Formas de Aquisição de Alimentos no Brasil na Década de 2000

A alimentação é um dos itens de maior peso no orçamento familiar e apresenta diferenças expressivas na quantidade de itens disponíveis para o consumo nos domicílios nas áreas urbana e rural do país. Na última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada pelo IBGE, a aquisição de bebidas/infusões e frutas foi maior no meio urbano, enquanto a de cereais, leguminosas e carnes ocorreu na área rural1. Certamente, também, a forma de aquisição de alimentos difere entre as áreas.

 Na área rural, por exemplo, ainda que o aumento da renda da população tenha contribuído para expandir o seu poder de compra e reduzir os níveis de pobreza já a partir dos anos 1990, por conta da regulamentação do plano de benefícios previdenciários dos trabalhadores e também da maior disponibilidade de serviços públicos e de programas sociais2, 3, a forma “não monetária” de aquisição de alimentos é bastante relevante com participações significativas no grupo das hortaliças, frutas e carnes; especialmente, no caso de laticínios, chega a ultrapassar a forma de aquisição monetária4.

Considerando a ocorrência de alterações relevantes nas formas de aquisição de alimentos na última década, conforme informações das POFs, com destaque para redução da participação do segmento “não monetário” na disponibilidade alimentar das famílias brasileiras5, 6, avaliou-se a participação das formas de aquisição de alimentos pelas famílias nas áreas urbana e rural do país durante a década dos anos 2000. Dados coletados pelas POFs realizadas pelo IBGE em 2002/03 e 2008/09 serviram de base para esse estudo. A aquisição alimentar domiciliar per capita anual por forma de aquisição de grupos e subgrupos de produtos foi obtida pelo Sistema IBGE de Recuperação Automática (SIDRA)7.

Em 2002, da quantidade total adquirida de produtos como panificados, carnes bovinas, queijos e outros laticínios, açúcares e doces, sais e condimentos, óleos e gorduras, café, bebidas alcoólicas, bebidas não alcoólicas e infusões, alimentos preparados e misturas industrializadas, mais de 90% correspondia à forma monetária. Os produtos cuja forma não monetária de aquisição correspondiam a pelo menos 10% da quantidade total adquirida foram: cocos e castanhas (44,7%); pescados, ovos, leite (variaram de 23% a 29,6%); e cereais, leguminosas, hortaliças, frutas, farinhas, féculas e massas, aves, carnes suínas e outras carnes (que não a bovina, suína) (variaram de 10,4% a 19,3%) (Tabela 1).

Em 2008 (Tabela 2), observa-se que foram incluídos os cereais, hortaliças, frutas, farinhas, féculas e massas, carne suína, aves na categoria de aquisição de alimentos correspondendo a mais de 90% na sua forma monetária, ampliando, assim, o número de produtos verificados em relação a 2002. Portanto, o grupo de produtos cuja forma não monetária de aquisição correspondia a pelo menos 10% ficou reduzido aos pescados (21,6%), leguminosas, ovos, leite, outras carnes (exceto bovina e suína) (variaram de 10,6 % a 15,6%), além de cocos e castanhas (61%), ou seja, metade da quantidade de produtos verificada em 2002. Vale considerar ainda que, em relação a 2002, tais produtos (com exceção de cocos e castanhas), tiveram sua participação diminuída no montante não monetário.

Ressalta-se que a redução da participação não monetária como forma de aquisição de alimentos se deu tanto na categoria “doação” quanto na categoria “produção própria”, sendo mais intensa nesta última. Produtos como leguminosas, panificados, farinhas, féculas e massas, carnes suínas, ovos, queijos e outros laticínios, café, sais, condimentos, óleos e gorduras apresentaram queda na produção própria de mais de 50% no período analisado. Também os cereais, hortaliças, frutas, leite e aves tiveram sua participação reduzida na categoria “produção própria” na ordem de 30% a 43%. As exceções na categoria “produção própria” corresponderam aos produtos cocos e castanhas, outras carnes (que não a bovina e suína) e açúcares, que apresentaram participação aumentada.

Verificou-se, ao final da década de 2000 nas áreas urbana e rural do país, o comportamento dos produtos selecionados no início da mesma década, cuja forma não monetária de aquisição correspondia a no mínimo 10% do total adquirido pelas famílias (Tabela 3). De modo geral, foi observada importante redução da participação da parcela não monetária para a aquisição dos alimentos, tanto na área urbana do país como na rural. O impacto, no entanto, parece ter ocorrido com maior magnitude na área rural, com exceção para as hortaliças, frutas, carnes suínas e outras carnes (que não a bovina), ovos e leite, cujo percentual de redução da forma não monetária de aquisição destes produtos foi maior na área urbana.

Estimativas apontam que, para os próximos anos, a tendência de aumento populacional nos países em desenvolvimento se dará principalmente em áreas urbanas, e o número de cidades com mais de 1 milhão de habitantes será o dobro daquele em 1975. Tal fato implicará que grande parte da produção mundial de alimentos será direcionada à demanda crescente destas localidades8.

Tabela 1 – Aquisição Alimentar Domiciliar per Capita Anual, Segundo Forma de Aquisição de Grupos e Subgrupos de produtos, Brasil, POF 2002/03

Produtos

Total
(kg)

%
Monetário1

% Não

monetário2

total

   % Não monetário

Doação

Produção
própria

Outra

Cereais

35,51

88,79

11,20

2,90

6,22

2,08

Leguminosas

12,86

80,71

19,28

3,49

12,36

3,42

Hortaliças

29,00

85,62

14,37

3,13

9,75

1,48

Frutas

24,49

87,54

12,45

3,91

7,39

1,14

Cocos e castanhas

1,60

55,30

44,70

3,10

14,28

27,32

Farinhas, féculas e massas

22,77

89,59

10,40

2,67

5,27

2,45

Panificados

20,30

94,87

5,12

1,67

2,46

0,98

Carnes e vísceras bovinas

17,64

95,35

4,64

1,92

1,87

0,85

Carnes e vísceras suínas

5,80

83,62

16,37

2,24

12,58

1,55

Outras carnes e vísceras

2,67

87,64

12,35

2,99

2,62

6,74

Pescados

4,59

70,37

29,62

5,01

5,22

19,38

Aves

13,86

89,61

10,38

1,58

7,64

1,15

Ovos

1,72

72,09

27,90

1,16

24,41

2,32

Leite e creme

45,21

76,97

23,02

7,60

11,81

3,60

Queijos e requeijão

2,05

90,73

9,26

1,95

5,85

1,46

Outros laticínios

2,65

96,98

3,01

1,50

1,13

0,37

Açúcares

20,47

96,77

3,22

1,95

0,09

1,17

Doces e outros

3,03

94,05

5,94

1,98

2,64

1,32

Sais e condimentos

5,97

96,31

3,68

1,84

0,67

1,17

Óleos

8,24

96,23

3,76

2,42

0,24

1,09

Gorduras

1,99

92,46

7,53

1,00

5,02

1,50

Café

2,67

92,88

7,11

2,24

2,62

2,24

Bebidas alcoólicas

5,67

95,59

4,40

3,17

0,17

1,05

Outras bebidas e infusões

36,96

96,88

3,11

1,08

0,08

1,94

Alimentos preparados e misturas industrializadas

2,56

90,23

9,76

5,07

1,56

3,12

Outros produtos

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

0,0

1Despesas monetárias são aquelas efetuadas por meio de pagamento realizado à vista ou a prazo, em dinheiro, cheque ou com utilização de cartão de crédito9.              

2Despesas não monetárias correspondem a tudo que é produzido, pescado, caçado, coletado ou recebido em bens (troca, doação, retirada do negócio e salário em bens) utilizados ou consumidos durante o período de referência da pesquisa e que, pelo menos na última transação, não tenha passado pelo mercado. Nesse sentido, o estoque, ou seja, os produtos que não foram utilizados ou consumidos, não foi considerado despesa não monetária10.

Fonte: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Banco de dados agregados. Rio de Janeiro: IBGE, 2011. Disponível em: <http://www.sidra.ibge.gov.br>. Acesso em: abr. 2011.

 

 

Tabela 2 – Aquisição Alimentar Domiciliar per Capita Anual, Segundo Forma de Aquisição de Grupos e Subgrupos de produtos, Brasil, POF 2008/09

Produtos

Total
(kg)

%
Monetário

% Não

monetário

Total

   % Não monetário

Doação

Produção
própria

Outra

Cereais

29,41

92,21

7,79

2,45

4,22

1,12

Leguminosas

9,56

88,28

11,72

3,56

6,49

1,67

Hortaliças

27,08

90,80

9,20

2,36

6,13

0,71

Frutas

28,86

91,27

8,73

2,98

4,78

0,97

Cocos e castanhas

1,26

61,10

38,89

4,76

19,05

15,08

Farinhas, féculas e massas

18,09

93,42

6,58

2,76

2,44

1,38

Panificados

21,51

96,93

3,07

1,67

0,79

0,61

Carnes e vísceras bovinas

17,67

96,10

3,90

1,87

1,25

0,78

Carnes e vísceras suínas

5,62

90,39

9,61

2,14

5,69

1,78

Outras carnes e vísceras

2,84

89,44

10,56

2,46

4,22

3,88

Pescados

4,03

78,41

21,59

4,47

3,72

13,40

Aves

13,20

93,18

6,82

1,44

4,32

1,06

Ovos

3,22

85,09

14,91

1,86

11,19

1,86

Leite e creme

38,43

84,39

15,61

4,91

8,07

2,63

Queijos e requeijão

2,15

95,35

4,65

1,86

2,33

0,46

Outros laticínios

3,12

99,04

0,96

0,48

0,16

0,32

Açúcares

16,96

97,35

2,65

1,59

0,18

0,88

Doces e outros

3,56

96,91

3,09

1,40

1,40

0,29

Sais e condimentos

5,44

97,98

2,02

1,28

0,04

0,70

Óleos

7,10

97,32

2,68

1,96

0,02

0,70

Gorduras

1,83

97,27

2,46

1,20

0,65

0,60

Café

2,59

97,30

2,70

1,54

0,39

0,77

Bebidas alcoólicas

6,80

97,06

2,94

2,06

0,15

0,73

Outras bebidas e infusões

41,33

96,93

3,07

1,60

0,07

1,40

Alimentos preparados e misturas industrializadas

3,51

94,30

5,70

4,27

0,00

1,43

Outros produtos

0,04

25,0

75,0

17,5

50,0

7,50

Fonte: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Banco de dados agregados. Rio de Janeiro: IBGE, 2011. Disponível em: <http://www.sidra.ibge.gov.br>. Acesso em: abr. 2011.

 

 

Estudos mostram que consumidores em áreas urbanas pagam pelo menos 30% mais caro por sua alimentação do que aqueles nas áreas rurais11. Além de que países nos quais a população urbana representa em torno de 75% do total populacional o consumo de açúcar e gorduras têm maior participação na dieta do que a da população de países que não alcançaram este grau de urbanização com consequências negativas para a saúde da população12. Assim, é cada vez mais evidente a interdependência entre os setores agrícola, industrial e de serviços, o que implica pensar sobre o uso adequado de terras, inclusive em áreas urbanas e periurbanas, na demanda de infraestrutura para o acesso e consumo seguros de alimentos e de água, especialmente entre a população de menor poder aquisitivo13.

 

Tabela 3 – Percentual de Aquisição Alimentar Domiciliar per Capita Anual na Forma Não Monetária de Produtos Selecionados nas Áreas Urbana e Rural do Brasil, POF 2002/03 e 2008/09

                                                                                 (%)

Produtos

Brasil urbano

 

Brasil rural

Não

monetário
2002

Não

monetário
2008

Redução

 

Não

monetário
2002

Não

monetário
2008

Redução

 

Cereais

5,64

4,25

24,6

26,45

16,92

36,0

Leguminosas

6,83

5,53

19,0

46,68

29,16

37,5

Hortaliças

5,52

3,59

34,9

53,11

37,66

29,1

Frutas

5,95

3,70

37,8

56,31

42,84

23,9

Cocos e castanhas

9,18

8,86

3,5

82,21

71,79

12,7

Farinhas, féculas e massas

5,03

3,62

28,0

20,59

13,01

36,8

Carnes e vísceras suínas

6,62

2,86

56,8

46,99

33,24

29,2

Outras carnes e vísceras

4,60

2,72

40,8

46,78

33,81

27,7

Pescados

9,48

7,85

17,2

63,46

50,99

19,6

Aves

3,45

2,43

29,5

44,44

27,59

37,9

Ovos

6,99

3,55

49,2

74,43

59,58

19,9

Leite e creme

7,33

5,19

29,2

 

78,18

63,02

19,4

Fonte: Dados da pesquisa

 

 

A opção feita pelo Brasil, no passado recente, em privilegiar a agricultura industrial tem por consequência atual um alto grau de dependência de abastecimento alimentar da população em relação aos complexos industriais agroalimentares das transnacionais. Tal fato se apresenta como um dos fatores desfavoráveis ao alcance de soluções para os problemas de insegurança alimentar e nutricional14, sejam os relacionados à redução do déficit nutricional, ainda presente em segmentos populacionais específicos, ou à solução dos problemas decorrentes do crescimento da obesidade e doenças crônicas na população em geral.

No entanto, apesar da manutenção das políticas voltadas ao grande capital internacional, houve também na última década a instituição de diversas políticas públicas no plano federal voltadas à promoção da agricultura familiar, tais como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), definido pela Lei n. 11.326 de 24/07/2006, e importantes mecanismos de compras públicas de alimentos da agricultura familiar, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Soma-se a isto a organização dos Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEAs) nas escalas federal, estadual e municipal, e do estabelecimento da recente Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) com o Decreto n. 7.794 de 20/08/2012. Tais ações contribuem para a construção de um futuro com maior soberania e segurança alimentar e nutricional da população nacional.

Assim, da análise do comportamento da aquisição de alimentos na última década, considera-se que, se por um lado o aumento da forma monetária de aquisição pode representar maior liberdade na escolha dos itens para a alimentação, por outro há que se considerar aspectos relacionados à segurança alimentar e nutricional, pois nem sempre a seleção dos alimentos se dá de forma consciente e direcionada a hábitos alimentares saudáveis15. Na área rural, a redução da forma não monetária de aquisição de alimentos, expressa principalmente por meio da produção própria, pode repercutir, entre outros fatores, na qualidade da dieta desta parcela da população nacional que se torna mais vulnerável ao consumo de alimentos industrializados16, 17 e também nas condições de disponibilidade e acesso a alimentos básicos da população em geral.  

 

1INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009: despesas, rendimentos e condições de vida. Rio de Janeiro: IBGE, 222 p., 2010.

 

2CAMARANO, A. A.; PASINATO, M. T. Envelhecimento, pobreza e proteção social na América Latina. Texto para Discussão, Rio de Janeiro: Ipea, 2007 (Texto n. 1292).

 

3SILVA, M. O. S. O Bolsa Família: problematizando questões centrais na política de transferência de renda no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 6, p. 1429-1439, 2007.

 

4INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009: aquisição alimentar domiciliar per capita Brasil e Grandes Regiões. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. 282 p.

 

5Op. cit. nota 4.

 

6Op. cit. nota 1

 

7INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Bancos de dados agregados. Rio de Janeiro: IBGE, 2011. Disponível em: <http://www.sidra.ibge.gov.br>. Acesso em: abr. 2011.

 

8BROCKERHOFF, M. An urbanizing world: achieving urban food and nutrition security in the developing world. International Food policy Research Institute, Washington, Issue 3, 2000. (A 2020 vision for food, agriculture, and the environmental).

 

9Op. cit. nota 1

 

10Op. cit. nota 1

 

11ARGENTI, O. Feeding the cities: food supply and distribution. Achieving urban food and nutrition security in the developing world. International Food policy Research Institute, Washington, Issue 5, 2000. (A 2020 vision for food, agriculture, and the environmental).

 

12POPKIN, B. M. Urbanization and nutrition transition: achieving urban food and nutrition security in the developing world. International Food policy Research Institute, Washington, Issue 7, 2000. (A 2020 vision for food, agriculture, and the environmental).

 

13Op. cit. nota 11.

 

14BELIK, W; SILVA, J.G.; TAKAGI, M. Políticas de combate à fome no Brasil. São Paulo em Perspectiva,v. 15, n. 4, p. 119-129, 2001.

 

15LIGNANI, J. B. et al. Changes in food consumption among the Programa Bolsa Família participant families in Brazil. Public Health Nutrition, Vol. 14, Issue 5, pp. 785-792, 2011.

 

16LEVY-COSTA, R. B. et al. Disponibilidade domiciliar de alimentos no Brasil: distribuição e evolução (1974-2003). Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 39, n. 4, p. 530-540, 2005.

 

17LEVY, R. B. et al. Distribuição regional e socioeconômica da disponibilidade domiciliar de alimentos no Brasil em 2008-2009. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 46, n. 1, p. 6-15, 2012. 

 

Palavras-chave: aquisição de alimentos, pesquisa de orçamentos familiares, segurança alimentar.

 


Data de Publicação: 04/06/2013

Autor(es): Lenise Mondini Consulte outros textos deste autor
Soraia de Fátima Ramos (sframos@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor