Artigos
O Drible do Café em Cérbero
Prezado leitor, se você
distraidamente leu cérebro tomo a liberdade de corrigi-lo, pois não vou tratar
aqui dos efeitos da cafeína no estado de atenção, mas resgatar personagem da
mitologia grega responsável por guardar a entrada do portal do reino de Hades
(senhor do mundo subterrâneo/inferno), para onde havia sido levada Perséfone,
filha de Demeter, e deusa da fertilidade do solo (agricultura) e Zeus. Furiosa
com Zeus por ter permitido Hades raptar sua bela filha, Demeter lançou sobre a
terra o inverno (escuro e congelante) e verão (quente e seco). Zeus, preocupado
com o futuro dos humanos que passariam fome sem os plantios primaveris, enviou
Hermes (mensageiro dos deuses) para resgatar Perséfone, tentando realegrar sua
mãe e assim devolver a fartura de alimentos para a humanidade. Antes de ser
resgatada, porém, Hades obrigou-a a se alimentar da romã e com isso selar sua
união. Assim, a cada três meses Perséfone estaria no reino dos mortos (durante
o inverno) e nos outros nove meses do ano ao lado de sua mãe. Demeter,
resgatando sua filha, supera seu desespero e devolve abundância das colheitas
aos mortais. Cérbero, o cão de três
cabeças e cauda de dragão, tinha por missão guardar as almas sem deixá-las
jamais sair e despedaçar qualquer um que tentasse adentrar no reino dos mortos
(com gosto especial por carne humana). O mito desse monstro se molda
perfeitamente ao momento atual, bastando para tanto nomear essas três cabeças: coronavírus;
guerra do petróleo e flerte com a recessão global. Começando pela última
das cabeças, cerca de US$17 trilhões (aproximadamente 20% do PIB mundial) estão
sob remuneração negativa, produzindo situação totalmente anômala em que os
credores recompensam os devedores1. Conceitos como o da
“japanização” (deflação associada a baixo crescimento com consumidores adiando
suas compras – no último trimestre de 2019 a expansão do PIB da União Europeia
foi de apenas 0,1%) e da estagnação secular (pautada pelas mudanças
demográficas elevando a poupança associadas pelos avanços tecnológicos contentores
de uso do capital) tornaram-se recorrentes entre os analistas. Menor
crescimento econômico projetado para o futuro produz maior cautela por parte
dos investidores, preferindo a liquidez imediata (aquisição de moeda e
aplicações em ouro – este último o mais estável das commodities) ante qualquer outra modalidade de desembolso. No primeiro trimestre
de 2020, os sinais de que a economia global declinaria para patamar de
dinamismo inferior se avolumavam. A Organização Mundial do Comércio (OMC), em
outubro do ano passado, estimou que o aumento do comércio mundial seria de
apenas 1,2% ante previsão inicial de 2,6%, ou seja, corte nas expectativas de
54%2. Constituem-se as trocas internacionais nos componentes mais
dinâmicos para a expansão da economia mundial. Ao derrubar as previsões para o
comércio, a OMC indicava que não se deveria ser otimista com a evolução futura
do PIB. De fato, em 2019, a
expansão do PIB mundial foi de 2,9%, ou seja, percentual próximo do patamar de
2,5% considerado, pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e
Desenvolvimento (UNCTAD), como indicador de recessão global. Tão baixo
crescimento decorre, em larga medida, da freada na dinâmica das trocas
internacionais que foram duramente impactadas pela agressiva escalada tarifária
estadunidense (absolutamente inócua) em sua contenda contra a indústria
chinesa, associada às incertezas do ambiente de negócios europeu a partir do
desmembramento do Reino Unido. O
índice de commodities do Fundo
Monetário Internacional (FMI-Commodity Data Portal) registrou, entre jan./2019
e fev./2020, declínio de 8,0% (índice que exclui o ouro - base 2016=100). Por
sua vez, o CRB-Index exibe queda de 27,7% em 2020 (até 16/mar.)3, 4.
Tais indicadores (ponderação de
preços e quantidades) revelam a atual desaceleração global, com menor apetite
tanto por energia (petróleo) como por outras matérias-primas básicas (agrícolas
e metálicas), sendo dados preocupantes quando se considera que muitos países em
desenvolvimento possuem pauta concentrada nas exportações de gêneros primários
e extrativos. Os países desenvolvidos
encontram-se com reduzida ou nenhuma margem para adoção de política econômica
expansionista (incremento do gasto público e/ou redução de alíquotas
tributárias) e com juros na posição de quase neutralidade. Sob esse contexto
adverso, maiores serão as dificuldades de expansão econômica por parte dos
países em desenvolvimento. Um latente quadro
recessivo global se dilata (Alemanha, Itália, Reino Unido, Turquia, Suécia,
México Chile e Argentina já constituem bolsões recessivos), com as preocupações
econômicas decorrentes quanto à adimplência das famílias e corporações.
Atualmente, o endividamento global soma US$253 trilhões, com US$1,3 trilhão de
vencimento no curto prazo (US$4 trilhões em 2022)5. Com o menor
dinamismo da economia, particularmente, as empresas não terão liquidez
necessária para horar seus compromissos e tampouco o mercado estará disposto a
rolar tais compromissos, agravando o flerte da economia global com a recessão. Ainda em 2019, liderada
pela China, a desvalorização das moedas nacionais perante o dólar altera o
equilíbrio dos preços relativos (forte desestímulo às importações – redutoras
do crescimento do PIB), podendo conduzir as demais nações a desencadearem uma
guerra cambial, pois para se defender dos ganhos de competividade espúrios nas
exportações dos países com câmbios desvalorizados, faz-se ajuste na paridade
cambial de suas moedas, estabelecendo-se assim uma espécie de círculo vicioso. Na segunda cabeça do
Cérbero, posiciona-se o atual choque do petróleo. Desde o surgimento da
tecnologia da fratura hidráulica do xisto betuminoso (fracking), o mercado desse produto vivencia excesso estrutural de
oferta. Adiciona-se a esse fato a pressão ambientalista em prol da ampliação de
escala na adoção das energias renováveis, facilitando a descarbonização da
economia global. Essas são as reais bases da fratura da OPEP. Trata-se,
portanto, de mercado com formação de preços negativamente pressionada. O
produto considerado a “Rainha das Commodities”,
devido a sua ampla demanda e imenso mercado, possui efeito de arrasto bastante
importante sobre todas as demais mercadorias transacionadas em Bolsa de Valores
(os preços sempre são relativos). Ademais, ainda que a queda nas cotações repercuta
no barateamento dos insumos derivados e gastos com fretes, este resultado não
se traduz em benefício, pois além de promover perdas nas relações de troca dos
países centrados em matérias-primas agrícolas e minerais, esvai-se a confiança
numa remota possibilidade de crescimento futuro, pois adicionou-se
instabilidade ao sistema de trocas internacionais. O default Argentina (em situação alarmante) traz maiores dificuldades
para a economia brasileira. Há, ainda, o risco do parlamento argentino, em
razão de sua atual crise econômica, protelar a ratificação do acordo MERCOSUL x
UE, prejudicando assim as pretensões brasileiras de ampliar o acesso aos
mercados. Do ponto de vista do investidor externo, é momento de retirar suas
aplicações desses mercados (ruptura do país favorito dos liberais, o Chile,
acarreta maior aversão a esses mercados). Mais de R$45 bilhões foram sacados
pelos estrangeiros da bolsa paulista6! Tendo perdido o selo de “investiment grade”, será difícil ao país
voltar a atrair o investidor internacional, sobretudo com a zeragem do juro
real retribuído as carteiras de investimento, reduzindo as possibilidades de
arbitragem, acompanhado pela turbulência que se observa nos países vizinhos;
2020 será um ano pouco amigável aos ibero-americanos. Na última cabeça do
Cérbero o mais imprevisível, impactante e somente explicável a posteriori dos fenômenos, a pandemia
de coronavírus. O filósofo libanês Nassim Taleb lançou em 2007 o livro A Lógica do Cisne Negro (best seller naquele), em que ponderava
sobre as ocorrências de baixa probabilidade, porém, com capacidade de alterar
por completo o cenário no qual se inserem. A disseminação exponencial do vírus
se amolda perfeitamente nessa teoria, por se tratar de episódio totalmente
desconhecido. É inegável que o mundo se encontra meio perdido diante da
irrupção dessa doença respiratória. Ao impactar tanto a
oferta quanto a demanda, o colapso econômico provocado pelo coronavírus rompe
com as cadeias de fornecimento, agravando a crise. Sem capacidade produtiva, as
empresas afetadas pela indisponibilidade de suprimentos
intermediários/estratégicos poderão ter seus custos elevados, produzindo
inflação e desemprego. Trata-se, portanto, de evento paralisante que deprime a
economia. Cenários de recuperação em V, U e L são desenhados conforme as
diferentes percepções sobre a gravidade, profundidade e duração dessa
ocorrência. Contudo, como definido pelo professor Taleb, para esse caso a
compreensão do fenômeno somente ocorre a
posteriori. A epidemia, diferentemente
das tragédias naturais (furacões, tsunamis, terremotos, erupções vulcânicas),
não acarreta grandes dispêndios para a recuperação das regiões afetadas num
esforço de reconstrução, sendo, portanto, inócua para aceleração do crescimento
econômico (expansão do PIB). Ao contrário, tudo aquilo que se deixou de
produzir e/ou consumir simplesmente se perde. Exemplificando, uma família que
deixou de ir ao cinema para evitar a permanência em ambiente fechado não o fará
duas vezes quando o surto tiver passado para compensar a desistência anterior.
Impedir a circulação da população resulta em restringir seus gastos. Negócios
em volume historicamente sem precedente serão perdidos sem chance de
recuperação. Pautados pela
experiência chinesa e coreana, as diversas esferas de governo dos distintos
países afligidos tentam se antecipar ao momento de crescimento exponencial da
disseminação do vírus. Quarentenas de amplas regiões densamente povoadas,
fechamentos de estabelecimentos comercias, mobilização das instalações e pessoal
dedicados à saúde pública (hospitais, prontos socorros, ambulatórios) são
medidas de consenso, visando retardar a evolução da doença e evitar o colapso
do sistema de pronto atendimento. Foi desenhado o quadro
conjuntural/estrutural contemporâneo, qual tem sido a trajetória do mercado de
café e, mais detidamente, como seus preços têm oscilado. Considerando o período
jan./2019 a fev./2020, a evolução dos preços compostos da OIC denota ajuste
linear positivo, com pico de preços em dez./2019, justamente o início da
entressafra de café no mercado mundial (Figura 1). A escassez de produto
de qualidade para a produção dos blends
e o ciclo de baixa da produção brasileira têm influenciado a elevação das
cotações, sobretudo a partir do último trimestre de 2019. Outros argumentos têm
sido levantados para justificar esse aumento, como baixa oferta de contêineres
(argumento bastante criticável, uma vez que, excluindo-se os embarques para o
Japão, o mercado de café pertence fundamentalmente à rota Atlântica), e ligeira
oscilação negativa nos estoques mundial devido ao aumento do consumo associado
à redução de vendas dos competidores sul-americanos e asiáticos7, 8. Em termos de evolução
das cotações, evidente está a desvantagem do petróleo diante do café. O tipo brent
(petróleo leve) oscilou bastante no período considerado, porém, com ajuste
linear de tendência negativa. Tal resultado ainda não contabiliza a abrupta
queda pós-choque decorrente do enfrentamento entre Arábia Saudita e Rússia.
Ademais, com a entrada da primavera no Hemisfério Norte, não se deve esperar
alavancagem na demanda pelo recurso, devendo permanecerem as cotações por longo
período sem mudanças no atual patamar vigente. O comportamento das
cotações do café arábica se assemelha mais àquele que é considerado a mais
estável dos commodities, o ouro.
Normalmente procurado em momentos de crise econômica e conflitos geopolíticos,
o metal constitui reserva de valor por excelência, pois tem natureza de moeda.
No período de jan./2019 a fev./2020, o ouro demonstra ganho sustentado de
cotações e exibindo ajuste linear positivo de inclinação mais acentuada que o
do café arábica (Figura 2). Entretanto, o que
haveria no café para este comportamento para os preços? Para onde está se
dirigindo o olhar dos especuladores que buscam refúgio no mercado da bebida?
Analisando-se os hábitos de consumo, é possível compreender as razões para o
inusitado comportamento dos preços? O maior tempo em que as
famílias permanecem em suas residências representa um deles. A restrição de
deslocamento imposta às pessoas nas cidades, afetadas pelo coronavírus, as
mantém confinadas no ambiente doméstico. Sob essa condição, o consumo de café
tende a ser maior do que na situação em que a vida transcorra sem contingências9.
A ansiedade derivada do pânico criado em torno da pandemia pode, ainda,
promover maior consumo da bebida como refúgio último de prazer que ela concede
ao apreciador em tempos bicudos. Duas hipóteses sem qualquer tipo de
comprovação objetiva, mas que podem estar por detrás da alavancagem das
cotações no mercado de café, concedendo ao produto essa capacidade de driblar
Cérbero. 1MORAIS, L. O estranho mundo das taxas de juro negativas. Vermelho, São Paulo, 18 nov. 2019.
Disponível em: https://vermelho.org.br/2019/11/18/o-estranho-mundo-das-taxas-de-juro-negativas/. Acesso em: mar. 2020. 2LAZARINI, J. OMC aponta que comércio mundial permanece em
ritmo de queda. Suno Notícias, São
Paulo, 18 nov. 2019. Disponível em: https://www.sunoresearch.com.br/noticias/omc-comercio-mundial-ritmo-de-queda/. Acesso em: mar. 2020. 3INTERNATIONAL MONETARY FUND. IMF Primary Commodity Prices. Washington, IMF, 2020. Disponível em:
https://www.imf.org/en/Research/commodity-prices. Acesso em: mar. 2020. 4TRADING ECONOMICS. CRB
Commodity Index. Nova York, Trading Economics, 2020. Disponível em: https://tradingeconomics.com/commodity/crb. Acesso em: mar. 2020. 5CANZIAN, F. Coronavírus pega mundo com dívida recorde e
prazo curto. Folha de São Paulo. São
Paulo, p. A24, 8 mar. 2020. 6HOLTZ, Fabiana. Bolsa tem maior saída diária de capital estrangeiro da
história: R$ 3,068 bilhões. Estado de
São Paulo, São Paulo, 28 fev. 2020. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo 7INTERNATIONAL COFFEE ASSOCIATION. What’s new. ICO, London, mar. 2020. Disponível
em: http://www.ico.org/. Acesso em: mar. 2020. 8GREEN COFFEE ASSOCIATION.
Warehouse information. Green Coffee Association, Nova York, mar. 2020. Disponível em: http://greencoffeeassociation.org/professionalresources/warehouse_information. Acesso em: mar. 2020. 9Hipótese originalmente aventada em: VEGRO, C. L. R.
Cotação do Café sob o Impacto da Emergência Sanitária. Análises e Indicadores do Agronegócio, São Paulo, v. 15, n. 2, fev.
2020. Disponível em: http://www. Palavras-chave: pandemia de coronavírus, mercado de café, preços.
/2020/02/28/b3-tem-maior-saida-diaria-de-capital-estrangeiro-da-historia-de-r-3068-bilhoes.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: mar. 2020.
iea.agricultura.sp.gov.br/out/TerTexto.php?codTexto=14761. Acesso em: mar.
2020.
Data de Publicação: 23/03/2020
Autor(es): Celso Luís Rodrigues Vegro (celvegro@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor