Novos padrões de financiamento e de custos na agropecuária

            As transformações da agricultura, ao alterar a dinâmica agropecuária, modificam, de forma profunda, não apenas o conteúdo do processo produtivo pela revolução dos meios de produção, mas também a construção dos parâmetros de avaliação da eficiência econômica e da rentabilidade. A proliferação de diferentes operações entre agentes em cada fase do processo produtivo implica em relações contratuais e, com isso, na construção de diversos mecanismos de financiamento.
            Da mesma maneira que as inovações agronômicas e gerenciais produzem novas práticas de tomada de decisão, há necessidade de aprimoramento dos conceitos e dos procedimentos utilizados na construção de indicadores e, dentre eles, os custos das atividades agropecuárias.
            A agropecuária, que na realidade original compreendia praticamente toda a agricultura, passa progressivamente a perder participação na formação do produto setorial, com a emancipação progressiva de tarefas produtivas que geraram as agroindústrias de insumos e máquinas e de processamento de matérias-primas e de alimentos. Uma imensa gama de agroindústrias e agro-serviços passa a configurar a agricultura, que ampliou as fronteiras de reprodução do capital para mais além da agropecuária1. Com isso, gerou, mais que a troca de produtos entre a agropecuária e os demais segmentos da agricultura, a compra de fatores que impulsionam a própria produção no campo.
            Ademais, ocorre relevante mudança na configuração espacial da agricultura. Agroindústrias e agro-serviços, localizados a montante ou colocados a jusante da agropecuária, encontram-se em regiões distintas, o que aumenta a amplitude territorial das relações de troca envolvidas na mesma cadeia de produção da agricultura.
            As mudanças produtivas, portanto, suplantam o localismo dos bairros rurais e mesmo da pequenas cidades, mais que rompendo com os limites antes impostos pelas cercas e porteiras da fazenda. Nesse processo, as culturas passaram progressivamente a configurar cadeias de produção, na medida em que elementos externos à agropecuária passaram a determinar a rentabilidade desse segmento das lavouras e criações da agricultura.
            Com isso, surgiu a necessidade da estruturação de indicadores que permitissem a avaliação da rentabilidade dos empreendimentos, expressos em custos de produção que contabilizassem os imputs em termos de insumos e máquinas utilizados nas lavouras e criações. E a construção dessas cadeias de produção, enquanto espaços da reprodução ampliada do capital, necessariamente conduz as relações de troca para espaços territoriais mais abrangentes.
            Na condição original das culturas, não fazia muito sentido o conceito de custo de produção, que era desprezível na remuneração de fatores obtidos na compra de elementos externos ao campo, dada a condição quase autárquica da agropecuária, com a produção derivada quase que exclusivamente dos recursos naturais e do emprego de mão-de-obra reproduzida nas fazendas (familiar ou escrava). Dessa maneira, nessa condição de reprodução simples do capital, a renda obtida da venda de excedentes agropecuários configurava quase que exclusivamente a renda líquida, remunerando os recursos naturais utilizados e o emprego de mão-de-obra.
            A construção das cadeias de produção produz a especialização produtiva, com a agropecuária concentrando-se progressivamente em lavouras e criações para o atendimento da demanda das agroindústrias processadoras. Também produz a profissionalização da agropecuária de cujos custos depende a competitividade de toda a cadeia de produção. Neste caso, torna-se fundamental a idéia de custos de produção não apenas para mensurar a rentabilidade da produção agropecuária, verificando a sustentabilidade produtiva face aos patamares de preços, como também para o gerenciamento de conflitos e disputas entre os agentes produtivos envolvidos. Estes, mais que os agropecuaristas, envolvem agora traders (comerciantes) e agroindustriais.
            Ao mergulhar na realidade brasileira e colocar essa discussão no horizonte temporal, deve se levantar a questão das mudanças no padrão de financiamento que está intimamente ligada a mudanças produtivas das culturas para as cadeias de produção. A generalização do uso de insumos e máquinas no denominado processo de modernização da agropecuária deu-se com maior intensidade a partir da metade dos anos 1960, com a implantação e a generalização da política agrícola brasileira centrada principalmente no crédito rural subsidiado2.
            Dois instrumentos fundamentais foram utilizados nas políticas públicas nacionais - o crédito rural subsidiado e os preços mínimos - para o que os custos de produção passam a ser indicadores fundamentais tanto para a fixação dos Valores Básicos de Custeio (VBC) quanto para a definição dos pisos de preços fixados como mínimos em cada safra. Em função disso, foi a gestão das políticas públicas que impulsionou a construção de diversos modelos de aferição dos custos de produção, mais que avanços relevantes no uso da contabilidade agropecuária.
            No Instituto de Economia Agrícola (IEA), os primeiros custos de produção para as lavouras e criações agropecuárias surgem de forma sistemática nos anos 19603. A evolução dos mecanismos de aferição dos custos e das próprias exigências de padronização, de maneira que fosse garantida a análise comparada entre atividades, regiões e padrões tecnológicos, levou à consolidação da sistemática de cálculo de custo de produção do IEA na metade dos anos 1970. Esta foi baseada nos conceitos de custo operacional efetivo (COE) e custo operacional total (COT), firmando procedimentos de aferição que, com pequenas adaptações, vêm sendo mantidos pela instituição até os dias atuais4.
            O modelo do IEA passa a ser referência principal nas discussões setoriais e nas decisões políticas delas decorrentes, dentre as diversas formas de construção das estimativas de custos de produção e em função do debate sobre as variáveis que deveriam compor sua estrutura, enquanto indicador das despesas produtivas agropecuárias. Daí ser fundamental firmar-se a elevada magnitude dessa contribuição institucional.
            Nessa concepção de custo de produção, a estimativa de indicadores representativos buscava a definição dos denominados padrões tecnológicos modais, que permitiam uma aproximação consistente da realidade e, com isso, inferências seguras para as decisões de políticas públicas. Além disso, podia ser usada como referência importante para os agropecuaristas tomarem a decisão de plantio ou de comercialização da safra.
            Na vigência da política de crédito rural dos anos 1970, os preços dos insumos e máquinas eram conhecidos porque eram publicados em diversas tabelas de preços. E as exigências financeiras eram determinadas pelo volume de crédito tomado a taxas de juros fixas e negativas (barateadoras de insumos e máquinas).
            Tome-se o padrão tecnológico, que permitia definir o uso de insumos. Os valores dos custos operacionais por unidade de área não diferenciavam de forma significativa nem os preços dos insumos e máquinas numa dada praça. Além disso, o custo do dinheiro era dado, pois as taxas de juros e as condições de financiamento eram amplamente conhecidas, uma vez fixadas e divulgadas pela política oficial de crédito rural. Tendo ido ao banco e tomado crédito, enquanto consumidor, o agropecuarista era um demandante de insumos e máquinas e senhor do negócio.
            Ainda que o uso da tecnologia moderna fosse uma contingência do acesso ao crédito rural, o agropecuarista escolhia de forma livre seus fornecedores e definia o uso de quais insumos e quais máquinas iria adquirir.
            Essa situação viria a ser dramaticamente alterada com o fim da política de crédito farto e barato com juros negativos no final dos anos 1970. O dinheiro mais caro passa a impulsionar, de um lado, o aumento da produtividade dos insumos e, de outro, a construção de mecanismos de financiamento que garantissem a continuidade operacional das cadeias de produção agropecuárias.
            Após ter sido introduzida operacionalmente na lógica bancária pelo acesso ao crédito rural subsidiado, a agropecuária dentro das cadeias de produção passa a operar com base em contratos de venda antecipada de safra (contratos de soja verde, contratos de aquisição de insumos prazo safra, etc.). Dessa maneira, os demandantes de matérias-primas (agroindústrias processadoras e traders) e os ofertantes de insumos (agroindústrias de fertilizantes e agroquímicos) poderiam continuar operando suas plantas produtivas.
            Essa sistemática contratual interna às cadeias de produção agropecuária, em especial no segmento de commodities, evoluiu para a financeirização da produção com a emergência dos títulos financeiros a partir do lançamento da Cédula de Produto Rural em 1995, ainda como CPR-física, tornada CPR- financeira em 2000. Trata-se da construção de um novo padrão de financiamento cujo lastro foi a formação das teias de agronegócios pela proliferação de contratos nos diversos elos das cadeias de produção5.
            Esse processo irreversível, numa economia aberta operando com câmbio flutuante num mundo globalizado, caminha para a inserção plena não apenas da agropecuária mas também de toda a agricultura na lógica do capitalismo financeiro. Isto exige a ampliação dos mecanismos de gerenciamento de riscos de preços com base em operações de hedge em bolsas de mercadorias.
            Sem aprofundar na discussão da agricultura inserida no mercado financeiro enquanto uma agricultura de contratos, é essencial entender como a construção das teias de agronegócios torna impróprias as concepções de custos de produção. Ainda que do ponto de vista conceitual sejam aceitas as definições de custos variáveis, custos fixos, custos médios, há que se pensar na imensa dificuldade de construir indicadores de custo de produção por unidade de produto lançando mão dos expedientes de estimativa a partir dos padrões tecnológicos modais. Esses procedimentos eram compatíveis com a idéia de dinheiro farto e barato em que o agropecuarista escolhia o insumo, sustentado numa condição de crédito bancário aprovado que o permitia operar todo o processo produtivo.
            Com dinheiro escasso e mais caro, tornam-se fundamentais os diferenciais de custos de acesso aos insumos, mais que a sua produtividade. Assim, quase sempre firma-se, para cada insumo (ou conjunto de kits dos mesmos), um contrato específico com a empresa fornecedora, escolhida em função das condições de financiamento oferecidas ao agropecuarista adquirente.
            As estratégias de vendas das empresas de sementes e agroquímicos implicam em oferecer diferentes vantagens para que o agropecuarista adquira o pacote de seus produtos, levando este a uma prática de decisão econômica que pode ser descrita como 'comprar financiamento'6. A mesma condição se dá nas negociações contratuais de venda antecipada.
            O custo médio do dinheiro, assim, varia com a capacidade de financiamento próprio; com a credibilidade junto a fornecedores de insumos que configura diferentes e específicas vantagens no financiamento dos negócios; com a fidelidade a um comprador (trader ou agroindústria) que define o patamar de preços nas vendas antecipadas e com a magnitude do uso do hedge para proteger-se contra as variações de preços.
            Noutras palavras, ocorre uma variabilidade de condições financeiras tão ampla para um mesmo padrão tecnológico (e ocorreu uma significativa homogeneização entre as principais commodities), em função dos inúmeros contratos e dos distintos perfis de agropecuaristas, que não tem mais sentido o procedimento de buscar definir um padrão modal que permita calcular o respectivo custo de produção. Há maior similaridade entre estruturas de custos da mesma operação produtiva em diferentes atividades que entre distintos agropecuaristas na mesma atividade.
            E as diferenças entre os distintos arranjos financeiros podem ser mais relevantes para a rentabilidade do empreendimento que as diferenças de resposta entre a diversidade de insumos disponível. Ou seja, a tecnologia de ponta, envolvendo variedades de alta resposta e aqroquímicos de elevada eficiência, propicia uma convergência da produtividade da terra.
            Os juros e as condições de pagamento envolvidos nessas transações fazem da inovação financeira o elemento diferenciador dos desempenhos. Os próprios preços dos insumos dispostos nas tabelas não podem ser usados como indicadores efetivos de custos unitários. São meras referências para as negociações, ao envolver descontos e condições de pagamentos diferentes segundo cada cliente em função de sua fidelidade, da escala de seus negócios e da capacidade de honrar compromissos financeiros.
            Nessa realidade, o custo de cada operação torna-se cada vez mais relevante para a decisão gerencial dos agropecuaristas do que o custo total de produção de seu produto, uma vez que cada contrato (formal ou não) deve ser gerenciado individualmente. Assim, há que serem repensados os indicadores de rentabilidade agropecuária.
            O resultado final da negociação contratual de cada operação em particular, ao permitir comparar de forma precisa as condições oferecidas pelos distintos fornecedores, faz com que o agropecuarista, que cada vez mais assume a feição de gerente financeiro, fragmente sua estrutura de custos, definindo-a para cada contrato firmado (sementes, agroquímicos, etc). Isto implica na necessidade de redesenho dos mecanismos de aferição de suas despesas diretas na produção.
            Esse gerente financeiro ganhará cada vez mais pela maximização dos ganhos financeiros nos diferentes negócios com fornecedores e clientes e, principalmente, pelas vantagens obtidas nas operações de 'compra de financiamento'. Assim, urge que sejam aprimoradas as concepções de custos agropecuários, de maneira a torná-las compatíveis com o novo padrão de financiamento, passando das estimativas dos custos de produção para os cálculos dos custos de cada operação7. 8
 
 

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1 Uma leitura do processo de transformação da agricultura pode ser vista em GONÇALVES, José S. Agricultura sob a égide do capital financeiro: passo rumo ao aprofundamento do desenvolvimento dos agronegócios. Revista Informações Econômicas 35 (4):7-36, 2005. Para uma visão dessas mudanças na agropecuária paulista, ver GONÇALVES, José S. Dinâmica da agropecuária paulista no contexto das transformações da sua agricultura. Informações Econômicas 35 (12): ):65-98, 2005.
2 Essas idéias sobre as políticas de crédito rural e de preços mínimos foram introduzidas no Brasil na década de 1940 pela obra de Ruy Miller Paiva, sob a denominação de crédito facilitado e de garantia de preços remuneradores. Sobre esse registro histórico, ver GONÇALVES, José S. & VEIGA Fº, Alceu de A. Ruy Miller Paiva, O Pioneiro: suas idéias, seu tempo e seu lugar. Revista Agricultura em São Paulo 43(3):9-34, 1996.
3 Ver por exemplo a apresentação das 'estimativas das despesas diretas nas principais culturas do Estado', o artigo publicado em 1966, de autoria de JUNQUEIRA, Antônio Augusto; YAMAGUISHI, Caio Takagaki e OKAMOTO, Cyro. Custos agrícolas em São Paulo; Safras 1964/65 e 1965/66- algodão, amendoim, cana de açúcar, feijão, mamona, mandioca, milho, soja e trigo. Agricultura em São Paulo 13(5,6): 25-44, maio e junho de 1966.
4 Esse trabalho, que se tornou um clássico pelas inúmeras citações e pela utilização enquanto referência na aplicação das teorias de custos agropecuários, está sintetizado no artigo de MATSUNAGA, Minoru et al Metodologia de custos de produção utilizada pela IEA. Agricultura em São Paulo 23(1):123-140, 1976.
5Essa nova configuração da agricultura como teias de agronegócios aproxima cada empreendimento progressivamente da concepção de firma como nexo de contratos, tal como concebida por COASE, R.H. The nature of the firm. Econômica 4:386-405. 1937. Sobre o novo padrão de financiamento da agricultura brasileira, ver GONÇALVES, José S. et al Novos títulos financeiros do agronegócio e o novo padrão do financiamento setorial. Revista Informações Econômicas 35 (7):63-90, 2005.
6 Essa situação vigente no mercado de sementes vem alijando o material genético público de lavouras em que era amplamente hegemônico, de forma quase incontestável, nas décadas de 1970 e 1980. Mesmo que os desempenhos produtivos desse material público possam ser superiores aos dos das empresas multinacionais de sementes, os genótipos produzidos pela pesquisa pública, se não multiplicados mediante franquias por empresas de sementes com capacidade de 'vender financiamento' aos agropecuaristas, acabam por serem pouco representativos quando mensuradas suas participações em termos de área plantada. Quanto mais esse padrão se aprofunda nas commodities, mais isso se torna concreto, exigindo que sejam repensadas as estruturas legais e as estratégias de colocação de produtos pela pesquisa pública.
7 Isso deve ser feito com maior amplitude, incluindo mecanismos cada vez mais fundamentais para a agropecuária de commodities como a venda antecipada e a colocação de derivativos em bolsas de mercadorias, pela existência de taxas de juros embutidas em função dos diferentes deságios aplicados de preços presentes da época de plantio na fixação dos preços na época da colheita realizados nesses contratos.
8 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-24/2006.

Data de Publicação: 21/03/2006

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor