Política de Segurança Alimentar e Nutricional e a Articulação do Território Brasileiro: questões a debater

 

 

            As contradições sociais do século XXI estão estampadas nas manchetes dos periódicos do mundo. Apesar do progresso tecnológico e da expansão da produção de alimentos, persistem os quadros de subnutrição e fome em diversos países. O mundo assiste perplexo à fome assolar a Somália em razão da combinação de fenômenos climáticos e geopolíticos: uma das mais graves secas do país e a política dos rebeldes islamitas shebab resistentes à intervenção internacional na região.
 

            Indagar a respeito das causas estruturais da fome crônica e desnutrição leva a questionar o atual modelo agrícola hegemônico que permite safras recordes, mas não impede a degradação dos solos e das vidas. Para erradicar a fome é necessário garantir o direito à terra, à água e ao alimento seguro e de qualidade.
 

            Desde meados do século passado, Josué de Castro, em Geopolítica da Fome1, advertia que o problema da desnutrição não decorre de fenômenos naturais, mas da distribuição desigual de alimentos e da pobreza. Soma-se a isto a inadequação de serviços de saneamento e assistência, e da baixa escolaridade materna2.
 

            Ao analisar a situação do Brasil no atual contexto internacional, vê-se o país como palco de controvérsias no centro dos debates sobre as questões agrícola e alimentar e nutricional.
 

            Nas últimas décadas, o Brasil vem passando pelo processo de transição nutricional que envolve complexa rede de mudanças nos padrões demográficos, socioeconômicos, agrícolas e de saúde, associadas a fatores como urbanização, crescimento econômico, mudanças tecnológicas e culturais3, 4.
 

            Esse processo gerou efeito positivo na redução de desnutrição infantil, mas determinou o aumento exacerbado da obesidade na população. Nos últimos 35 anos, a prevalência de desnutrição infantil sofreu grande redução nas regiões do centro-sul do país e caminha, nos próximos dez anos, para o controle do problema na região Nordeste5, 6. Contudo, a prevalência de excesso de peso aumentou de forma substancial, alcançando, no final dos anos 2000, praticamente metade da população adulta brasileira7.
 

            O processo de produção industrial de alimentos e da tecnologia, incorporada à preparação de alimentos nos domicílios, tem resultado na prática de hábitos alimentares pouco saudáveis: aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, com baixo teor de fibras e com elevado teor de gordura, de açúcar e de sódio8, 9.
 

            No campo da produção agroalimentar, o país se mantém como o maior consumidor mundial de agrotóxicos; inclusive, é o campeão no uso de produtos há tempos proibidos em outros países. Em contrapartida, o Brasil tem sido notícia com a nomeação do Engenheiro Agrônomo José Graziano da Silva, ex-ministro de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA), como o novo Diretor Geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO).
 

            A expectativa é de que a recente experiência brasileira em relação à segurança alimentar e nutricional, essencialmente a partir do Programa Fome Zero, possam inspirar as ações de outros governantes. Espera-se acabar de uma vez por todas com a situação de insegurança alimentar que acomete parcela da população mundial.
 

            É imprescindível que a nação brasileira continue a construir o conceito de segurança alimentar e nutricional de forma participativa, e que as políticas públicas nas esferas municipais, estaduais ou federal estejam imbuídas de controle social.
 

            Realizar debates começando da base da sociedade, estimulando as reflexões e as propostas de políticas públicas, constitui-se na estrutura da IV Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional10, com o tema 'Alimentação Adequada e Saudável: direito de todos', que ocorrerá em Salvador (BA), no próximo mês de novembro.
 

            Visando contribuir para as discussões na Conferência Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado de São Paulo (CESANSP)11, que será realizada no período de 20 a 22 de setembro no Centro de Convenções do Parque Tecnológico de São José dos Campos (SP), levantam-se aqui algumas indagações para pensar as relações entre a agricultura e a alimentação saudável. De que maneira:
 

a) conciliar o aumento da produção agrícola com preservação ambiental e equidade social?
 

b) harmonizar o tipo de sistema produtivo com a diversificação na produção e no consumo de alimentos?
 

c) combinar a qualidade e o valor nutricional dos alimentos com preços justos ao produtor e consumidor?
 

d) articular distintos setores e esferas de poder em torno da construção de políticas públicas efetivas para segurança alimentar e nutricional?
 

            A articulação do território, dos setores e atores sociais para a construção da Política de Segurança Alimentar e Nutricional constitui-se em um dos pilares da IV Conferência Nacional de Segurança Nutricional e Alimentar (CNSAN).
 

            Respeitando os princípios da representatividade democrática, o regimento elaborado pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) traz os objetivos da conferência corroborando com a Política e Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Faz menção à estrutura da organização dos eventos, fixa os prazos para as reuniões municipais, territoriais e estaduais, e indica a composição dos delegados que terão direito à voz e voto na IV CNSAN.
 

            As videoconferências, o manual orientador e o documento-base, constituem-se no processo mobilizador e em subsídios, orientando as conferências locais e estaduais que antecedem o encontro geral.
 

            Entre as indicações para composição dos delegados está a garantia da presença de movimentos sociais (mulheres e negros), representantes de povos e comunidades tradicionais, como indígenas, quilombolas, caiçaras e ciganos. Trata-se de segmentos da população historicamente excluídos dos processos decisórios e com impactos diretos em seus modos de vida e alimentação.
 

            Garantir a representatividade do conjunto do território brasileiro e dar voz ativa a grupos organizados em diferentes visões e expectativas enriquecem a ação reflexiva coletiva. É no exercício democrático que se dá a possibilidade de manifestação dos anseios do conjunto da população brasileira.
 

De acordo com Elaine Bastos, Secretária Executiva do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA-SP), a conferência estadual paulista estará estruturada em torno dos seguintes grupos de trabalho:
 

1) Educação e alimentação escolar;
 

2) Saúde e qualidade de vida;
 

3) Equipamentos públicos de alimentação e nutrição;
 

4) Acompanhamento, monitoramento e avaliação de segurança alimentar e nutricional na perspectiva do direito humano à alimentação adequada;
 

5) Promoção da segurança alimentar e nutricional de grupos populacionais específicos;
 

6) Produção agroalimentar;
 

7) Produção e acesso a alimentos com base de práticas sustentáveis sob aspectos quantitativos e qualitativos e promoção do direito humano à alimentação adequada;
 

8) Incentivo à pesquisa e assistência técnica;
 

9) Institucionalidade das políticas estadual de segurança alimentar e nutricional;
 

10) Estratégias para integração de políticas e serviços de segurança alimentar e nutricional.
 

            Destaca-se que uma parcela crescente da sociedade nos faz refletir sobre os possíveis caminhos para um 'uso agrícola do território', que tenha por objetivo conciliar a produção agrícola com a alimentação de qualidade e saudável a toda população.


            Daí a importância de se investigar na escala local as características do consumo de alimentos, na cadeia que vai desde a produção até ao consumidor final (Figura 1).
 
 

Figura 1 - Perfil da cadeia de produção agroalimentar.

Fonte: Dados da pesquisa.



            Representantes do movimento agroecológico12, por exemplo, sugerem que é preciso semear, além da elaboração das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional: o respeito e amor ao próximo e à natureza, a valorização dos saberes e hábitos alimentares locais.
 

            A ideia é a realização de uma produção agropecuária em consonância com a preservação da biodiversidade, de diálogos convergentes entre os múltiplos agentes sociais, e as ações solidárias no mercado de produtos tendo em vista a saúde, o bem estar coletivo e a justiça social.


            A figura 2 ilustra, resumidamente, por meio de um mandala, as correlações que se dão entre uma produção familiar de base agroecológica e o compromisso com a segurança alimentar e nutricional.
 
 

Figura 2 - Uso agrícola do território e segurança alimentar e nutricional.

Fonte: Dados da pesquisa.



            Ao que muitos estudos estão a indicar, será a partir de usos agrícolas do território centrados nos sistemas de produção agroecológicos de base familiar e dos princípios da economia solidária permeando a cadeia de produção de alimentos (produção, transformação, distribuição e consumo) que se poderá fortalecer as políticas de segurança alimentar e nutricional em todas as escalas do governo.
 

            Considerando a necessidade de se pensar a qualidade no consumo de alimentos, seus impactos para saúde da população e as especificidades territoriais da produção, comercialização e distribuição de produtos agropecuários, seguem alguns pontos importantes como sugestão para serem debatidos CESANSP:

 

  •  - Quais as experiências bem sucedidas nos níveis locais e regionais, relatadas nas conferências municipais, poderão servir de inspiração para outras realidades locais do território paulista?

 

  • - Quais as demandas e necessidades locais para a construção da política estadual de segurança alimentar e nutricional em São Paulo?

 

  • - Quais as virtualidades e potencialidades locais para efetivar a política estadual de segurança alimentar e nutricional em São Paulo?

 

  • - Quais outras políticas públicas (agrícola/agrária, saúde, educação, crédito, assistência técnica, etc.) devem estar atreladas às políticas de segurança alimentar e nutricionais nos municípios, regiões e Estado?

 

  • - Qual será a concepção de segurança alimentar e nutricional que o Estado de São Paulo discutirá na conferência estadual e que levará ao debate para o fórum nacional em novembro com a IV Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional?
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1CASTRO, J. Geopolítica da fome: ensaio sobre os problemas de alimentação e de população do mundo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1957, v. 1 e 2, 4ª. Ed.

 

2MONTEIRO, C. A. et al. Evolução da desnutrição infantil. In: MONTEIRO C. A. (Org.). Velhos e novos males da saúde no Brasil: a evolução do país e suas doenças.2ª. Ed. São Paulo: Hucitec-Nupens/USP, 2000. p. 93-114.

 

3POPKIN, B. M. The nutrition transition and its health implications in lower-income countries. Public Health Nutrition, v. 1, n. 1, 1998, p. 5-21.

 

4______; GORDON-LARSEN, P. The nutrition transition: worldwide obesity dynamics and their determinantsInternational Journal of Obesity, 28:S2-S9, 2004.

 

5BATISTA FILHO, M.; RISSIN, A. Desnutrição energético-protéica. In: TADEI, J. A. A. Nutrição em Saúde Pública. Rio de Janeiro, Rubio, 2011.

 

6LIMA, A. L. et al. Causas do declínio acelerado da desnutrição infantil no Nordeste do Brasil (1986-1996-2006). Revista de Saúde Pública, v. 44, n. 1, 2010, p. 17-27.

 

7INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009: antropometria e estado nutricional de crianças e adolescentes e adultos no Brasil. Rio de Janeiro, 2010. 130p.

 

8LEVY-COSTA, R. et al. Disponibilidade domiciliar de alimentos no Brasil: distribuição e evolução (1974-2003).Revista de Saúde Pública, v. 39, n.4, 2005, p. 530-40.

 

9MONTEIRO, C. A. Increasing consumption of ultra-processed foods and likely impact on human health: evidence from Brazil.Public Health Nutrition, v. 14, n. 1, 2010, p. 5-13.

 

10Disponível em: <http://www4.planalto.gov.br/consea/conferencia>.
 

11Disponível em: <http://www.consea.sp.gov.br/>.

 

12SILVA DO AMARAL, R. et al. (Org). Soberania e segurança alimentar na construção da agroecologia: sistematização de experiências. Grupo de trabalho em Soberania e Segurança Alimentar da Articulação Nacional de Agroecologia – GT SSA/ANA. Articulação Nacional de Agroecologia: Rio de Janeiro, 2010.
 

Palavras-chave: segurança alimentar e nutricional, políticas públicas, produção agroecológica.


 

Data de Publicação: 16/09/2011

Autor(es): Soraia de Fátima Ramos (sframos@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
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