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Implicações da Lei Kandir e Reflexos Atuais
1 - HISTÓRICO O pacto federativo, a Constituição da República
Federativa Brasileira de 1988, estabeleceu, no art. 155 – II2, 3, a
competência dos Estados membros da Federação a cobrança do Imposto sobre
Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços
de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS). Esse
tributo se constitui, desde então, na espinha dorsal das finanças estaduais e,
também, municipais, na medida em que parcela dessa arrecadação é redirecionada,
por meio do Valor Adicionado Fiscal (VAF), aos municípios. Como descrito no corpo do artigo, exigia-se
elaboração de lei complementar para estabelecer os critérios para cobrança do
ICMS sobre bens exportados primários (vegetal, animal e mineral) e
semielaborados. Em 1991, promulgou-se a referida LC n. 65 contemplando a
incidência do imposto sobre tais itens4, 5. A partir dessa instrução
mandatória, produtos classificados como semielaborados e primários, destinados
ao exterior, passaram a compor o rol de receitas dos estados por meio da
incidência de ICMS. Estabelecida a competência
tributária, pacificou-se o assunto até meados de 1994, quando houve a
decretação do Plano Real. Tendo por alicerce a administração da taxa de câmbio,
impôs-se à economia brasileira paridade cambial da moeda com o dólar americano,
logrando forte declínio da escalada inflacionária e reequilíbrio para aspectos
macroeconômicos da economia brasileira (juros básicos). Todavia, como resultado
exógeno desse programa de estabilização econômica, adveio a ocorrência de
crescentes deficits na balança
comercial do país. O binômio abertura de mercado, promovido ao princípio da
década, e defasagem cambial, introduzido pelo plano de estabilização econômica,
trouxe maior grau de internacionalização de nossa indústria, deteriorando,
porém, a balança de pagamentos do país. Os resultados do comércio
exterior brasileiro no início dos anos 1990 contabilizavam superaávits com crescente incremento da corrente de comércio
(Figura 1). A partir de 1994, saldo da balança e da corrente de comércio passam
a divergir, desabando o primeiro e assumindo inclinação mais acentuada o
segundo. Tal fato denotou a perda de tração das exportações com concomitante
intensificação da quantidade e valor dos bens importados. . Para atenuar os deficits
da balança comercial e recompor o tripé macroeconômico de sustentação do Plano
Real (moeda estável, comércio exterior superavitário e juros baixos),
construiu-se consenso político de que se tratava em contrassenso a exportação
de impostos, devendo-se estender, para os bens primários e semielaborados, a
desoneração do ICMS até então incidente. Sobre essa premissa, a da
“desvalorização6” tributária, formulou-se em 1996 o que se
convencionou chamar Lei Kandir7. 2 – BENEFÍCIOS AO COMÉRCIO EXTERIOR
E ACÚMULO DE RESERVAS A zeragem da alíquota de ICMS incidente sobre as
exportações dos produtos primários e semielaborados (considerados aqueles com
até 60% da composição de seu custo oriundo de bens primários), conferiu
evolução positiva no saldo da balança comercial brasileira, notadamente para os
produtos incluídos no chamado agronegócio. Em 2018, por exemplo, o resultado
cambial superou US$101 bilhões, e representou quase sete vezes mais do que o
contabilizado em 1997 (Figura 2). Desempenho similar no período foi observado para as
exportações de minérios (exclusive petróleo e derivados), com crescentes
valores embarcados até 2011. Após esse pico, houve declínio no comércio
exterior de bens minerais que somente reinicia trajetória de crescimento em
2017. De qualquer modo, saltar dos cerca de US$10 bilhões para os atuais US$50
bilhões constitui-se em formidável crescimento (Figura 3). A desoneração das exportações
contribuiu, ainda que discretamente – uma vez que a desvalorização cambial foi
a principal alavanca desse processo, para o progressivo incremento do acúmulo
de reservas internacionais por parte do Brasil. No período de 2000 a 2018,
expandiu-se em dez vezes a disponibilidade de moeda forte sob controle do Banco
Central (Figura 4). Não fosse esses cerca de US$380 bilhões de reservas
(funcionando como seguro contra-ataques especulativos contra o real),
provavelmente o país estaria em situação similar ao observado na Argentina que,
atualmente, convive com deficits
fiscal e de transações correntes, sendo obrigada em razão dessa situação
macroeconômica a recorrer ao Fundo Monetário Internacional na captação de fundo
capaz de suportar seus compromissos. O incremento das exportações em ritmo mais acentuado
do que as importações resultou em acúmulo de reservas pelo país e tracionaram a
economia brasileira, contribuindo para o crescimento econômico em benefício da
federação e de sua população. O incremento das atividades econômicas derivadas
do fortalecimento do drive
exportador, entretanto, não foi capaz de mitigar os prejuízos arrecadatórios
suportados pelos estados da desoneração concedida. A expansão das exportações, notadamente dos produtos
do agronegócio, consolidou a posição do Brasil no cenário mundial como o futuro
mais importante player no suprimento
global de alimentos. Organismos internacionais acreditam que até 2030 o país
deva incrementar substancialmente sua produção para fazer frente ao aumento da
demanda mundial por alimentos, fibra e energia, tendência essa que não deve se
arrefecer antes de 2050, tendo em vista a expansão da população urbana mundial8. Em contrapartida, a geração de incentivos para a
exportação de bens primários e semielaborados, nivelando-os aos
industrializados, trouxe repercussões ainda mais danosas à economia brasileira.
As novas tecnologias direcionadas ao agronegócio tem por repercussão acentuados
ganhos de eficiência produtiva. Disso resulta tendência secular de barateamento
dos produtos agropecuários, ou seja, estimula-se segmento econômico no qual as
possibilidades de captura de valor que, consistentemente, reduzem ao longo do
tempo. Ademais, as naturais oscilações nas cotações dos produtos com formação
de preços em bolsas de valores introduzem grau de imprevisibilidade ao ambiente
de negócios, submetendo a economia do país aos ditames dos movimentos
especulativos transnacionais. 3 – TENSÃO FEDERATIVA Inicialmente, a LC n. 87 de 1996 revogou a LC n. 65
de 1991, estipulando procedimento para compensação aos estados, por parte do
governo central, em razão da perda arrecadatória (prejuízo), uma vez que o
leque de bens tributáveis havia se estreitado. Tal compensação foi calculada
com base na média da arrecadação estadual de ICMS entre julho/1995 e junho/1996
(período, portanto, imediatamente anterior a vigência da LC n. 87).
Cotejando-se a diferença obtida entre a média anterior e o montante atual,
estabelecia-se o repasse ao ente federativo. Todavia, tal metodologia nunca foi
seguida, sendo aquilo que se prometia nunca ter sido, efetivamente, entregue. Tomando-se em conta o
resultado anual das exportações dos bens primários provenientes dos
agronegócios e do segmento de mineração entre 1997 e 2018 (Figuras 1 e 2),
torna-se possível estimar a perda de arrecadação, simulando diferentes
alíquotas médias incidentes de 7%, 12% e 17%. Os resultados desse exercício são
muito elucidativos, sendo que na hipótese mais conservadora o prejuízo aos
cofres estaduais foi de US$88,27 bilhões relativos aos embarques do agronegócio,
acrescido dos US$50,46 bilhões em minérios ao câmbio de US$1,00 = R$4,00,
representando perda arrecadatória de R$522,92 bilhões9 (Tabela 1). Em geral, os deficits
na balança comercial são ajustados por meio de desvalorizações cambiais.
Entretanto, no momento particular em que se situava o Brasil, essa política não
poderia ser implementada, pois, como mencionado, o ajuste econômico Plano Real
pautava-se pela administração da paridade cambial. Reequilibrar o saldo nos
negócios com o exterior demandava incrementar a competitividade dos bens
nacionais transacionáveis. Reconhecendo os efeitos multiplicadores do comércio
exportador, estes não foram suficientes para mitigar os prejuízos
arrecadatórios da desoneração concedida. Na prática, concretizou-se o fenômeno
(que perdura até a atualidade) da desindustrialização, ou como preferem outros,
a especialização reversa da economia brasileira (reprimarização – impondo mais
perdas arrecadatórias aos estados), consistindo no complexo soja um dos
expoentes desse processo10 de fazer política pública com
disfuncionais cortes na “boca do caixa” (remendos a um sistema tributário
iníquo e regressivo). A atuação discricionária da União, ao decretar a LC n.
87, subordinou a margem de autonomia dos demais entes (estados e municípios) à
orientação liberal prevalecente no âmago governamental. Esse movimento
acrescentou tensão ao pacto federativo e, paralelamente, minguou a capacidade
executiva desses agentes públicos. Em 1999, com a adoção da política de câmbio
flutuante11 por parte da autoridade monetária, a premissa
estruturante do Plano Real deixou de existir. Com intervenções no mercado
cambial (spot e futuro), procurou-se
disciplinar as oscilações diárias, buscando relativa neutralidade na formação
das expectativas inflacionárias para esse componente macroeconômico. Tal
mudança daria ensejo imediato para a revogação da LC n. 87 na medida em que se
passou a assumir processo de desvalorização da moeda capaz de manter a
competitividade dos bens transacionados pelo país. Houve várias tentativas de produção de acordos para
compensação aos estados, mas com montantes substancialmente inferiores às
perdas incorridas. Mais recentemente houve a suspensão das transferências
legitimada pela emenda do teto dos gastos (impossibilitando repasses),
agravando a tensão federativa12, 13, 14, na medida em que alguns
estados e municípios passaram para o contexto de insolvência. A perda de receitas dos entes federativos, devido ao
não repasse pela União, foi aprofundada pela possibilidade de reivindicar
direito de créditos de ICMS derivados da aquisição de insumos empregados no
processo de transformação industrial dos bens primários e semielaborados.
Situação escatológica na qual os estados, sem obter qualquer receita tributária
sobre as transações efetuadas, assumem ainda ônus financeiros. O endividamento junto ao governo central dos entes
federados é um fator que impede a prestação de serviços de qualidade aos seus
cidadãos. As consecutivas repactuações e escalonamentos dos débitos não têm
permitido o retorno da saudabilidade dos tesouros de estados e municípios.
Tampouco o deficit fiscal da União
permite afrouxamento dos compromissos financeiros exigidos dos entes. A
complexidade do assunto exigirá soluções igualmente complexas em que a União
passe a compartilhar seus ganhos em diversas ações15. Há
possibilidades postas à mesa de discussões. Sem uma atitude propositiva da
União, a tensão federativa tenderá a se intensificar, conduzindo o
questionamento ao Supremo Tribunal Federal, como já o fez o Estado do Pará16. Rever a política de favorecimento ao segmento
exportador é aspecto crucial na pretendida reforma fiscal (na visão de muitos
analistas a mãe de todas as reformas). Nela, um novo pacto federativo deverá
ser ajustado, concedendo a necessária equidade na apropriação e destino das
receitas tributárias. Recompor a capacidade executiva dos entes federados,
melhorando sua autonomia decisória, é determinante para a produção do sonhado
salto civilizatório no Brasil. ----------------------------------------------------------------------------------- 1Os
autores agradecem os comentários da pesquisadora Terezinha Joyce Fernandes
Franca. 2BRASIL.
[Constituição (1988)]. Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da
República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: maio 2019. 3“Art.
155 - Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (...)
II operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de
serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda
que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (...) § 2º - O imposto
previsto no inciso II, atenderá ao seguinte: (...) X - não incidirá: a) sobre operações que destinem mercadorias
para o exterior, nem sobre serviços prestados a destinatários no exterior,
assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas
operações e prestações anteriores”. 4BRASIL.
Lei Complementar nº 65, de 15 de abril
de 1991. Define, na forma da alínea a do inciso X do art. 155 da
Constituição, os produtos semi-elaborados que podem ser tributados pelos
Estados e Distrito Federal, quando de sua exportação para o exterior. Brasília:
Presidência da República, [1991]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp65.htm.
Acesso em: maio 2019. 5A
Lei Complementar n. 65 de 1991 determina recolhimento de imposto nas operações
de exportação, aqueles que Art 1: (I) resultassem de matéria-prima de origem
animal, vegetal ou mineral quando exportada in natura; (II) cuja matéria-prima
de origem animal, vegetal ou mineral não tivesse sofrido qualquer processo que
implicasse modificação da natureza química originária; (III) cujo custo da
matéria-prima de origem animal, vegetal ou mineral representasse mais de 60% do
custo total do produto. 6Parodiando
o termo desoneração, na medida em que o efeito pretendido era o de baratear em
dólares os produtos nacionais destinados à exportação. 7A
Lei Complementar 87 de 1996, chamada de Lei Kandir, Art 3, II, estendeu a não
incidência de ICMS sobre transações com o exterior de bens primários e
semielaborados. Quando da promulgação da LC, o deputado Antônio Kandir ocupava
a pasta do Planejamento na equipe do então presidente Fernando Henrique
Cardoso. 8CONTINI, E. Exportações na dinâmica
do agronegócio brasileiro: oportunidades econômicas e responsabilidade mundial.
In: BUAINAIN, A. M. et al. (ed.). O mundo rural no Brasil do século 21.
Brasília: EMBRAPA, 2014. p. 147-173. 9Tal estimativa se aproxima da obtida
pela CPI sobre a Lei Kandir constituída na Assembleia Legislativa do Rio Grande
do Sul, que apurou um total de R$548 bilhões de perdas para os entes federados. 11O câmbio flutuante compunha o chamado
tripé macroeconômico que ainda contemplava as metas de inflação e a manutenção
de superavit fiscal. 12Foram
instauradas, em 2017, Comissões Parlamentares de Inquérito nas Assembleias
Legislativas do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, para emitir
posicionamentos a respeito dos prejuízos causados pela LC 87. 13MINAS
GERAIS. Comissão extraordinária de
acerto de contas entre Minas e a União. Belo Horizonte: ALMG, 2017. 96 p.
Disponível em: https://www.almg.gov.br/export/sites/default/hotsites/2017/acerto-de-contas/ 14RIO
GRANDE DO SUL. Assembleia legislativa. Relatório
final: comissão especial sobre a situação jurídico-política da Lei Kandir.
Porto Alegre: ALRS, 2018. 106 p. Disponível em: http://www.al.rs.gov.br/FileRepository/repdcp_m505/ComEsp_Lei_Kandir/RELAT%C3%93RIO%20COMISS%C3%83O%20LEI%20KANDIR%20com%20linhas%20de%20corte.pdf.
Acesso em: maio 2019. 15Como
maiores transferências dos royalties
do pré-sal, reserva de parte dos resultados das vendas de ativos no programa de
desestatização, partilha de lucros das estatais, alocação de verba
indenizatória no orçamento anual, divisão de ganhos contábeis com a valorização
das reservas, criação de tributos compensatórios, etc. 16BRASIL.
Supremo Tribunal Federal. Ação direta de
inconstitucionalidade por omissão n. 25/PA. Imunidade tributária relativa
ao imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre
prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação (ICMS) incidente sobre produtos e serviços destinados ao exterior.
Relator: Min. Gilmar Mendes, 14 mar. 2019. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4454964.
Acesso em: maio 2019. Palavras-chave:
endividamento dos estados, lei Kandir,
desoneração das exportações, reforma fiscal.
documentos/relatorio-final-acerto-de-contas.pdf.
Acesso em: maio 2019.
Data de Publicação: 13/05/2019
Autor(es):
Celso Luís Rodrigues Vegro (celvegro@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Adriana Damiani Correia Campos (adccampos@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor