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Equívocos De Pacotes Tecnológicos: O Exemplo De Baturité
Diante
da supremacia do conhecimento cientifico, o ditado 'ouvir a voz da experiência'
destoava completamente da abordagem da modernização agrícola, introduzida nos
anos 1960, com a chamada revolução verde. Os avanços tecnológicos davam suporte
para a adoção de pacotes com enfoque produtivista, que passavam por cima do
conhecimento tradicional, experiência e capacidade de organização comunitária da
população rural. Não se pode negar que os investimentos em tecnologia,
realizados por meio de juros subsidiados, trouxeram avanços inquestionáveis em
termos de produtividade agrícola. Entretanto, o não 'ouvir a voz da experiência'
com a adoção de pacotes-padrão para condições culturais e agroecológicas
distintas, em alguns casos, acabou por resultar em desastres ecológicos,
empobrecimento de regiões e perda de identidade cultural de comunidades rurais.
Breve histórico O café
foi introduzido na Serra em 1822, quando Antonio Pereira de Queiroz Sobrinho
plantou em Guaramiranga, em sistema de pleno sol, sementes trazidas do Cariri,
seguindo-se outras áreas de cultivo com sementes provenientes do Pará. O cultivo
ao sol proliferou-se paulatinamente, motivando pioneiros e adeptos, adquirindo
vulto depois de 1845, com a migração para a Serra de parte da população
sertaneja expulsa pela seca. Café Sombreado Versus Monocultura A
discussão sobre a melhor forma de cultivo do café no Brasil - a pleno sol ou
sombreado - é antiga, remontando desde meados do século XIX, quando seu cultivo
se expandiu pelo mundo tropical. Novo enfoque: a questão da sustentabilidade
Recentemente, a preocupação com o meio ambiente e a necessidade de evitar o
processo intenso de degradação da Serra, pela forte especulação imobiliária para
a construção de casas de veraneio e disseminação de práticas de agricultura
convencional na plantação de hortaliças e frutas, resultaram num movimento por
sua preservação. O impacto dessa forma de ocupação sobre o ambiente ao longo dos
anos estava levando não só à preocupação com a sobrevivência dos agricultores,
como também a menor vazão dos rios, que têm papel estratégico no abastecimento
de água, nos municípios da Serra e também na capital do Estado, Fortaleza, a 100
km de distância. BIBLIOGRAFIA CAMARGO, Rogério. Sombreamento dos cafezais. São Paulo: Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo, (Do 'Boletim de Agricultura' no único – 1945), 1949.
32p. DEAN, Warren. A Ferro e Fogo: a história da devastação da Mata
Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 484p. LIMA, Esperidião Q. Antiga Família do Sertão. S. L., Livraria AGIR Editora,
1946. 331p. ROMERO, José P.; ROMERO, João C. P. Cafeicultura Prática: cronologia das
publicações e dos fatos relevantes. São Paulo: Editora Agronômica Ceres, 1997.
400p.
Um exemplo desses equívocos pode ser buscado na Serra de Baturité, uma ‘ilha’ de
Mata Atlântica no maciço central do Ceará, uma tradicional região produtora de
café no século XIX, que chegou a deter 2% da produção brasileira. Há relatos, da
época, de que o café de Baturité era uma dos mais apreciados nas cafeterias
francesas (ROMERO & ROMERO, 1997).
A expansão dos cafezais nesse sistema no Baturité trouxe consigo não só a
derrubada da mata nativa como também a exaustão dos solos. Após algumas décadas
de belas floradas e grandes colheitas, a terra não mais possuía humus nem
retinha umidade, tornando-se incapaz de manter o vigor produtivo das plantas.
Depois de tentativas desastrosas de arborização com mangabeiras e maniçobas, há
registros em 1862 de consórcios bem sucedidos com leguminosas como o camunzé e a
ingazeira. Além de proteger os cafezais do sol, estas árvores, especialmente os
ingás, produzem humus com a queda de suas folhas e têm a vantagem de enriquecer
o solo com azoto e abrigar inimigos naturais de pragas. As espécies que se
desenvolviam espontaneamente foram conservadas para o plantio sistemático
observado mais tarde.
Segundo LIMA (1946), o plantio arborizado com essas leguminosas 'foi uma
verdadeira ressurreição. O roçado ... plantado em 1849, foi arborizado de
ingazeiras em 1904, quando começava a perecer. Revivesceu. Foram replantadas as
falhas. E presentemente [1945] ainda apresenta cerca de sessenta por cento de
cafeeiros antigos, com noventa e seis anos de idade, vigorosos e produtivos'. Na
adubação não eram usados produtos químicos, mas apenas palha do café, esterco de
animais e outros detritos orgânicos. A colheita era feita predominantemente à
mão, por mulheres - as 'apanhadeiras' - em balaios presos à cintura por tiras de
pano. Depois de colhido e medido, o café era levado ao terreiro, chamado de
faxina, para secar ao sol. Depois de seco, o café era levado à piladeira para o
beneficio.
Entretanto, em meados dos anos 1960, grande parte do parque cafeeiro cearense
foi destruído, em decorrência do Programa de Erradicação de Cafezais
estabelecido pelo Instituto Brasileiro do Café (IBC) para reduzir a produção
nacional. Nos anos 1970, mudanças conjunturais conduziram a um novo plano
governamental, o Programa de Renovação e Revigoramento de Cafezais, que promoveu
o replantio dos cafeeiros no Ceará. Entre 1971 e 1977, 6.156.700 novos pés foram
plantados na tentativa de suprir ao menos parte de seu consumo interno. O acesso
aos subsídios, entretanto, estava condicionado à utilização da tecnologia
proposta pelo IBC, de cultivo a pleno sol. Os produtores que se seduziram aos
cantos dos recursos subsidiados do governo se deram mal. Devido às
características locais específicas, em poucos anos já não havia praticamente
mais um pé de café plantado no sistema de pleno sol na região.
O pacote tecnológico proposto pelo projeto governamental, com ênfase na
monocultura e adubação química, não considerou as especificidades climáticas da
região, com chuvas fortes no verão e estiagem prolongada nas demais épocas do
ano, e muitas áreas entraram em decadência. No verão as chuvas provocavam erosão
e na época da estiagem o cafeeiro não suportava o sol forte por um longo
período. A adoção desse sistema de cultivo nada adaptado às condições serranas
provocou não só o fracasso do programa como também a decadência da cultura do
café na região.
A produção de café do Ceará não voltou mais a alcançar a participação no mercado
brasileiro que tinha no século anterior, concentrando-se principalmente nas
áreas que resistiram à proposta do IBC e mantiveram a tradição do sistema
sombreado, atendendo apenas o mercado local. A produção de café passou a
representar menos do que 0,1% do total produzido pelo Brasil (IBGE: 1996).
Com a falta de incentivo dado pela política do IBC à produção de café sombreado,
que estava em relativo equilíbrio com a preservação da mata, novas culturas como
banana e hortaliças passaram a competir o espaço com a floresta nativa que
sombreava o café e foram introduzidas pelos produtores que necessitavam de
outras opções de renda. Isso levou a um forte processo de degradação ambiental e
ao empobrecimento da Serra. Desde então, a economia regional permaneceu
estagnada, sem substituto de vulto para o café, e o êxodo rural uma realidade
detectada.
O cafeeiro (Coffea arabica) é originário do sub-bosque da floresta do planalto da Etiópia, antiga Abissínia. Em muitas partes do mundo, em especial nas regiões próximas do equador como Colômbia, Costa Rica e Java, quando o café começou a ser cultivado comercialmente, procurou-se imitar seu habitat natural, plantando-o
na sombra. No Brasil, os primeiros produtores aparentemente não sabiam como se
plantava o café em outras localidades e aplicavam técnicas tradicionais de
derrubada e queimada da mata em grande escala tal qual se fazia na produção de
cana-de-açúcar e algodão (DEAN, 1997). No final do Império, cerca de 50 anos
após sua implantação em escala comercial, vários agrônomos ainda discutiam
tópicos como técnicas de plantio, espaçamento, adubação e aração, enquanto a
questão do sombreamento era considerada um tema exótico e só praticado em
estados de pequena produção como Ceará, Bahia e alguns distritos do Espírito
Santo.
Em meio à primazia da monocultura, alguns autores como CAMARGO (1949) alertavam
para os erros de condução da lavoura no sistema a pleno sol. Entre as vantagens
dessa forma de cultivo, o autor aponta a proteção a geadas, aos ventos frios e
às secas, a longevidade da cultura, a reumificação do solo, o combate à erosão e
a obtenção de um produto de melhor qualidade. Esses fatores eram comprovados por
sua pesquisa empírica realizada em propriedades em Pernambuco e Bahia. Nas áreas
pesquisadas, em que havia forte concentração das chuvas no início do ano e um
longo período de estiagem no restante, a produção sombreada apresentava
resultados superiores em termos de produtividade.
Os exemplos desastrosos de Baturité na produção de café a pleno sol deixam
transparecer os riscos de se ter um único padrão tecnológico para condições
agroecológicas tão distintas como as encontradas num país de dimensões
continentais como o Brasil.
Esse movimento fez com que a Serra do Baturité fosse transformada pela SEMACE -
a agência estadual do meio ambiente - em Área de Proteção Ambiental em 1990. Uma
parceria com a Fundação CEPEMA, uma ONG (Organização Não-Governamental)
preocupada com a produção de conhecimento em práticas agroecológicas e
desenvolvimento sustentável, trouxe grandes mudanças para a Serra.
Mais de 100 produtores se organizaram na APEMB (Associação dos Produtores
Ecologistas do Maciço do Baturité), que chegou a exportar em 1999 cerca de 30
toneladas de café orgânico certificado para uma empresa sueca, que o vendia como
um produto diferenciado, com fortes características de comércio solidário, pois
foi produzido por pequenos agricultores da Mata Atlântica do Ceará. Esse fato é
interessante, pois essa iniciativa conseguiu abalar a forma predominante de
comercialização, baseada na desqualificação do produto e conseqüente
rebaixamento dos preços. Essas novas formas de governança impediram que o café
arábica ecológico fosse comprado pelos intermediários da região ao preço de
conillon2, permitindo que os produtores
ganhassem um ágio de cerca de US$ 50/saca.
Essas mudanças ocorreram depois de algumas ações importantes da Fundação, que respeitaram as características ambientais, culturais e sócio-econômicas da região. A produção conjunta do conhecimento, gerado in loco em pequenas unidades experimentais e disseminado por agentes de
agricultura ecológica, foi fundamental para gerar tecnologias apropriadas e
facilitar sua adoção. As mudanças na organização dos produtores e na qualidade
do produto também foram reflexos dessa proposta.
Essa estratégia tenta unir dois enfoques que até então tinham estado em conflito
- a preservação dos recursos naturais e o desenvolvimento local de práticas
agrícolas com enfoque agroecológico -, com o objetivo de garantir a
sustentabilidade do meio ambiente e dos produtores rurais. O melhor da história
é que tudo isso está sendo possível ao se dar 'ouvidos à voz da experiência' e
sem qualquer pacote tecnológico predeterminado. Os problemas não são poucos, mas
já é um bom começo.
1 Artigo publicado em Informações FIPE, no246,
p.27-30, Março/2001.
2 O café Arábica, em geral, tem um prêmio de
30% sobre o Conillon. O café orgânico têm também um ágio que varia
de 20 a 30% sobre o café
convencional.
Data de Publicação: 06/06/2002
Autor(es):
Maria Sylvia M. Saes Consulte outros textos deste autor
Maria Celia Martins De Souza (mcmsouza@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Malimiria Norico Otani (maliotani@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor