Artigos
Pessoas com Deficiência e Agronegócio no Brasil: uma semente para reflexão
Cerca
de 10% da população mundial possui algum tipo de deficiência. Destas pessoas,
80% vivem em países em desenvolvimento1. Em países mais pobres a
prevalência da deficiência aumenta para cerca de 20% dos habitantes, valor que
só não é maior pelas dificuldades em realizar amostragens e qualidade das
informações. As pessoas com deficiência constituem a maior minoria do
mundo. No
Brasil o número de pessoas com deficiência é de 23,92% da população, segundo
dados do CENSO 20102, o que equivale ao total de habitantes da
Argentina. A distribuição entre unidades da Federação é praticamente a mesma em
áreas urbanas e rurais3. Pessoas com deficiência são diferentes e
heterogêneas, e o universo desta população vai muito além do estereótipo de
usuários de cadeiras de rodas, cegos, surdos e amputados.
'A deficiência é complexa, dinâmica,
multidimensional e questionada'4, sendo reconhecidamente um 'conceito
em evolução', segundo a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência –
CDPD (2006), a qual enfatiza que
a deficiência resulta da
interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao
ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade
em igualdade de oportunidades com as demais
pessoas5. A
Convenção da ONU sobre os Direitos das pessoas com deficiência, como é
conhecida, é um tratado internacional aprovado na Assembleia Geral das Nações
Unidas em dezembro de 2006, assinado por mais de 100 países em 2007, dentre os
quais o Brasil, e ratificado pelo Congresso Nacional em 2008, o que lhe confere
no país valor de norma constitucional. Visa promover, proteger e assegurar o
exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades
fundamentais por toda a pessoa com deficiência e promover o respeito pela sua
dignidade inerente.
Importantes considerações para elaboração da Convenção foram: a preocupação com
as barreiras contra a participação como membros da sociedade e violação de seus
direitos humanos assegurados, como o acesso ao trabalho; e o reconhecimento das
valiosas contribuições existentes e potenciais destas pessoas ao bem-estar comum
e à diversidade em conjunto com a participação na sociedade, que resulta em
significativo avanço do desenvolvimento humano, social e econômico de suas
comunidades.
Chegando à relação da deficiência com a agricultura e/ou produção agropecuária
no Brasil, a preocupação com tais direitos seria aparentemente desnecessária,
considerando que, para o setor as pessoas com deficiência, enquanto consumidores
são cidadãos indistintamente iguais a qualquer outro ser humano que respire no
planeta, pois consomem e fazem uso de alimentos, fibras e produtos de origem
animal, exatamente como toda a população faz ou deveria ter direito de
fazer. No
entanto, esta é uma visão oblíqua desta associação. A agricultura é de fato
justa ao ofertar produtos para todos os seres humanos indistintamente. Existe,
porém, um desequilíbrio na relação com as pessoas com deficiência ao se
considerar que a utilização da mão de obra de tais pessoas no sistema de
produção agropecuário é praticamente inexistente, e esta é infelizmente a
realidade brasileira. Em suma, há o fornecimento (também) para as pessoas com
deficiência, mas isso é feito sem a participação da pessoa com deficiência no
sistema de produção, situação que é a antítese do tema principal da luta por
tais direitos, que é 'Nada por nós, sem nós'6.
Estudo feito por uma universidade americana, em 2003, levantou que a principal
causa para esta baixa inserção deve-se à crença, por parte de um terço do total
de empregadores entrevistados, da qual as pessoas com deficiência não podem
efetivamente realizar as tarefas do trabalho exigido; o segundo motivo para a
não contratação de pessoas com deficiência foi o medo do custo de instalações
especiais7. O
mundo busca o desenvolvimento sustentável, e a inclusão de pessoas é condição
sine qua non para este modelo, que por definição prevê a integração entre
economia, sociedade e meio ambiente e que o crescimento econômico deve levar em
consideração a inclusão social e a proteção ambiental8.
Outros países já se sensibilizaram para esta situação e desenvolveram programas
destinados às pessoas com deficiência na área agrícola. É o caso dos Estados
Unidos, onde desde 1991 existe o programa chamado AgrAbility9, no
qual o governo, juntamente com universidades e a sociedade civil, por meio de
projetos específicos, promove a reabilitação e inserção da pessoa com
deficiência no trabalho e vida rural. Atualmente o Agrability está presente em
22 estados americanos, e desde sua origem já atendeu diretamente mais de 11 mil
pessoas. O orçamento para a execução das atividades equivale a 0,000126% do
total de despesas federais norte-americanas. Se a mesma proporção fosse
utilizada no Brasil, teríamos disponível um valor equivalente a 5,6% do que foi
repassado como 'transferência de recurso da união para manutenção e operação de
partidos políticos', ao partido que recebeu mais recursos no ano de
201110.
Dentre os resultados obtidos pelo AgrAbility, destaca-se que 84% dos clientes
(como são denominadas as pessoas com deficiência que aderiram ao programa, o que
elimina o enfoque assistencialista) foram capazes de gerenciar suas propriedades
com mais sucesso, 87% foram capazes de continuar morando em suas casas ou
propriedades rurais e 73% foram capazes de operar maquinários agrícolas com mais
sucesso11. A
Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) possui um
banco de dados com informações básicas e estatísticas sobre as condições de
subsistência das pessoas com deficiência em áreas rurais, o que inclui mão de
obra, principalmente nos países em desenvolvimento. Em consulta recente a estes
dados, foram encontrados projetos de inclusão pelo trabalho em área rural em
somente 21 dos 191 países membros12. Na Tailândia, o programa
'Mushroom Training for Disabled People' capacita pessoas com deficiência visual
para o cultivo de cogumelos (Figura 1). Nos Emirados Árabes há um centro
especializado em reabilitação de pessoas com deficiência para capacitação em
diversas atividades agrícolas, o Zayed Agricultural Centre for Rehabilitation of
Disabled Persons, entre outros exemplos que expõem que é possível a
inserção.
Figura 1 - Imagem de um Homem Deficiente Visual Tailandês Colhendo Cogumelos Cultivados em Substrato dentro de uma Sala Escura.
Fonte: Christian Foundation for the Blind in Thailand. Disponível em <http://www.fao.org/sd/PPdirect/rurald/photos.htm>. Acesso em 27 de setembro de 2012.
O
Brasil avançou muito na consolidação destes direitos em geral e é um país
reconhecido internacionalmente por suas ações e políticas de desenvolvimento
inclusivo. A Lei 8.213 de 1991, conhecida como lei de cotas para contratação de
pessoas com deficiência, é um exemplo de intervenção bem sucedida, mas atinge
somente empresas com mais de 100 funcionários.
Em
São Paulo, foi criada em 2008 a primeira secretaria de Estado orientada a
garantir o acesso das pessoas com deficiência a todos os bens, produtos e
serviços existentes na sociedade, a Secretaria dos Direitos da Pessoa com
Deficiência (SEDPcD). Atuando em parceria com outros órgãos e segmentos mais
conscientizados, a SEDpcD já fez avançar muito a questão da inserção pelo
trabalho, mas em meio ao setor rural ainda existe uma enorme lacuna pela pouca
atenção que este dá à causa.
Existe muito a ser feito por parte da sociedade e governo para que a inclusão e
a permanência das pessoas com deficiência no campo sejam planejadas e
possibilitadas com a dignidade que lhes é de direito.
______________________________________________________________________________________
1FACTSHEET on Persons
with Disabilities. Disponível em: <http://www.un.org/disabilities/default.asp?
id=18>. Acesso em: 24 set. 2012.
2INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. CENSO 2010. Disponível em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/resultados_do_censo2010.php>. Acesso em: 24 set. 2012.
3O mapa dinâmico pode ser observado na página do CENSO 2010 do IBGE. Disponível em: <http://cod.ibge.gov.br/4pr >. Acesso em : 24 set. 2012.
4Relatório mundial sobre a deficiência/ World Health Organization. The World Bank, tradução Lexicus Serviços Linguisticos. São Paulo: SEDPcD, 2012. 334 p.
5Convenção sobre os
direitos das pessoas com deficiência. Disponível em: <http://
www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/usr/share/documents/CONVENCAO_ONU_SOBRE_OS_DIREITOS_DAS_PESSOAS_COM_DEFICIENCIA.pdf>. Acesso em : 24 set.2012.
6'Nothing about us without us'. Este foi o tema estabelecido no Dia Internacional das Pessoas com Deficiência do ano de 2004 para conduzir os trabalhos do ano seguinte e ficou internacionalmente reconhecido, sendo utilizado e referenciado até os dias de hoje.
7A ONU e as pessoas com deficiência. Disponível em: <http://www.onu.org.br/a-onu-em-acao/a-onu-e-as-pessoas-com-deficiencia/>. Acesso em: 24 set. 2012.
8Documentos sobre a
Rio+20. Disponível em: <http://www.rio20.gov.br/clientes/rio20/rio20/
sobre_a_rio_mais_20/desenvolvimento-sustentavel>. Acesso em: 25 set.
2012.
9National agrAbility project. Supported under USDA/NIFA. Special Project 2008-4190-04796. Disponível em: <http://www.agrability.org>. Acesso em: 24 set. 2012.
10Portal da transparência
do governo federal. Disponível em: <http://www.transparencia.gov.br/PortalTransparenciaPesquisaFavorecidoPJ_2.asp?Exercicio=2011&hidIdTipoFavorecido=2&hidNumCodigoTipoNaturezaJuridica=3&textoPesquisa=&CpfCnpjNis=006762620001
70&NomeFavorecido=PARTIDO%20DOS%20TRABALHADORES%20[PT%20DIRETORIO%20NACIONAL]&valorFavorecido=5116593551>. Acesso em: 27 de set.
2012.
11MEYER, R.H.; FETSCH, R.J. National agrAbility project impact on farmers and ranchers with disabilities. Journal of Agricultural Safety and Health, v. 4, n. 12,p. 275-291, 2006.
12Disponível em:
<http://www.fao.org/sd/PPdirect/rurald/pro_result.asp>. Acesso em: 21 set.
2012.
Palavras-chave: agricultura, agronegócio, deficiência, políticas públicas, inclusão, capacitação, direitos humanos.
Data de Publicação: 03/10/2012
Autor(es): Ana Paula Porfírio Da Silva ( anapaula@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor