Dilemas (verdadeiros e falsos) da cafeicultura na “montanha”

O evento climático mais temido pela cafeicultura, a geada, tem sua origem no direcionamento morro acima das lavouras de café nas regiões de mais antigo cultivo. Em outra abordagem, de matiz sociológica, percebia-se na disposição espacial: lavoura no morro e casa grande no vale, como uma configuração capaz de permitir imediato controle sobre a mão de obra alocada no manejo/colheita do cafezal. Provavelmente, ambos os fatores forjaram o vetor morro acima na histórica itinerância desse cultivo. Ao contrário da percepção geral, a ocupação da “montanha” pela cafeicultura não constitui uma vocação natural, mas uma decorrência das condições edafoclimáticas e socioeconômicas que pautaram o desenvolvimento dessa lavoura.

A digressão histórica auxilia-nos na compreensão da atual simbiose entre cafeicultura e “montanha”, todavia, no que consiste exatamente relevo dito montanhoso. Análise de imagens de satélite do Estado de Minas Gerais, por exemplo, revela que 75% de sua cafeicultura está implantada em declividade que varia de 1% a 20%, ou seja, de topografia que permite a plena mecanização tanto do manejo como da colheita das lavouras.  No cinturão da Zona da Mata, região com predomínio da cafeicultura chamada de “montanha”, 70,96% dela está implantada em terrenos com pendentes acima de 20%. Em contrapartida, no cinturão sul-sudoeste, 85% dos talhões estão alocados em áreas com menos de 20% de declividade2, 3.

O destaque para o potencial mecanizável das áreas situadas em “montanha” decorre da constatação que sistemas produtivos com emprego generalizado de procedimentos mecanizados (manejo e colheita) são menos custosos do que aqueles que dependem grandemente do trabalho manual4. Estudo que avaliou a competitividade de sistemas de produção manual e mecânico, especificamente, no sul de Minas Gerais, concluiu que o emprego de máquinas influenciou diretamente no desempenho econômico--financeiro das unidades produtivas5.

Excetuando-se o cinturão da zona da mata, em que a mecanização é de fato acentuadamente restrita, nas demais regiões poderiam ser largamente empregadas. Entretanto, características prevalecentes da estrutura fundiária da cafeicultura impedem a adoção de processos mecanizados em razão das pequenas dimensões da maior parte das lavouras. Francisco et al. (2010)6, compilando microdados do IBGE, constataram que mais de um terço da cafeicultura mineira e quase dois terços da capixaba possuem menos de 20 hectares cultivados (Figura 1). 


Nas duas últimas décadas, os processos desencadeadores de inovações e de desenvolvimentos tecnológicos aplicados à cafeicultura focalizaram com mais interesse as regiões de planalto (cerrados), orientando-os no sentido de poupar mão de obra e incrementar a produtividade daquela remanescente por meio da adoção generalizada de máquinas e equipamentos7. A cafeicultura implantada em áreas de geografia mais acidentada foi, aparentemente, negligenciada desse esforço. Ademais, poucos e custosos são os equipamentos que permitem poupar mão de obra no manejo e colheita dos sistemas de cultivo em “montanha”. A maior dependência de trabalhadores rurais (temporários, permanentes e familiares) é um dos dilemas enfrentados pelos sistemas produtivos em “montanha”.

Não existem diagnósticos precisos sobre o perfil dos cafeicultores situados nos cinturões de “montanha”. Provavelmente, a idade média desses produtores situe-se acima dos 50 anos, tendo concluído apenas o ciclo básico da formação educacional. Estudos comprovaram que agricultores desse tipo oferecem grande resistência à introdução de inovações, sendo esse fato adicional para a perda de competitividade desses estabelecimentos.

A conotação genérica para a denominada cafeicultura de “montanha” não facilita diagnósticos precisos sobre a sustentabilidade (ambiental e socioeconômica) desses sistemas produtivos. Dados sobre a evolução da área, produção e produtividade de cinturões de “montanha” podem ser apreciados. Os resultados finais de estimativa de safra entre 2008/09 a 2012/13 não revelam grandes mudanças nos indicadores selecionados, talvez apenas uma ligeira evolução positiva na produtividade (Tabela 1).

A condição de cultivo perene confere à cafeicultura relativa tendência de estabilidade de seus indicadores produtivos, estando ou não as cotações em patamares remuneradores dos fatores produtivos empregados. Portanto, sem alterações significativas capazes de promover mudanças estruturais desses cinturões na “montanha”, o ciclo de preços típico no mercado da commodity tende a causar grandes transtornos socioeconômicos nos territórios em que a atividade representa fonte importante na geração de emprego e renda.  

 


 

 

A análise das áreas em formação nos cinturões montanhosos, também, não evidencia arrefecimento na renovação/expansão8 do parque cafeeiro (Tabela 2). Normalmente esses talhões em formação possuem maior densidade de cultivo e variedades de elevado potencial genético (produtividade, qualidade, resistência/tolerância a agentes bióticos), permitindo paulatino revigoramento desses cinturões com provável incremento da produtividade dos fatores empregados.


  

Entre 2008/09 e 2012/13, a relação entre área em formação sob aquela em produção revela que entre de 10% (mínima de 2008) a 17% (máxima de 2012) das áreas com café passa por renovação, superando a habitual recomendação agronômica de 5% de renovação ao ano (em 20 anos se renova a lavoura). Esse maior dinamismo do ajuste indica que a cafeicultura na “montanha” não é um monolito estático, mas ao contrário, por diligência de seus cafeicultores, está em processo de revigoramento pautado pela introdução de tecnologia agronômica nas lavouras (cultivares produtivas, adensamento). Em médio prazo esse esforço contribuirá para robustecer a competitividade desses sistemas produtivos.

Estudos sobre o custo operacional efetivo em lavouras de café apontam entre 40% e 60% as despesas com a alocação de mão de obra. Na safra 2010/11, novo cálculo do COE para o município de Manhumirim, Estado de Minas Gerais (zona da mata), contabilizou 61,63% de participação relativa decorrente do emprego da mão de obra9, confirmando o quão relevante é esse desembolso na condução das lavouras.

Dados do IEA confirmam o forte incremento dos custos com mão de obra rural no Estado de São Paulo. Ocupações de caráter mais estável (trabalhadores permanentes) tiveram elevação próxima dos 50% entre 2008 e 2012. No caso dos volantes (temporários), a elevação do montante recebido pelo trabalhador quase triplicou. Há, portanto, “descasamento” entre os mecanismos de formação de preço da commodity e o item que mais onera os custos de produção (força de trabalho) (Tabela 3).  



A decisão política de estabelecer trajetória de recuperação do poder de compra do salário mínimo (SM) é irreversível e se reflete, sobretudo, nos gastos com a contratação de trabalhadores meio rural em que essa unidade de conta (SM) é usualmente empregada no cálculo dos proventos estipulados em contratos (formais e informais). Frente a essa realidade, os sistemas produtivos que absorvem maior conteúdo de trabalho vivo (pessoas) são penalizados em relação àqueles em que o maior componente das despesas concentra-se no trabalho morto (máquinas e equipamentos)10.

Cafeicultores em situação de “montanha” buscam inovações com potencial de poupar mão de obra. Embora careçam estudos mais aprofundados, dentre as mais promissoras inovações encontra-se a construção de patamares em lavouras já estabelecidas. A observação de campo, por seguidas safras, demonstra o êxito dessa drástica iniciativa que poderia ser maiormente difundida entre outros cafeicultores em igual situação topográfica.

A adoção dos derriçadores portáteis incrementou sensivelmente a produtividade do trabalho de colheita. Equipe composta por dois funcionários (operador da derriçadora e abanador) substitui com folga outros cinco alocados para a mesma função, porém, sem o apoio do equipamento. Esse ganho em produtividade reduz os custos da operação de colheita, mesmo considerando as despesas com combustível, depreciação e maior remuneração paga a desses trabalhadores.

Recentemente, lideranças da produção delinearam ações com intuito de oferecer soluções para os dilemas da cafeicultura de montanha11. Sinteticamente, dentre as diretrizes estão: a) regionalização dos preços mínimos; b) contratos de financiamentos com validade de cinco anos; c) incentivo para a renovação/erradicação de cafezais de baixa produtividade; d) desenvolvimento de maquinário de colheita apropriado para a situação de “montanha”; e e) simplificação e redução de custo para a formalização da mão de obra. Prevê ainda contrapartidas do segmento como: a) adoção de programa governamental de certificação socioambiental e econômica das propriedades; b) forte investimento em capacitação para a gestão do negócio agrícola; c) incentivo às redes sociais de informação direcionadas ao cafeicultor; e d) apoio as organizações sociais de prestação de serviços econômicos (cooperativas/associações/unidades de preparo comunitárias). Trata-se, portanto, de estudo abrangente com sugestões capazes de introduzir nova dinâmica para a estrutura produtiva das lavouras em situação de “montanha”.

A recriação da parceria na produção de café pode se constituir numa alternativa aos cafeicultores com lavouras em que a mecanização das etapas produtivas não seja viável. O parcelamento da propriedade com os próprios trabalhadores dentro de estatuto legal, que confira segurança jurídica ao empreendimento, deveria compor o rol das ações. Tal iniciativa implica em um reordenamento produtivo com reconfiguração da relação capital-trabalho em que a autonomia decisória dos trabalhadores se fortalece. Diversas formas de colaboração podem ser imaginadas, desde aquela em que a compra de insumos e a responsabilidade sobre o preparo continuam sob coordenação do cafeicultor antigo dono, até aquelas em que apenas uma parte da safra colhida seja destinada ao pagamento da renda da terra e da exploração da lavoura.

José Saramago, único escritor de língua portuguesa laureado com Prêmio Nobel de Literatura, exibe a seguinte epígrafe na abertura do livro “Levantado do Chão”: “Nessa vida se admite tudo menos a resignação”. Diante dos dilemas atuais, nenhuma das cafeiculturas brasileiras pode admitir a resignação. A de “montanha”12, tampouco! Embora não existam soluções fáceis para os problemas aqui apenas alinhavados, é vital que além da mobilização dos cafeicultores, novas rotinas de gestão da produção sejam adotadas, preparando as explorações para novos tempos que podem até não ser tão duros como os de agora.  

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1O autor agradece o apoio recebido de Eduardo Heron Campos (Gerente de TI do CECAFE) e de Vera Lúcia Ferraz dos Santos Francisco (Pesquisadora do IEA/CPDEEA). 

²BERNARDES, T. et al. Diagnóstico físico ambiental da cafeicultura no Estado de Minas Gerais. Coffee Science, Lavras, v. 7, n. 2, p. 139-151, maio/ago. 2012. 

3FREIRE, A. H. et al. Eficiência econômica da cafeicultura no sul de Minas Gerais: uma aplicação da fronteira de produção. Coffee Science, Lavras, v. 6, n. 2, p. 172-183, maio/ago. 2011. 

4VEGRO, C. L. R.; MARTIN, N. B.; MORICOCHI, L. Sistemas de produção e competitividade da cafeicultura paulista. Informações Econômicas, São Paulo, v. 30, n. 6, p. 7-44, jun. 2000.

 

5Os autores constataram ainda que, no caso do investimento no cultivo de café com emprego exclusivo da colheita manual, o valor presente líquido do projeto (de 15 anos) seria negativo em R$6.065,82, considerando preço recebido de R$362,81 e produtividade média de 30 sc./ha. LANNA, G. B. M.; REIS, R. P. Influência da mecanização da colheita na viabilidade econômico: financeira da cafeicultura no sul de Minas Gerais. Coffee Science, Lavras, v. 7, n. 2, p. 110-121, maio/ago. 2012. 

6FRANCISCO, V. L. F. dos et al. Modelo estatístico e econômico para estimativa de safra brasileira de café. Informações Econômicas, São Paulo, v. 40, n. 12, p. 26-36, dez. 2010. 

7RUFINO, J. L. dos S. Sim! A cafeicultura de montanha é viável. Redes social do café. dez. 2011.  Disponível em: <http://www.redepeabirus.com.br/redes/form/post?pub_id=101406>. Acesso em: mar. 2013. 

8O fenômeno tende mais para a renovação do que para a expansão na medida em que a área em produção exibe ligeira baixa. 

9No caso de Guaxupé, Estado de Minas Gerais, simulou-se propriedade com 80 ha e produtividade de 23 sc./ha, enquanto em Manhumirim, Estado de Minas Gerais, esses parâmetros foram de 10 ha com 27 sc./ha. OLIVEIRA, D. H. et al. Evolução dos custos de produção da cafeicultura brasileira entre as safras 2007/2008 e 2010/2011. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E SOCIOLOGIA RURAL, 50., 2012, Vitória. Anais... Vitória: SOBER, 22-25 jul. 2012. 17 p. 

10Op. cit. nota 7. 

11Ver documento preparado pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA). CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA AGRICULTURA - CNA. Proposta para viabilização da cafeicultura de montanha. Grupo de Trabalho da Cafeicultura de Montanha, Brasília, fev. 2013. 6 p. (mimeo). 

12Alguns leitores podem não compreender as aspas colocadas no termo montanha. Quis o autor subentender que a terminologia talvez mais esconda do que revele aspectos cruciais da produção cafeeira nessa situação geográfica.

Palavras-chave: cafeicultura, sistemas de produção, sustentabilidade econômica.

 

 

 


Data de Publicação: 24/05/2013

Autor(es): Celso Luís Rodrigues Vegro (celvegro@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor