Equívocos De Pacotes Tecnológicos: O Exemplo De Baturité

            Diante da supremacia do conhecimento cientifico, o ditado 'ouvir a voz da experiência' destoava completamente da abordagem da modernização agrícola, introduzida nos anos 1960, com a chamada revolução verde. Os avanços tecnológicos davam suporte para a adoção de pacotes com enfoque produtivista, que passavam por cima do conhecimento tradicional, experiência e capacidade de organização comunitária da população rural. Não se pode negar que os investimentos em tecnologia, realizados por meio de juros subsidiados, trouxeram avanços inquestionáveis em termos de produtividade agrícola. Entretanto, o não 'ouvir a voz da experiência' com a adoção de pacotes-padrão para condições culturais e agroecológicas distintas, em alguns casos, acabou por resultar em desastres ecológicos, empobrecimento de regiões e perda de identidade cultural de comunidades rurais.
            Um exemplo desses equívocos pode ser buscado na Serra de Baturité, uma ‘ilha’ de Mata Atlântica no maciço central do Ceará, uma tradicional região produtora de café no século XIX, que chegou a deter 2% da produção brasileira. Há relatos, da época, de que o café de Baturité era uma dos mais apreciados nas cafeterias francesas (ROMERO & ROMERO, 1997).

Breve histórico

            O café foi introduzido na Serra em 1822, quando Antonio Pereira de Queiroz Sobrinho plantou em Guaramiranga, em sistema de pleno sol, sementes trazidas do Cariri, seguindo-se outras áreas de cultivo com sementes provenientes do Pará. O cultivo ao sol proliferou-se paulatinamente, motivando pioneiros e adeptos, adquirindo vulto depois de 1845, com a migração para a Serra de parte da população sertaneja expulsa pela seca.
            A expansão dos cafezais nesse sistema no Baturité trouxe consigo não só a derrubada da mata nativa como também a exaustão dos solos. Após algumas décadas de belas floradas e grandes colheitas, a terra não mais possuía humus nem retinha umidade, tornando-se incapaz de manter o vigor produtivo das plantas.
            Depois de tentativas desastrosas de arborização com mangabeiras e maniçobas, há registros em 1862 de consórcios bem sucedidos com leguminosas como o camunzé e a ingazeira. Além de proteger os cafezais do sol, estas árvores, especialmente os ingás, produzem humus com a queda de suas folhas e têm a vantagem de enriquecer o solo com azoto e abrigar inimigos naturais de pragas. As espécies que se desenvolviam espontaneamente foram conservadas para o plantio sistemático observado mais tarde.
            Segundo LIMA (1946), o plantio arborizado com essas leguminosas 'foi uma verdadeira ressurreição. O roçado ... plantado em 1849, foi arborizado de ingazeiras em 1904, quando começava a perecer. Revivesceu. Foram replantadas as falhas. E presentemente [1945] ainda apresenta cerca de sessenta por cento de cafeeiros antigos, com noventa e seis anos de idade, vigorosos e produtivos'. Na adubação não eram usados produtos químicos, mas apenas palha do café, esterco de animais e outros detritos orgânicos. A colheita era feita predominantemente à mão, por mulheres - as 'apanhadeiras' - em balaios presos à cintura por tiras de pano. Depois de colhido e medido, o café era levado ao terreiro, chamado de faxina, para secar ao sol. Depois de seco, o café era levado à piladeira para o beneficio.
            Entretanto, em meados dos anos 1960, grande parte do parque cafeeiro cearense foi destruído, em decorrência do Programa de Erradicação de Cafezais estabelecido pelo Instituto Brasileiro do Café (IBC) para reduzir a produção nacional. Nos anos 1970, mudanças conjunturais conduziram a um novo plano governamental, o Programa de Renovação e Revigoramento de Cafezais, que promoveu o replantio dos cafeeiros no Ceará. Entre 1971 e 1977, 6.156.700 novos pés foram plantados na tentativa de suprir ao menos parte de seu consumo interno. O acesso aos subsídios, entretanto, estava condicionado à utilização da tecnologia proposta pelo IBC, de cultivo a pleno sol. Os produtores que se seduziram aos cantos dos recursos subsidiados do governo se deram mal. Devido às características locais específicas, em poucos anos já não havia praticamente mais um pé de café plantado no sistema de pleno sol na região.
            O pacote tecnológico proposto pelo projeto governamental, com ênfase na monocultura e adubação química, não considerou as especificidades climáticas da região, com chuvas fortes no verão e estiagem prolongada nas demais épocas do ano, e muitas áreas entraram em decadência. No verão as chuvas provocavam erosão e na época da estiagem o cafeeiro não suportava o sol forte por um longo período. A adoção desse sistema de cultivo nada adaptado às condições serranas provocou não só o fracasso do programa como também a decadência da cultura do café na região.
            A produção de café do Ceará não voltou mais a alcançar a participação no mercado brasileiro que tinha no século anterior, concentrando-se principalmente nas áreas que resistiram à proposta do IBC e mantiveram a tradição do sistema sombreado, atendendo apenas o mercado local. A produção de café passou a representar menos do que 0,1% do total produzido pelo Brasil (IBGE: 1996).
            Com a falta de incentivo dado pela política do IBC à produção de café sombreado, que estava em relativo equilíbrio com a preservação da mata, novas culturas como banana e hortaliças passaram a competir o espaço com a floresta nativa que sombreava o café e foram introduzidas pelos produtores que necessitavam de outras opções de renda. Isso levou a um forte processo de degradação ambiental e ao empobrecimento da Serra. Desde então, a economia regional permaneceu estagnada, sem substituto de vulto para o café, e o êxodo rural uma realidade detectada.

Café Sombreado Versus Monocultura

            A discussão sobre a melhor forma de cultivo do café no Brasil - a pleno sol ou sombreado - é antiga, remontando desde meados do século XIX, quando seu cultivo se expandiu pelo mundo tropical.
            O cafeeiro (Coffea arabica) é originário do sub-bosque da floresta do planalto da Etiópia, antiga Abissínia. Em muitas partes do mundo, em especial nas regiões próximas do equador como Colômbia, Costa Rica e Java, quando o café começou a ser cultivado comercialmente, procurou-se imitar seu habitat natural, plantando-o na sombra. No Brasil, os primeiros produtores aparentemente não sabiam como se plantava o café em outras localidades e aplicavam técnicas tradicionais de derrubada e queimada da mata em grande escala tal qual se fazia na produção de cana-de-açúcar e algodão (DEAN, 1997). No final do Império, cerca de 50 anos após sua implantação em escala comercial, vários agrônomos ainda discutiam tópicos como técnicas de plantio, espaçamento, adubação e aração, enquanto a questão do sombreamento era considerada um tema exótico e só praticado em estados de pequena produção como Ceará, Bahia e alguns distritos do Espírito Santo.
            Em meio à primazia da monocultura, alguns autores como CAMARGO (1949) alertavam para os erros de condução da lavoura no sistema a pleno sol. Entre as vantagens dessa forma de cultivo, o autor aponta a proteção a geadas, aos ventos frios e às secas, a longevidade da cultura, a reumificação do solo, o combate à erosão e a obtenção de um produto de melhor qualidade. Esses fatores eram comprovados por sua pesquisa empírica realizada em propriedades em Pernambuco e Bahia. Nas áreas pesquisadas, em que havia forte concentração das chuvas no início do ano e um longo período de estiagem no restante, a produção sombreada apresentava resultados superiores em termos de produtividade.
            Os exemplos desastrosos de Baturité na produção de café a pleno sol deixam transparecer os riscos de se ter um único padrão tecnológico para condições agroecológicas tão distintas como as encontradas num país de dimensões continentais como o Brasil.

Novo enfoque: a questão da sustentabilidade

            Recentemente, a preocupação com o meio ambiente e a necessidade de evitar o processo intenso de degradação da Serra, pela forte especulação imobiliária para a construção de casas de veraneio e disseminação de práticas de agricultura convencional na plantação de hortaliças e frutas, resultaram num movimento por sua preservação. O impacto dessa forma de ocupação sobre o ambiente ao longo dos anos estava levando não só à preocupação com a sobrevivência dos agricultores, como também a menor vazão dos rios, que têm papel estratégico no abastecimento de água, nos municípios da Serra e também na capital do Estado, Fortaleza, a 100 km de distância.
            Esse movimento fez com que a Serra do Baturité fosse transformada pela SEMACE - a agência estadual do meio ambiente - em Área de Proteção Ambiental em 1990. Uma parceria com a Fundação CEPEMA, uma ONG (Organização Não-Governamental) preocupada com a produção de conhecimento em práticas agroecológicas e desenvolvimento sustentável, trouxe grandes mudanças para a Serra.
            Mais de 100 produtores se organizaram na APEMB (Associação dos Produtores Ecologistas do Maciço do Baturité), que chegou a exportar em 1999 cerca de 30 toneladas de café orgânico certificado para uma empresa sueca, que o vendia como um produto diferenciado, com fortes características de comércio solidário, pois foi produzido por pequenos agricultores da Mata Atlântica do Ceará. Esse fato é interessante, pois essa iniciativa conseguiu abalar a forma predominante de comercialização, baseada na desqualificação do produto e conseqüente rebaixamento dos preços. Essas novas formas de governança impediram que o café arábica ecológico fosse comprado pelos intermediários da região ao preço de conillon2, permitindo que os produtores ganhassem um ágio de cerca de US$ 50/saca.
            Essas mudanças ocorreram depois de algumas ações importantes da Fundação, que respeitaram as características ambientais, culturais e sócio-econômicas da região. A produção conjunta do conhecimento, gerado in loco em pequenas unidades experimentais e disseminado por agentes de agricultura ecológica, foi fundamental para gerar tecnologias apropriadas e facilitar sua adoção. As mudanças na organização dos produtores e na qualidade do produto também foram reflexos dessa proposta.
            Essa estratégia tenta unir dois enfoques que até então tinham estado em conflito - a preservação dos recursos naturais e o desenvolvimento local de práticas agrícolas com enfoque agroecológico -, com o objetivo de garantir a sustentabilidade do meio ambiente e dos produtores rurais. O melhor da história é que tudo isso está sendo possível ao se dar 'ouvidos à voz da experiência' e sem qualquer pacote tecnológico predeterminado. Os problemas não são poucos, mas já é um bom começo.

BIBLIOGRAFIA

CAMARGO, Rogério. Sombreamento dos cafezais. São Paulo: Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo, (Do 'Boletim de Agricultura' no único – 1945), 1949. 32p.

DEAN, Warren. A Ferro e Fogo: a história da devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 484p.

LIMA, Esperidião Q. Antiga Família do Sertão. S. L., Livraria AGIR Editora, 1946. 331p.

ROMERO, José P.; ROMERO, João C. P. Cafeicultura Prática: cronologia das publicações e dos fatos relevantes. São Paulo: Editora Agronômica Ceres, 1997. 400p.
 
 

1 Artigo publicado em Informações FIPE, no246, p.27-30, Março/2001.
2 O café Arábica, em geral, tem um prêmio de 30% sobre o Conillon.  O café orgânico têm também um ágio que varia de 20 a 30%  sobre o café convencional. 
 

Data de Publicação: 06/06/2002

Autor(es): Maria Sylvia M. Saes Consulte outros textos deste autor
Maria Celia Martins De Souza (mcmsouza@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Malimiria Norico Otani (maliotani@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor