renúncias fiscais e desempenho da agricultura

            A elevada carga tributária tem levado os governos, federal e estaduais, a adotarem medidas anunciadas como práticas de 'baixar impostos para estimular a produção e beneficiar os consumidores'. Isto tem atingido a agricultura, em especial no segmento agropecuário das cadeias da produção setorial.
            Entretanto, no afã da correta condenação, não apenas da magnitude da carga tributária brasileira como também de sua enorme regressividade, parte-se para a defesa de renúncias fiscais, fugindo da discussão estrutural e mais profunda das distorções do sistema tributário. Isto tem complicado ainda mais o próprio e necessário processo de reengenharia tributária, que tenhapor base uma reforma fiscal consistente que encaminhe o Brasil para ciclos sustentáveis de desenvolvimento1.
            Várias unidades da federação, na prática de guerra fiscal, têm lançado mão das renúncias tributárias como políticas governamentais. Exemplo dessas políticas é o Programa de Incentivo à Cultura do Algodão (PROALMAT), do Estado de Mato Grosso, criado pela Lei Estadual 6.883 de 02/06/1997 e regulamentado pelo Decreto nº 1.589 de 18/07/1997, que fornece redução de 75% do ICMS do produto. Em moldes similares, tem-se o Programa de Incentivo ao Algodão na Região Oeste do Estado da Bahia (PROALBA). Ambos fizeram dessas unidades da federação brasileira as maiores produtoras brasileiras de algodão.
            O PROALMAT teve início em 1997, em pleno surto de importação, com transferências aos produtores da ordem de R$ 7,0 milhões, valor esse que cresce de maneira significativa até atingir R$ 205,4 milhões em 2004, com o recuo para R$ 114,4 milhões em 2005, em decorrência da conjuntura desfavorável dos preços do algodão em pluma2. Na Bahia, os incentivos aos cotonicultores começaram em 2002 com R$ 9,0 milhões e, em 2004, já atingiam R$ 48,2 milhões apenas no PROALBA3.
            Apenas esses dois principais estados brasileiros produtores de algodão responderam, em 2004, pelo volume de incentivo aos produtores da ordem de R$ 253,6 milhões. O montante caiu para R$ 150,0 milhões em 2005 face à menor produção, devido a problemas climáticos, e aos preços menores, como resultado da elevação dos estoques internacionais.
            Isto ocorreu não sem antes promover mais uma epopéia da agropecuária itinerante brasileira, que se move num nomadismo quase ameríndio por sucessivas fronteiras na trilha da criação de eldorados estimulados por práticas pretéritas e típicas da fase histórica da acumulação primitiva. Assim, não se fincam raízes consistentes com um segmento competitivo estruturalmente estabelecido, a exemplo do que ocorre nas principais agriculturas mundiais.
            Os efeitos regressivos na agropecuária nacional da implementação desses programas mostram-se inequívocos ao se comparar a cotonicultura matogrossense atual com a paranaense do final dos anos 1980, também considerada moderna e uma das mais competitivas do mundo na realidade de então. A área média dos algodoais familiares paranaenses, para cultivar a mesma superfície algodoeira de Mato Grosso no ano agrícola 2003/04, mostra que seriam necessários mais de 63,2 mil cotonicultores, ao invés dos 530 que foram beneficiados pelo PROALMAT no mesmo ano; ou seja, 62,7 mil produtores a menos.
            Na história recente da agropecuária brasileira nada teve tamanha dimensão de regressividade. Mas, ainda assim, quando perde competitividade no cenário internacional, a magnitude da crise leva ao desespero os próceres da estruturação dos eldorados que entram em decadência.
            Na colheita da safra 2005/06, numa realidade de preços baixos, fica patente a fragilidade estrutural e institucional daquela que seria a mais competitiva agropecuária de grãos e fibras do mundo, que poderia em poucos anos colocar o Brasil na liderança dentre as nações. Isto fica nítido na notícia de que 'a Procuradoria-Geral do Mato Grosso deve concluir nos próximos dias um estudo para avaliar se é possível editar um decreto de situação de emergência diante da crise que o agronegócio vem enfrentando, que repercute diretamente na queda da arrecadação. Os estudo é coordenado pela procuradoria e elaborado em conjunto com secretarias de Estado. Segundo a secretaria de comunicação do governo do Mato Grosso, a medida, caso efetivada, seria algo inédito no País... Uma vez editado e sendo reconhecido pela União, o decreto favoreceria tanto o setor produtivo, que poderia postergar as dívidas do crédito rural, como o Estado de Mato Grosso, que teria a possibilidade de renegociar a prestação da dívida pública, cuja parcela anual gira em torno de R$ 700 milhões'4.
            Fica patente, nesse fato, o reconhecimento explícito de que mecanismos de renúncia fiscal não produzem a sustentabilidade competitiva de longo prazo. Ao contrário, podem tornar ainda mais dramáticas as crises na medida em que não existem fontes públicas para políticas compensatórias, mesmo que tópicas e conjunturais.
            Há, portanto, que se pensar o Brasil numa visão de longo prazo e enfrentar, de forma mais consistente, tanto a questão fiscal no seu todo quanto a tributária em particular. Nada contra a construção de uma moderna e pujante agropecuária de grãos e fibras na fronteira de expansão, desde que seja alargada com desenhos menos regressivos e concepções mais coerentes de políticas públicas de incentivo.
            As práticas de renúncias fiscais para estimular a agropecuária, numa realidade nacional de aperto pela escassez de recursos públicos, não têm sido privilégio dos governos das unidades da federação da fronteira de expansão. O Governo do Estado de São Paulo tomou, nos anos recentes, uma série de medidas com esse intuito, dentro da lógica de que menos impostos beneficiariam o consumidor e estimularia a produção.
            Uma das medidas consiste na redução da alíquota do ICMS do álcool, que não impediu às usinas de absorver integralmente esse incentivo fiscal, nada repassando aos preços finais, bem como de, em plena safra, exercer o poder de oligopólio, elevando suas margens e majorando os preços para os consumidores, com desalento para a população5. Ainda que a medida tenha produzido elevação da arrecadação ao ampliar o consumo em função do significativo crescimento da frota de veículos bi-combustíveis.
            Do ponto de vista tributário, em cadeias de produção dominadas por grandes empresas como é o caso, menos impostos reproduzem-se em maiores preços para os consumidores, o que demonstra que não basta simplesmente reduzir alíquotas. Mas não apenas essa medida de renúncia fiscal do Governo do Estado de São Paulo produziu resultados muito distintos dos anunciados quando da sua efetivação.
            Há também o caso do pão francês, produto muito sensível uma vez que é consumido quase todo dia pela maioria das famílias. Em maio de 2005, anunciou-se que 'a farinha de trigo deverá ter alíquota zero, em São Paulo, a partir desta semana, com reflexos no preço final do produto e em outros derivados em aproximadamente um mês. A redução da alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de 7% para 0% da farinha, pão francês, macarrão e bolacha sem recheio' e que o 'preço do macarrão e do pãozinho deverá cair 5%'6.
            No apoio à medida, afirmou-se que 'suas conseqüências não se esgotam nos benefícios diretos aos consumidores de farinha de trigo e de pão francês. Vão além, pois essa redução é parte de um programa mais amplo do governo paulista que objetiva, ao mesmo tempo, dar maior competitividade ao setor produtivo instalado no Estado e responder, com medidas concretas e que beneficiam a população, às práticas tributárias predatórias que fazem parte da guerra fiscal contra São Paulo desencadeada por alguns governos estaduais'7.
            Mais ainda, preconizava-se que esses efeitos seriam disseminados pela cadeia de produção, de maneira a atingir os triticultores. E mais: 'os produtores paulistas deverão aumentar a produção de sementes de trigo e incrementar a área plantada dos cerca de 50 mil hectares para 400 mil hectares nos próximos cinco anos... a área plantada e a produção de trigo no Estado deve crescer 20% neste ano. Na safra passada, a área plantada em São Paulo ficou em 54 mil hectares, com uma produção de 150 mil toneladas. As apostas no trigo como alternativa à produção estadual de inverno ocorrem em um momento em que o governo paulista poderá aprovar o projeto de lei número 318, de 2005 que isenta de ICMS as operações com trigo em grão, farinha de trigo, e produtos derivados (pão francês, bolachas não recheadas e macarrão), hoje em 7%, no Estado'8.
            No momento da aprovação do projeto de lei, em agosto de 2005, esperava-se que 'sem ICMS, o preço do pãozinho deve cair de 5% a 10%'9. Como teria evoluído os preços para os consumidores paulistanos e o estímulo à produção paulista de trigo em função dessa medida de renúncia fiscal?
            Os preços do pão francês no mercado paulistano em moeda nacional (R$ por pãozinho de 50 gramas), desde agosto de 2005, mantiveram-se em valores nominais e apresentaram queda em valores constantes na medida em que não acompanharam os índices de inflação. Já os preços médios da farinha de trigo não sofreram alterações significativas. Quedas relevantes, entretanto, sofreram os preços recebidos pelos triticultores, numa descendente que se inicia em julho de 2004 com o começo do atual processo de sobrevalorização cambial, por meio do qual os produtos importados como o trigo ficam mais baratos para o abastecimento nacional (figura 1).


Figura 1- Evolução dos índices de preços pagos pelos consumidores no varejo paulistano pelo pão francês e pela farinha de trigo e de preços recebidos pelos produtores paulistas de trigo, expressos em R$, janeiro de 2004 a fevereiro de 2006

 

Fonte: dados básicos do Instituto de Economia Agrícola - IEA/APTA deflacionados pelo IPCA-IBGE

            Essas informações já demonstram que as estruturas centrais da cadeia de produção do trigo não repassaram, nem para os consumidores nem para os triticultores, os diferenciais obtidos em termos de redução de impostos e nem mesmo da obtenção de produto importado mais barato.
            A avaliação do que realmente influenciou os preços pode ser feita ao analisar os preços internos expressos em dólar. Nesta situação, fica nítido que os oligopólios das estruturas centrais da cadeia de produção absorveram não apenas toda a renúncia fiscal realizada, como também todos os ganhos obtidos pelo barateamento da matéria prima, o trigo importado, em função da sobrevalorização cambial. Isso porque, em dólar, os preços pagos pela farinha de trigo e pelo pão francês por parte dos consumidores crescem de forma persistente e apenas os preços recebidos pelos produtores paulistas de trigo se mantêm no mesmo patamar. Assim, os ganhos obtidos não foram repassados aos preços nesses dois elos da cadeia de produção; ou seja, é um caso típico também de aumento persistente de margens (figura 2).


Figura 2 - Evolução dos índices de preços pagos pelos consumidores no varejo paulistano pelo pão francês e pela farinha de trigo e de preços recebidos pelos produtores paulistas de trigo, expressos em US$, janeiro de 2004 a fevereiro de 2006

 

Fonte: dados básicos do Instituto de Economia Agrícola - IEA/APTA convertidos pela taxa de câmbio mensal média do Banco Central


            Até o momento, as renúncias fiscais realizadas na cadeia de produção do trigo não beneficiaram, conforme o propalado, nem os consumidores nem os triticultores. É que as cadeias de produção da agricultura, que se modernizaram nos anos 1970, estão estruturadas nos moldes da grande empresa submetida à lógica do mercado financeiro. Estas empresas atuam como oligopólios enquanto estruturas de mercado formadoras de preços e os elos mais dispersos dessas cadeias, exatamente os consumidores e principalmente os agropecuaristas, são tomadores de preços.
            Nesta estrutura, as transferências de benefícios não obedecem à simplória lógica matemática pela qual, ao diminuir aqui, se reduz ali. Em função disso, o governo paulista reduziu suas receitas fiscais, os consumidores não pagaram menos pelo pãozinho e os triticultores não obtiveram preços mais remuneradores. E, para complementar essa série de resultados contrários às expectativas, ainda geram menos emprego agropecuário, pois, no caso do trigo paulista, 'a tendência é de que haja redução significativa na área plantada'10.
            Assim, seria muito mais efetivo, do ponto de vista distributivo e como elemento propulsor da produção e da geração de emprego e renda, que os recursos das renúncias fiscais tivessem sido transferidos para o Fundo de Expansão do Agronegócio Paulista (FEAP), notável criação do Governo do Estado de São Paulo para desenvolver o agronegócio familiar. No âmbito do FEAP, tais recursos financiariam projetos privados de desenvolvimento regional com desenhos distributivos desejáveis e mensuráveis. Aí, sim, teriam aplicação adequada do ponto de vista tanto social e quanto econômico.
            A experiência prática, tanto em termos federais quanto estaduais, demonstra o equívoco das renúncias fiscais no sentido de remendar um sistema tributário iníquo e regressivo como o brasileiro que penaliza a produção e estimula ganhos não-produtivos. Isto ainda prejudica os trabalhadores, uma vez que os 'assalariados pagam em tributos diretos no Brasil proporcionalmente o dobro do que paga quem é patrão - tanto entre os mais ricos quanto entre os mais pobres'11.
            Também - é importante frisar - há que ser equacionada a insustentável carga tributária elevada e o falido padrão de financiamento do setor público, que impedem o Estado de ser mais que o provedor de carências e o socializador de prejuízos, quando deveria ser o mobilizador das esperanças e das forças motoras do desenvolvimento. Há muito que, numa realidade iníqua e inserida em economia de grandes empresas como a brasileira, as medidas governamentais mais consistentes são aquelas definidas do lado da despesa e não do lado da receita, forma inexorável de políticas pró-ativas no sentido da redução das disparidades. A reversão de tal distorção implica em aplicar mais recursos públicos para atender um universo mais amplo de pessoas, tornando indesejáveis medidas de renúncias fiscais que beneficiam os poucos que exercem a governança das cadeias de produção. Isto apenas amplia a enorme injustiça fiscal vigente e os resultados em termos de redução da carga tributária são tópicos e insuficientes.
            O desafio, para ampliar o universo de beneficiários e promover a justiça social, consiste em fazer uma reengenharia do sistema tributário e da estrutura de dispêndios públicos, de maneira a construir as bases da necessária redução da carga tributária. Isto exige propostas mais profundas e consistentes que meros cortes na boca do caixa, tanto do lado da receita, impondo novo pacto federativo, quanto do lado da despesa, tornando imperioso reformas administrativas, que não sejam mensuradas apenas em valores monetários economizados, mas também pela eficiência alcançada por uma nova estrutura pública em termos de resultados para a sociedade.12

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1Para a agricultura, no plano federal, uma medida nesse sentido foi a Lei Kandir (Lei Complementar N.º 87, de 13 de setembro de 1996)- que desonerou do pagamento do Imposto sobre Circulação de Me4rcadorias e Serviços (ICMS) as exportações de produtos semi-elaborados e básicos, que vem sendo suportada pelas finanças estaduais pois o Governo Federal não cumpre a integralidade das compensações tributárias para as unidades da federação com participação na exportação nacional. Além disso, há o fato cada vez mais evidente de que o mecanismo adotado produz distorções estruturais, com prejuízos para a agricultura brasileira como um todo. Isto porque o tratamento diferenciado elimina o imposto incidente sobre os produtos básicos e grava os manufaturados, o que estimula ações como a venda de soja em grão para a Argentina, onde é processada e encaminhada ao mercado externo. Com isso, incentiva as transações com produtos de menor agregação de valor, o que contraria os interesses nacionais.
2 Veja-se PROALMAT Breve histórico da cultura do algodão. Programa de Incentivo ã Cultura do Algodão. Governo do Estado de Mato Grosso. www.proalmat.facual.org.br/proalmat.php . 2006. (Capturado em 16/02/2006).
3 Veja-se SEAGRI-BA Programa de Incentivo à Cultura do Algodão na Região Oeste do Estado da Bahia. Secretaria de Agricultura, Irrigação e Reforma Agrária do Estado da Bahia. 2006b. www.seagri.ba.gov.br (capturado em 16-02-2006).
4 Veja-se “MT quer decretar situação de emergência por crise agrícola”. www.estadao.com.br/ultimas/ economia/noticias/2006/mar/22/136.htm 22 de março de 2006 - 13:56.
5 Veja-se o corajoso e consistente artigo de TORQUATO, Sérgio Alves.Alta do preço do álcool: poder de oligopólio assusta consumidor. IEA- APTA, São Paulo, Abril de 2006. www.iea.sp.gov.br.  Realmente, trata-se de análise que só poderia ter sido produzida de forma independente por “pesquisador”, como retrucou um técnico sucroalcooleiro, nunca por alguém subordinado por contrato aos interesses contrariados.
6 Veja-se DANTAS, Vera. Farinha terá ICMS zero em SP.O Estado de S. Paulo - Terça-feira, 10 de maio de 2005.
7Veja-se Editorial do Jornal da Tarde “ Mais pão e mais competitividade”. Jornal da Tarde - São Paulo - Quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005.
8 Veja-se SCARAMUZZO, Mônica. Governo de SP incentiva plantio de trigo. Valor - Terça-feira, 30 de agosto de 2005.
9 Veja-se GALLO, Rodrigo. Sem ICMS, preço do pãozinho deve cair de 5% a 10%. Jornal da Tarde - Quarta-feira, 31 de agosto de 2005.
10Veja-se SILVA, José Roberto & ASSUMPÇÃO, Roberto. Trigo: área plantada deve diminuir em São Paulo IEA- APTA,São Paulo, Maio de 2006 www.iea.sp.gov.br.
11 Veja-se LIMA, Bruno. Empregado paga mais tributo direto que patrão. Folha de S. Paulo, 04/07/2005 - 09h13.
12Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-34/2006.
 

Data de Publicação: 18/04/2006

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor