A Agricultura Familiar no Seminário Franco-Brasileiro

O reconhecimento da agricultura familiar no Brasil se dá nos anos 1990 quando o Estado admite a divisão existente no setor agrícola brasileiro entre os agricultores segundo sua lógica de produção: de um lado, a agricultura não familiar ligada ao agribusiness e, de outro, a agricultura familiar, divisão consolidada no início do século XXI. Instaura-se nesse momento a exploração familiar da agricultura como objeto da política agrícola e como instituição, inscrevendo essa categoria numa dinâmica de desenvolvimento rural.

De acordo com a 2ª Conferência Nacional do Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário1, ocorrida em outubro de 2013, a agricultura familiar é responsável por 70% dos produtos da mesa dos brasileiros, por 10% do PIB e 75% da mão de obra no campo. Contribui para isso o conjunto das políticas públicas para o rural que melhorou a renda, as condições de vida e aumentou a produção e geração de empregos. No entanto, existem ainda muitos entraves internos ao desenvolvimento rural brasileiro, e a crise econômica internacional contribui com outros obstáculos macroeconômicos na construção do projeto nacional para o Brasil do século XXI. Nessa oportunidade, reuniram-se 1.200 delegados para definir as 100 propostas que compõem o documento final que subsidiará as políticas públicas para o campo nos próximos anos.

No Seminário Franco-Brasileiro Diálogos Contemporâneos acerca da Questão Agrária e Agricultura Familiar no Brasil e na França2, realizado em Paris, França, em abril de 2013, estiveram presentes diversos representantes brasileiros de universidades e órgãos federais. Nessa oportunidade, discutiu-se o tema com o intuito de encorajar as reflexões críticas a propósito das questões agrárias no Brasil e na França, em particular aquelas ligadas à agricultura familiar/camponesa, situação e perspectivas; compartilhar resultados; propor interpretações sobre as questões relacionadas ao desenvolvimento rural; desenvolver  atividades de pesquisa, de trocas e  cooperação científica.

Nesse evento foram tratados temas referentes às experiências brasileiras de assentamentos periurbanos, com a constatação de que houve uma notável resposta dos agricultores assentados aos dispositivos inovadores de políticas públicas, particularmente o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Evidenciou-se que esses assentamentos podem ser uma perspectiva positiva no sentido de um desenvolvimento mais justo e saudável, inseridos nos interstícios de grandes aglomerações urbanas nas quais predomina a monocultura da cana-de-açúcar.

No balanço da política de assentamentos das duas últimas décadas, apesar de se observar um arrefecimento na implantação de assentamentos rurais e das dificuldades enfrentadas pelos assentados, há indícios de que as políticas públicas vêm garantindo uma melhoria nas condições de vida dessas populações. Isso se deve à adoção de programas de desenvolvimento agrícola, para os assentamentos já existentes, referentes ao crédito, à assistência técnica e à garantia de colocação no mercado dos bens produzidos.

As discussões sobre Agroecologia e Agricultura Sustentável indicaram que, no marco conceitual da Agroecologia no Brasil, predomina a perspectiva de que essa é uma nova abordagem científica de caráter multidimensional, que tem como princípio fundamental a diversidade biológica e cultural. Poderia advir daí as bases do conhecimento necessário à transição do modelo convencional de desenvolvimento rural para modelos sustentáveis.

Os desafios para a pesquisa e formação em agricultura sustentável e agroecologia, a busca de novos paradigmas para outras formas de agricultura que não as do modelo de agricultura intensiva foram discutidos, a partir do levantamento sobre a experiência francesa de colaboração entre os agricultores familiar-camponeses e pesquisadores da área agrícola e rural.  Os encontros promovidos por pesquisadores da área agrícola e rural da França (Instituições de Pesquisa: INRA – Institut National de La Recherche Agronomique, ONGS – Organizações Não Governamentais, escolas superiores de agronomia, organizações de agricultores) forneceram as bases para reflexões dentro de um contexto de resistência às opções de pesquisa como as biotecnologias.

Os sistemas alimentares localizados na França e no Brasil são duas vias distintas de fortalecimento das agriculturas camponesas. No mundo, todos os “circuitos alimentares curtos” conservam ou reencontram uma densidade que lhes permite estabelecer sistema localmente ou em uma escala mais ampla. Tem contribuído, ao longo destes anos, a participação de profissionais brasileiros envolvidos no desenvolvimento de formas de comercialização condizentes com a agricultura familiar: produtores, sindicalistas, responsáveis por cooperativas, pesquisadores, estudantes, responsáveis pela administração territorial. Experiências da “venda direta” na Bretanha3 demonstraram por efeito “espelho” que os “circuitos curtos” evidenciam vias de desenvolvimento radicalmente diferentes, de acordo com sua própria realidade, levando em conta seus próprios limites e possibilidades.

A agricultura na França viveu durante o século XX uma política altamente seletiva, baseada numa perspectiva de modernização que exigiu investimentos crescentes de capital. Se, de um lado, respondeu aos objetivos de segurança alimentar do pós-guerra, ela igualmente contribuiu para o empobrecimento e a desaparição de um grande número de explorações agrícolas familiares camponesas. Nos anos 1980, aos impactos desse modelo de desenvolvimento agrícola juntaram-se suas consequências ambientais, provocando  inúmeros debates e controvérsias públicas sobre o modelo dominante e exigindo um novo contrato entre a agricultura e a sociedade na França e na Europa.

A França é um país de pequenos e médios camponeses; as grandes explorações estão reunidas principalmente em certas zonas da Bassin parisien4. A manutenção da agricultura familiar deve-se a diversos fatores: às decisões macroeconômicas - o protecionismo; ao acesso limitado à terra - renda fundiária, mercado de terras, herança, política fundiária; progresso técnico e as economias de escala; ao papel da cooperação, do mutualismo e do sindicalismo; à dimensão social e moral da exploração familiar - interferências com  políticas; à escolha de política agrícola após a segunda guerra mundial.  A agricultura familiar hoje se caracteriza pela diversidade das formas atuais; domínio das médias explorações, persistência da pequena exploração, diversificação das atividades dentro da exploração, capitalização e endividamento e formas associativas.

No Seminário Franco-Brasileiro, os diálogos levados a efeito, considerando os desafios, alcances e limites da agricultura familiar brasileira face à disponibilidade de políticas públicas diferenciadas - à capacidade dos agricultores de acessar os programas governamentais e a sustentabilidade das políticas - alguns atributos foram apontados como necessários para o fortalecimento da categoria: 1) a capacidade de engendrar processos de inovação tecnológica sem excessiva especialização produtiva; 2) capacidade de absorção de produtores familiares das regiões mais vulneráveis; 3) melhoria das condições de vida por meio dos retornos proporcionados pela venda dos produtos e possibilidades abertas pela integração – acesso a políticas públicas, mercados, bens e serviços e/ou processos de aprendizado, que induzam um melhor grau de efetividade social.

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1CONFERÊNCIA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO RURAL SUSTENTÁVEL E SOLIDÁRIO, 2., 2013, Brasília. Anais eletrônicos... Brasília: MDA, 17 out. 2013. Disponível em: <http://portal.mda.gov.br/portal/condraf/arquivos/view/2CNDRSS-100-propostas-final.pdf>. Acesso em: maio 2014.

 2Patrocinado por: Systèmes agraires et développement rural (Agro ParisTech – Institut des Sciences et Technologies;  Paris Institute  of Tecnology   et Ladyss/CNRS – Laboratoire Dynamiques sociales et recomposition des espaces, Universités Paris 1, Paris7, Paris 8 e Paris 10.

3Região a oeste da França, cuja economia centra-se na agricultura, na indústria agroalimentar, no turismo estival, junto à zona costeira, e em alguns polos tecnológicos avançados.

4A bacia parisiense é uma região de relevo relativamente plano, irrigado por um rio navegável, o Sena, onde os principais afluentes convergem  para a região; condições meteorológicas médias (11°C), os solos agrícolas são muito férteis devido à precipitação pluviométrica que é, em média, de 600 milímetros por ano.

Palavras-chave: agricultura familiar, França, Brasil.


Data de Publicação: 16/06/2014

Autor(es): Nilce da Penha Migueles Panzutti (panzutti@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor