Exortação à Qualidade

Talvez o fato mais marcante na trajetória recente da economia brasileira foi a mudança no modelo de crescimento econômico. Há 20 anos, quando ainda prevalecia a visão autárquica, a corrente de comércio internacional brasileira (exportações + importações) somava apenas US$54 bilhões. Desde então a trajetória desse indicador assumiu escalada quase que exponencial, pois, até outubro de 2012, a corrente de comércio contabilizava US$468 bilhões. Considerando média mensal de US$38,4 bilhões para o indicador, é possível estabelecer estimativa para 2013 em US$460 bilhões2.

 

A contribuição das exportações na evolução registrada na corrente de comércio brasileira não se concentrou em itens específicos de sua pauta de comércio exterior, mas, pelo contrário, se disseminou pelos mais diversos ramos da economia, com predomínio das mercadorias originadas dos chamados agronegócios. Esse aspecto tem motivado intenso debate nos círculos especializados sobre a ocorrência ou não de uma inserção regressiva do país no comércio internacional, derivado de um suposto fenômeno da reprimarização da pauta de exportações.

 

O agronegócio café possui longo histórico de agregação de valor à matéria-prima (café verde) em território nacional. Ainda nos anos 1960, tiveram grande impulso a implantação e expansão no país da agroindústria de solubilização. Esse segmento logrou importantes e sucessivas conquistas como a introdução do hábito de consumo de café no Japão, Rússia e outros países do antigo bloco soviético, e mais recentemente em Hong Kong e Coreia do Sul. Especialmente no Japão, o mercado para o café desde meados dos anos 2000 já suplanta o do chá como principal bebida quente consumida.

 

Todavia, o êxito da agroindústria de solubilização começa a se reverter a partir da segunda metade dos anos 1990, com acentuada perda de competitividade. Razões de ordem macro e microeconomia atuaram negativamente sobre o segmento, como: a) valorização cambial do real; b) política fiscal com incidência de tributos sobre as transações internacionais (PIS/COFINS); c) elevado custo da energia elétrica inviabilizando a produção do solúvel liofilizado3 que é a fatia mais dinâmica e de maior valor nesse mercado; d) cotações do conilon no mercado interno acima das praticadas na Bolsa de Londres com concomitante impedimento da realização de operações reguladas pelo regime de drawback; e) marco regulatório incompatível com as necessidades estratégicas das transnacionais do segmento que desviam do país seus novos investimentos em unidades fabris; e f) incidência de alíquota tributária sobre o solúvel originado no Brasil para ingresso nos membros da União Europeia e Japão4. 

 

Em contrapartida, importante iniciativa foi a aproximação entre Associação Brasileira da Indústria do Café (ABIC) com a Agência de Promoção das Exportações (APEX), no sentido de dinamizar as transações internacionais envolvendo o café torrado e moído (T&M). Assim, em 2002, surgiu o Programa Setorial Integrado (PSI-Café), visando promover transações de café torrado e moído, torrado em grão e solúvel com clientes no exterior. Desde então foram investidos aproximadamente R$50 milhões5 em iniciativas como: a) apoio para a participação de empreendedores em feiras e rodadas de negócios tanto no Brasil como no exterior; b) projetos para melhoria da imagem dos Cafés do Brasil; c) aproximação com grandes redes supermercadistas de atuação global; e d) estabelecimento de intercâmbios com compradores chineses. Entre 20 e 30 torrefadoras participam do PSI com resultados insatisfatórios6, em parte, similares àqueles já listados que incidem sobre o segmento de solubilização.

 

A relativa estagnação das iniciativas de avanço na cadeia de valor por meio da transformação do café verde em solúvel ou T&M, visando sua colocação entre os consumidores nos mercados dos países centrais, não interditou as possibilidades de aumento dos ganhos na comercialização do café verde. A segmentação do verde fez surgir novos padrões de cafés, socioambientalmente mais sustentáveis e, ainda, aderentes às crescentes exigências dos torrefadores e traders internacionais em termos de vincularem suas marcas aos produtos que menos agridam ao meio ambiente7.

 

Na atualidade, uma simples análise das médias das cotações não é mais suficiente para compreender a dinâmica que os preços assumiram. Por crescente imposição dos mercados demandantes, à mercadoria estrito senso (café) se agregou estoque formidável de informações adicionais. Tomando a noção da qualidade em um contexto mais abrangente, houve um salto no patamar desse quesito. Fatores envolvendo desde o pós--colheita (descascados, lavados), certificações (socioambientais, de causa e de crença) e alcançando o método de preparo (espresso), pouco passou a representar a cotação média, seja aquela divulgada pela Bolsa de Nova Iorque ou aquela exibida diariamente nos monitores da BM&F. Essa nova configuração dos preços decorre da ampla segmentação do produto café sob o ditame da qualidade.

 

No agronegócio café, considerando o ano safra julho de 2002 a junho de 2003 e contabilizando todos os tipos de mercadorias (verde, torrado e moído e solúvel), os embarques somavam receita cambial de apenas US$1,53 bilhão. No ano safra 2011/12, o resultado cambial com as exportações do agronegócio café contabilizou US$7,85 bilhões. A ascensão das cotações internacionais (US$217,46/sc. na média da segunda posição em Nova Iorque) foi certamente a maior responsável pela majoração observada, uma vez que os embarques no referido período totalizaram 29,7 milhões de sacas8, 9, patamar inferior que o observado no ano safra 2010/11 (ciclo de alta anterior), quando alcançaram os 35,1 milhões de sacas10.

 

O prêmio de preço recebido pelos cafeicultores que introduziram descascadores nas instalações de preparo é uma realidade no mercado. No período janeiro de 2010 a novembro de 2012, o prêmio médio para o café descascado (CD) foi de R$38,61/sc. frente ao natural, com máximo R$65,09/sc. (set./2011) e mínimo de R$21,43 (maio de 2010) (Figura 1). Obtendo esse prêmio, cafeicultor com safra média em torno das 500 sacas ao ano e preparando 30% da safra em CD consegue dentro de cinco colheitas amortizar o investimento inicial em máquinas e instalações empregadas nesse método de preparo.

 

 

Na comercialização do arábica, desde que esse mercado estruturou a maneira de formação de seus preços (implantação do Contrato C na Bolsa de Nova Iorque), todas as demais origens e tipos passaram a guardar relação com esse padrão independente da praça de comercialização. Os agentes de mercado, ao arbitrarem diferenciais negativos para os naturais brasileiros, transmitem a informação de que esse produto não exibe a mesma qualidade daquela que é referência para o mercado (Contrato C). As cotações oscilam conforme a qualidade em questão. Desde 2010, o cereja descascado, considerado padrão para bebida gourmet, passou a se beneficiar desse sistema, sendo precificado com diferencial mais vantajoso que os naturais11.

 

Assim como os descascados, os cafés diferenciados12 também têm avançado na cadeia de valor desse negócio. Tabulação especial, desenvolvida pelo CeCafé, indica que a participação desses cafés na formação do saldo cambial do país, decorrente das exportações desse produto, constitui-se numa nova realidade desse mercado. No ano safra 2010/11, por exemplo, foram embarcados 9,76 milhões de sacas de arábicas dessa categoria (que inclui CD e lavados), contabilizando receita de US$2,7 bilhões. A menor oferta de produto (ciclo bienal de baixa) refletiu-se nos embarques no ano safra 2011/12, em que foram transacionadas com o exterior 4,90 milhões de sacas com resultado cambial de US$1,66 bilhão. O fenômeno que mais merece destaque consiste nos preços médios desse produto que, no caso do arábica, foi de US$274,88/sc. nas safras 2010/11 e US$339,05/sc. para 2011/12  (US$79,00 e US$75,11 acima da cotação do produto convencional) (Tabela 1).

 

 

Tabela 1 – Exportação de Café de Perfil Diferenciado, Brasil, 2010 a 2012

Ano safra 2010/11

Arábicas

Conilon

Total

Quantidade (sc.)

9.795.583

205.626

10.001.209

Valor (US$)

2.692.588.420

30.296.353

2.722.884.774

Preço médio dif. (US$)

274,88

147,34

272,26

Preço médio conv. (US$)

195,88

125,63

189,67

Ano safra 2011/12

Arábicas

Conilon

Total

Quantidade (sc.)

4.903.999

258.018

5.162.017

Valor (US$)

1.662.693.366

44.441.349

1.707.134.716

Preço médio dif. (US$)

339,05

172,24

330,71

Preço médio conv. (US$)

263,94

134,67

254,99

Fonte: CONSELHO DOS EXPORTADORES DE CAFÉ DO BRASIL - CeCafé. Tudo sobre a safra 2011-2012. São Paulo, 2012. 59 p.

 

As estatísticas revelam que a qualidade para o verde é a chave para ingressar em patamares de melhor remuneração para o produtor, tanto no arábica como no conilon. Excetuando os cafés transacionados pelo selo de comércio justo que possuem piso para a baixa de preços, os demais continuam oscilando conforme os humores do mercado internacional, mantendo, porém, diferenciais que são muito expressivos, sobretudo após a conversão para reais em já adiantado ciclo de depreciação de seu valor. Certamente há que debitar os custos relativos à certificação13, sendo essa a principal barreira para que mais cafeicultores adentrem nesse mercado diferenciado pela informação carreada com o produto.

 

Os gestores da política cafeeira, atentos a esse fenômeno e buscando incrementar o rol de produtores certificados, introduziram linha de custeio no FUNCAFÉ com dotação de R$50 milhões, visando amparar as estratégias pautadas pela certificação (conforme Resolução CMN n. 4.099, de 28/06/2012):

 

b) itens financiáveis: tratos culturais e colheita das lavouras, incluindo as despesas com aquisição de insumos, mão de obra, operações com máquinas e equipamentos, arruação, transporte para o terreiro e secagem, e certificação de cafés, observado o orçamento apresentado pelo produtor14.

 

             A linha de financiamento encontra-se em fase de contratação, mas se espera que tenha grande demanda por parte dos cafeicultores, pois não é mais possível esconder o formidável resultado econômico do processo, quer como aqui visualizado (comercialização), quer pela dinâmica da modernização da gestão do empreendimento (aspecto não apreciado, porém, igualmente decisivo), que somados tornam a exploração tenazmente competitiva.

______________________

1Este trabalho compõe a segunda parte do artigo com o título “Vitimados pelo êxito”. Os autores agradecem as críticas e sugestões dos pesquisadores Rejane Cecília Ramos e Antônio Ambrósio Amaro.

 

2BANCO CENTRAL DO BRASIL – BACEN. Média de janeiro a maio de 2013. Brasília: BACEN, 2013. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/pec/Indeco/Port/ie5-03.xls>. Acesso em: 18 jun. 2013.

 

3Existem dois métodos de industrialização do solúvel: a) a quente utilizando vaporizadores (dry); e b) a frio com emprego da liofilização (freeze). Nesse último método, o consumo de energia elétrica chega a triplicar frente ao preparo a quente.

 

4VEGRO, C. L. R. et al. Restrições à exportação de café torrado e moído. Organizações Rurais Agroindustriais, Lavras/UFLA, v. 7, n. 2, p. 214-226, 2005. Um obstáculo relevante na constituição de uma plataforma de exportações de T&M, no Brasil, consiste na postura das transnacionais do segmento e sua política de divisão dos mercados entre as filiais.

 

5Desse desembolso total, 50% foi recolhido diretamente ao programa pelos participantes do projeto.

 

6Em 2011, as exportações de T&M somaram US$23,6 milhões. Até outubro de 2012, esse montante tinha atingido os US$14,9 milhões. A difusão das máquinas de preparo da bebida por dose incrementou as importações de cápsulas. No ano safra 2011/12, o Brasil importou US$42,8 milhões em T&M e, portanto, a balança comercial de T&M brasileira já opera no déficit. Os embarques de T&M para a UE são tributados ad valorem em 7,5%.

 

7Transnacionais já anunciam prazos para que 100% de suas aquisições serão de cafés sustentáveis. Dentre elas, Nespresso, Starbucks e Kraft. Contabilizando essas demandas, acredita-se que em 2015 cerca de 25 milhões de sacas sejam comercializadas mediante algum tipo de certificação acreditada internacionalmente.

8ESTATÍSTICAS DOS MERCADOS FÍSICO E FUTURO - BM&F. Café. Bolsa Mercantil e Futuros, São Paulo, 2004. 64 p.

 

9BRASIL. Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento. Secretaria de Produção e Comercialização. Informe Estatístico do Café, dez. 2003. Disponível em: <http://www.agricultura.gov.br/arq_editor/file/vegetal/Estatistica/Informe%20Estat%C3%ADstico%20do%20Caf%C3%A9%202002-2003.pdf>. Acesso em: jun. 2013.

 

10CONSELHO DOS EXPORTADORES DE CAFÉ DO BRASIL - CeCafé. Tudo sobre a safra 2011-2012. São Paulo, 2012. 59 p.

 

11Em 2003/04, houve um grande esforço de gestão de lideranças CeCafé pelo reconhecimento da qualidade do café brasileiro na NYBOT. Após receber o aceite por parte dos árbitros americanos que constataram que o produto estava em condições de ser transacionado naquela bolsa, lobby liderado por representantes dos centro-americanos e da Colômbia no senado americano sustou a iniciativa. Em 2010, por contingências do próprio mercado, essa barreira foi definitivamente superada, quando o produto brasileiro será aceito para entregas na NYBOT. A próxima batalha consiste na redução dos spreads entre as demais origens e os cafés do Brasil.

 

12Constituem os cafés diferenciados os produtos certificados, lavados, descascados, gourmet (bebida mole), orgânico, cafés vencedores de concursos, declarados nos Certificados de Origem OIC emitidos na exportação de café.

 

13Obter um certificado de café socioambientalmente sustentável pode demandar investimento entre US$5 a US$30 mil dependendo da entidade certificadora. Assim, é necessária média escala produtiva capaz de amortizar esse desembolso em prazo aceitável.

 

14BANCO CENTRAL DO BRASIL - BACEN. Resolução CMN n. 4.099, de 28-6-12. Altera as condições das operações de crédito rural ao amparo de recursos do Fundo de Defesa da Economia Cafeeira (Funcafé). 28 jun. 2012. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/pre/normativos/busca/normativo.asp?tipo=Res&ano=2012&numero=4099>. Acesso em: jun. 2013.

 

Palavras-chave: qualidade do café, prêmio por qualidade.

 

 

 

 


Data de Publicação: 28/06/2013

Autor(es): Celso Luís Rodrigues Vegro (celvegro@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
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