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Dezessete anos de Instruções Normativas: será que a qualidade do leite enfim chegou?
As Instruções Normativas (INs) 76 e 77, de 26 de
novembro de 2018, passaram a entrar em vigor no dia 1º de junho de 2019 em todo
país1. Elas determinam os regulamentos técnicos que fixam a
identidade e as características de qualidade que devem apresentar o leite cru
refrigerado, o leite pasteurizado e o leite pasteurizado tipo A2,
além de tratar dos critérios e procedimentos para produção,
acondicionamento, conservação, transporte, seleção e recepção do leite cru. Estas INs são as últimas a serem publicadas desde a
IN 51 de 2002, com o objetivo de melhorar a qualidade do leite. Desde então
foram publicadas as INs 62, de 29 de dezembro de 2011, a IN 7, de maio de 2016,
e a IN 31, de junho de 20183, adiando os prazos de implantação. A IN 51 teve como
objetivo: atender a novos mercados,
através da implantação de um controle da qualidade do leite dando a este um
padrão de qualidade internacional e a perspectiva de pagamento por qualidade
que beneficiasse o produtor com melhores preços pelo produto4. Com a publicação das
INs 76 e 77, os produtores e suas associações se manifestaram preocupados com
pontos específicos das mesmas, e novamente o Rio Grande do Sul se posicionou
como na ocasião da publicação da IN 515, apontando que a situação do
produtor de leite desse estado é precária6, e que muitos pequenos
produtores não têm acesso ao conhecimento para mudar a qualidade do leite. Desde maio deste ano,
algumas alterações publicadas nas INs têm sido consideradas preocupantes. Em conversas
com o setor produtivo, questionou-se a viabilidade de ter uma temperatura de 4°
C em até três horas após a ordenha na produção, coleta e armazenagem do leite
cru, e a obrigação do leite ter de chegar à plataforma do laticínio com
temperatura de 7°C e, excepcionalmente, até 9°C. No último dia 27 de
junho de 2019, ocorreu audiência pública na qual o Sindicato da Indústria de
Laticínios do Rio Grande do Sul (SINDILAT) destacou pontualmente as
preocupações, deixando claro que os 4°C podem não ser atingidos no verão,
quando as temperaturas chegam a 40°C. Além disso, não há equipamentos mais
modernos de refrigeração do leite em várias propriedades, os produtores não têm
acesso às linhas de crédito, e faltam energia e estradas adequadas para o
transporte7. Outro ponto questionado e considerado como grande
desafio é a exigência de médias geométricas trimestrais de 300 mil UFC/ml de contagem bacteriana em placas para o leite cru no tanque individual
ou comunitário, e limite máximo de 900 mil UFC/ml na entrega do produto no
estabelecimento beneficiador (IN 76). Segundo o secretário-executivo do SINDILAT
do Rio Grande do Sul, Darlan Palharini, 63% dos produtores de leite do estado
não atingem este padrão. Considera que é ainda pior a possibilidade de atender a
temperatura estipulada que o produto deve chegar à indústria, pois apenas 5% do
leite que é descarregado nas plataformas está dentro deste padrão. Se um dos
principais estados produtores de leite do país coloca uma questão como esta,
como acreditar que estados de regiões que têm pequena produção de leite possam
ter situação diferente?8 Após 17 anos, a
situação não difere muito da inicial. Falta o principal: a viabilidade dos
produtores de leite em conseguir entregar o produto nas condições exigidas
pelas normativas atuais. E isto se deve provavelmente a vários fatores, como a
falta de conhecimento das INs e a baixa qualidade do leite, que tem relação com
o desconhecimento da norma, e por falta de repasse de informação ao produtor.
Insistimos, desde a publicação da IN 519, que isto tem relação
direta com a ausência de assistência técnica e extensão rural. Há falha, também,
na cobrança das indústrias na melhoria da qualidade do leite com o não
pagamento por qualidade, e principalmente na prestação de assistência técnica
aos produtores, bem como no auxílio com financiamento de resfriadores na
propriedade. A qualidade do leite
está diretamente relacionada à sanidade animal e às condições higiênicas da
ordenha. Ou seja, com vacinações, cuidado como a saúde do gado e a melhora do
local e higienização das tetas poderá haver uma boa melhora da qualidade do
leite. Parece que os órgãos
públicos, responsáveis pela aplicação da norma, desconsideraram mais uma vez a
realidade, pois, sem avaliação estrutural das condições da produção e educação
do produtor, não mudaremos a situação da produção leiteira. Não adianta
normatizar. Tem de dar condições para que as coisas aconteçam. Se
um dos maiores objetivos da implantação das INs é ter capacidade de abrir
mercados importantes para exportação de lácteos, o investimento tem de ser
principalmente no produtor e deve-se procurar o fortalecimento de uma rede
ampla e estruturada de produtores de leite de qualidade, como solução para
atingir os objetivos das INs. É um erro acreditar
que quem não se adaptar deve ser excluído, e não pensar na estrutura necessária
e nos problemas do homem do campo, nem nos problemas sociais que podem ocorrer
como consequência e a importância da manutenção deste produtor no meio rural,
mitigando questões relacionadas à migração destes cidadãos para os centros
urbanos e a perda de produtores com conhecimento já acumulado no setor. É se eximir
da responsabilidade pública. Se pensarmos que se
produz leite em todo país e que a realidade dos produtores e sistemas de
produção são muito distintas, podemos ponderar que há grandes diferenças no
acesso às informações por parte de muitos produtores. O sistema de assistência
técnica e extensão rural no Brasil está desarticulado há muitos anos, com
algumas exceções. Ou seja, há relação direta com a transmissão de informações
ao produtor e sua aplicação de conhecimento técnico no dia a dia para melhorar
a qualidade do produto leite. Ao mesmo tempo, não
se pode questionar a importância da qualidade do leite. Ela é essencial para a
saúde do consumidor, e também para as pretendidas exportações do produto que
não decolam, principalmente pela maior qualidade estabelecida para atingir ao nível de
exigência de grandes países importadores. Ao se pensar que a
abertura de mais mercados se concretiza quando se consegue atender mercados
como o americano e europeu - mais exigentes -,
deve se ter claro que não adianta fazer o trabalho pela metade, já que há
necessidade de um plano de ação, com participação efetiva dos estados brasileiros, para que
a política de melhoria da qualidade do leite cru evolua e possamos ter um
produto de qualidade que atenda não só às expectativas de abertura de mercados
importantes, como também dê segurança ao brasileiro sobre o produto consumido
no país. Ou seja, se não fizermos a lição de casa, continuaremos patinando e
adiando indefinidamente a implantação das normas definidas pelo MAPA com
publicação de novas INs.
Precisamos ter certeza que o produtor tem conhecimento das exigências e
garantir que ele possa produzir leite de melhor qualidade. 1BRASIL.
Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Instrução Normativa n° 77,
de 21 de janeiro de 2015. Diário Oficial
da União, Brasília, DF, 22 jan. 2015. Seção 1, p. 32. Disponível em: http://www.in. 2BRASIL.
Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Instrução Normativa n° 76,
de 26 de novembro de 2018. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 30 nov. 2018. Seção 1, p. 9. Disponível em:
http://www.in.go 3Op. cit. nota 2. 4PITHAN-SILVA, R. O. P. Reflexão sobre o adiamento da implementação Instrução
Normativa 51. Milkpoint, São Paulo, 21 jul. 2011. Disponível em: https://www.milkpoint.com.br/artigos/espaco-aberto/reflexao-sobre-o-adiamento-da-implementacao-instrucao-normativa-51-73313n.aspx.
Acesso em: 1 jul. 2019. 5Op. cit. nota 4. 6PALHARINI,
D. Desafios da cadeia produtiva com a vigência das INs 76 e 77. Portal DBO, São Paulo, 27 jun. 2019.
Disponível em:
https://www.portaldbo.com.br/desafios-da-cadeia-produtiva-com-a-vigencia-das-ins-76-e-77/.
Acesso em: 1 jul. 2019. 7Op. cit. nota 6. 8Op. cit. nota 6. 9Op. cit. nota 4. Palavras-chave: leite, Instrução
Normativa 76 e 77, qualidade.
gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/32120879/do1-2015-01-22-instrucao-normativa-n-77-de-21-de-janeiro-de-2015-32120750.
Acesso em: 8 jun. 2019.
v.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/52750137/do1-2018-11-30-instrucao-normativa-n-76-de-26-de-novembro-de-2018-52749894IN%2076.
Acesso em: 8 jun. 2019.
Data de Publicação: 16/07/2019
Autor(es): Rosana de Oliveira Pithan e Silva (rosana.pithan@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor