A Venda de Comida nas Ruas do Circuito Inferior da Economia Urbana da Cidade de São Paulo

São Paulo é o centro econômico do Brasil, que se caracteriza como cidade de grande magnitude, longos deslocamentos e concentração de capital. Traz consigo a questão do vendedor ambulante sob o viés de sua legalidade e do direito ao trabalho e ao uso do espaço público. Enquanto aspectos discutidos recorrentemente em cada nova administração municipal, os interesses sociais (tanto ao trabalho quanto à alimentação saudável) são negligenciados, refletindo a crise social e econômica do modelo de sociedade vigente.

Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), uma das sustentações da existência da venda nas ruas é a representação social do problema do desemprego e do subemprego experimentado pelos países da América Latina, especialmente nas suas maiores cidades2. Daí que o comércio de rua no meio urbano nestas cidades é exercido principalmente por migrantes rurais de pequenas e médias cidades com baixa escolaridade que buscam nas grandes cidades mais oportunidades de emprego e melhoras nas suas qualidades de vida. No entanto, eles encontram poucas oportunidades porque precisam de qualificação e experiência e, além disso, são mal pagos. Desse modo, a maioria dos ambulantes não tem nenhuma ou pouquíssima instrução, constituindo-se em grande parte de analfabetos.

Ao atuarem em sua maior parte na clandestinidade, a quantificação dos trabalhadores do circuito inferior da economia se apresenta como uma incógnita. Essa clandestinidade leva ao mesmo tempo à cumplicidade de alguns e à parceria com outros: o vendedor muitas vezes depende de fornecedores também clandestinos e de fiscais públicos tolerantes e/ou corruptos. Assim, as mercadorias são fornecidas e comercializadas sem notas fiscais e garantias, sob o olhar complacente de alguns fiscais municipais e policiais encarregados de reprimir o contrabando.

Ainda que existam alguns estudos sobre o comércio de rua para a metrópole paulistana, precisa-se destacar a pouca ênfase das pesquisas acadêmicas na comercialização de alimentos nesses ambientes. Tendo isso em conta, geram-se interrogações a respeito dos mecanismos, estratégias e direcionamentos do armazenamento dos produtos vendidos. Este trabalho apresenta uma primeira exploração a respeito deste tema.

Em sua execução metodológica, até este presente momento, foram realizadas as seguintes atividades: 1) uma revisão bibliográfica sobre a teoria dos circuitos espaciais agropecuários; e 2) aplicação de 80 questionários principalmente na região central de São Paulo para a busca de informações secundárias relativas ao comércio ambulante de alimentos nas ruas e seus consumidores (nos mesmos estabelecimentos foram entrevistados concomitantemente um vendedor e um consumidor, ou seja, 40 questionários foram aplicados aos vendedores e outros 40 aos consumidores). Na realização dessa investigação se considerou uma amostra não probabilística representativa de todas as regiões geográficas da metrópole em estudo3. Na continuidade dessa investigação, realizou-se a análise da qualidade dos dados obtidos, na busca de se caracterizar cada localidade segundo os produtos de maior venda e sua relação com as escolhas dos consumidores. A partir dos guias alimentares para a população brasileira4, foram relacionados os dados referentes aos preços dos alimentos, a capacidade de compra a partir da renda da população e a origem dos produtos. Também se respeitaram as eleições vinculadas aos costumes alimentares. Pretende-se prorrogar no momento o período de pesquisa brevemente apresentada, com intuito de aumentar as amostras coletadas em outras regiões da metrópole paulistana.

Com o processo acelerado de urbanização, o acesso a alimentos depende cada vez mais das relações de mercado. Onde antes havia uma quantidade considerável de população vivendo em áreas rurais, agora são configurados grandes circuitos espaciais de produção, distribuição e consumo de alimentos5. Nas metrópoles, há trabalho predominantemente informal, que não garante salários que possibilitem um consumo adequado de alimentos em quantidade e qualidade, tanto do ponto de vista higiênico quanto nutricional. Essa população vive em espaços onde as políticas públicas do Estado não permitiram a reversão dessa difícil realidade.

Na cidade de São Paulo, com uma população de cerca de 12 milhões de pessoas, não há estimativa do número de vendedores de alimentos autorizados pela prefeitura ou do número real que atua no setor informal. Para fins da Lei Municipal n. 15.947/2013, o comércio ou a doação de alimentos em vias públicas e áreas é consideradas atividade que inclui vendas diretas ou distribuição gratuita ao consumidor, permanentes ou eventuais e estacionárias.

Parágrafo único - O comércio de alimentos referido neste artigo estará em conformidade com as seguintes categorias de equipamentos:

Categoria A: alimentos comercializados em veículos motorizados, bem como equipamentos montados em veículos a motor ou rebocados por estes, desde que tenham sido coletados no final do expediente, até o comprimento máximo de 6,30 (seis metros e trinta centímetros).

Categoria B: alimentos comercializados em carrinhos ou bandejas, considerados os equipamentos montados em uma estrutura tratada ou carregada pela força humana;

Categoria C: alimentos comercializados em tendas removíveis.

Alguns dos lugares onde há permissão na cidade de São Paulo são as feiras de food truck, nas redondezas dos estádios de futebol, parques como o Ibirapuera, lugares como as praças da República e Benedito Calixto. No entanto, a maioria das vendas de alimentos na rua da maior cidade brasileira é ilegal. Produtos culturais como tapioca, bolo de milho e café com leite são vendidos principalmente nas manhãs de vários pontos. Esse comércio é realizado em locais de alto fluxo de pessoas: estações de trens e metrôs, praças e avenidas de alta circulação (Figura 1), bem como em locais próximo a eventos. Na venda de alimentos nas ruas, São Paulo se destaca por apresentar uma alta porcentagem de migrantes do Nordeste brasileiro que, com baixa escolaridade, são os primeiros a sentir os efeitos do desemprego nas crises econômicas.


 

Exibidos em configurações semelhantes, a venda de produtos nas ruas é organizada em estruturas fluidas e desmontáveis, que podem ser colocadas em diferentes locais, dependendo da atuação da fiscalização municipal. A venda de comida de rua é peculiar devido à maior oferta de alimentos mais baratos aos consumidores. Em comparação com os valores de espaços legalizados, produtos de rua similares custam menos da metade dos preços. Identificou-se que muito dos trabalhadores que vendem café da manhã nas ruas de São Paulo são representantes de fábricas de bolo ilegais e sanduíches que produzem mercadorias para muitos vendedores ambulantes. É um exemplo de como existe uma concentração de parte da riqueza gerada no circuito econômico inferior.

Como em capitais de outros países latino-americanos6, não se tem a dimensão da quantidade de produtos vendidos ilegalmente na maior metrópole brasileira. Um exemplo: nas proximidades da Praça da República, no centro de São Paulo, pelas manhãs ocorrem as vendas de frutas (Figura 2), bolos, tapiocas, leite com café e chocolate; no almoço, sanduíches, cachorros-quentes, refrigerantes e águas aromatizadas; à tarde, milho cozido e frutas; e à noite, além do cachorro-quente, destaca-se a venda de yakisoba por chineses.



Das 40 entrevistas realizadas em diferentes regiões da capital paulista, a maioria dos produtos encontrados é composta de alimentos processados e ultraprocessados. Dos lugares investigados, 65% ofereceram bens de baixo valor monetário e baixa qualidade nutricional7, como hambúrgueres, cachorro-quente, tapiocas (Figura 3), doces em pacotes em geral, sorvetes gordurosos, águas aromatizadas, refrigerantes, dentre outros.


 

Entre os locais específicos que visitamos e com características tradicionais na venda de comida de rua estão aqueles que recebem eventos esportivos. Neste ambiente, escolhemos a proximidade dos campos de futebol, onde encontramos o alto consumo de pizzas, hambúrgueres e sanduíches em geral com refrigerantes.

No que se refere aos produtos de alta qualidade nutricional vendidos nas ruas, uma periodicidade esporádica sazonal foi reconhecida nos eventos de venda. As feiras itinerantes da cidade de São Paulo (feiras orgânicas, agroecológicas e gastronômicas) não acontecem todos os dias. Congratulando-se com um público com melhor renda, onde se oferecem frutas, legumes e verduras, refeições preparadas com ingredientes especiais e diferenciados nutricionalmente, ocorrem em alguns dias fixos na semana (Figura 4).


 

Em lugares como esses, foram encontrados consumidores que afirmaram realizar uma dieta mais saudável. Com melhores remunerações, eles podem obter uma maior quantidade de frutas, legumes e verduras no dia a dia. De forma positiva, em São Paulo, em relação aos produtos orgânicos, quase todos os pontos de venda encontraram a certificação dos alimentos comercializados (Figura 5).

Desta forma, dos inquéritos realizados com os consumidores nas ruas, foi apontado que apenas uma minoria (11% de frutas e 2% de legumes e verduras) apresentou uma dieta ideal8 no dia anterior à entrevista (Tabela 1).

Assim, mais da metade dos inquiridos relatou gastar mais de 40% de sua renda com alimentos (Tabela 2).

A América Latina vive sob a interferência de um ciclo de crise do capitalismo internacional. Nessa realidade, o pleno emprego foi suplantado e o subemprego expandiu--se na economia. Projetos de economia informal que são instalados em diferentes espaços urbanos (estradas, esquinas, trens, metrôs, ônibus, entre outros pontos de alta circulação de pessoas) se caracterizam por pequenos investimentos e mão de obra intensiva. Com pequenas quantidades de vendedores de produtos (migrantes e imigrantes principalmen-te), procuram adquirir o suficiente para sustentar suas famílias.


 

                  

No que diz respeito aos consumidores, duas características principais foram identificadas no perfil dos entrevistados: são principalmente trabalhadores de baixa renda e que fazem grandes viagens diárias entre suas casas e o trabalho. Portanto, eles fazem algumas de suas refeições em pontos de comida nas ruas.

  


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1O circuito inferior da economia remete às atividades rudimentares vigentes na economia que fazem uso intensivo de mão de obra (com baixo nível tecnológico), baixa capitalização e sem estrutura organizacional legitimada (planejamento financeiro e logístico, por exemplo).

 

2FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS - FAO. Informe del Seminario-Taller Latinoamericano sobre control de alimentos que se venden en las Calles. Chile: FAO/OPS, 1994. (RLAC/94/07/NUT-57).

 

3Definiram-se, nessas diferentes regiões da capital paulista, pontos de alta circulação de pessoas como terminais de ônibus, estações de metrô, praças públicas, feiras livres (tradicionais e orgânicas), praças públicas, universidades, hospitais e eventos esportivos (estádios de futebol).

 

4MINISTÉRIO DA SAÚDE. Guia alimentar para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. 152 p.

 

5SANTOS, M. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. São Paulo: EDUSP, 2002. 440 p.

 

6ARÁMBULO III, P. et al. La venta de alimentos en la vía pública en América Latina. Boletín Oficina Saint Panaman. Washington, v. 118, n. 2, p. 97-107. 1995.

 

7Op. cit. nota 4.

 

8Op. cit. nota 4.

 

 

 

 

 

 

Palavras-chave: comida de rua, circuito inferior da economia, São Paulo.


Data de Publicação: 27/12/2018

Autor(es): Danton Leonel de Camargo Bini (danton.camargo@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor