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A DINÂMICA DE INTERVENÇÃO DO ESTADO NAS ECONOMIAS CAPITALISTAS DESENVOLVIDAS: as experiências do Reino Unido e da França - Valquiria Da Silva
Definir o papel e as funções da instituição Estado nas economias capitalistas constituiu-se no objeto central das discussões nos meios político e acadêmico, notadamente a partir dos anos 70, com o fim da hegemonia keynesiana, cujo modelo de sustentação1 mostrou sinais de esgotamento para a solução da crise que se delineava já em fins dos 60.
No intenso debate aberto entre as diferentes abordagens teóricas e analíticas surgiu um consenso sobre o crescimento excessivo do tamanho do Estado e de sua intervenção sobre a economia e, portanto, sobre a necessidade de reformá-lo, principalmente através de mudanças estruturais.
No entanto, divergências apareceram quanto ao tipo e profundidade dessas reformas e, consequentemente, quanto ao resultado final a ser obtido. Na origem dessas divergências estavam, basicamente, os respectivos entendimentos sobre as instituições Estado e mercado e os fundamentos teóricos empregados para explicar suas ações e funcionamento enquanto instituições reguladoras da sociedade.
Nesse sentido, em grandes linhas, a análise da evolução da interação dos eventos sociais, econômicos e políticos em uma sociedade tem sido polarizada em duas grandes correntes teóricas: a corrente fundamentada no individualismo metodológico e dita liberal, que parte do conceito do homus oeconomicus, e a corrente baseada no materialismo histórico, que parte do desenvolvimento histórico das condições materiais que organizam uma dada sociedade.
A partir desses referenciais distintos para entender as lógicas de funcionamento das relações entre agentes sociais (espaço sócio/cultural), da economia (espaço econômico) e do Estado (espaço político/jurídico) tem-se que, de um modo geral até início dos anos 90, a discussão sobre o papel do Estado na economia centrou-se entre: recomendação dos neoliberais de reformas radicais para restaurar autonomia do mercado nos moldes experimentados durante o laissez-faire econômico do século XIX e para se atingir o Estado Mínimo - cujas funções principais seriam a manutenção da ordem e do direito à propriedade; e, proposições de correntes mais próximas do materialismo histórico recomendando a adoção de reformas profundas no quadro institucional presente no seio do Estado, para conduzir à uma nova e saudável forma de intervenção - a função primordial da ação do Estado seria corrigir as distorções geradas pela instituição mercado.
Intrínseca à lógica de ambas tem-se o entendimento apresentado da dinâmica de intervenção do Estado na economia. Assim, pela visão individualista, na qual a Escola da Escolha Pública se destacou, a ação do Estado caracteriza-se pelo comportamento racional dos agentes públicos e privados, o qual segue a racionalidade do homus oeconomicus, isto é, comportamento auto-interessado, maximizador de utilidade individual própria.Nesse sentido, se a lógica da ação auto-interessada provoca as falhas de mercado, essas mesmas conseqüências são observadas na ação do governo2. Contudo no caso do governo, do ponto de vista da eficiência econômica, as falhas decorrentes são mais perversas do que as geradas pelo mercado e, portanto, a intervenção do Estado, enquanto mecanismo egulador da economia, deve ser evitada (REISMAN, 1990).
Na visão materialista histórica, o Estado é entendido como uma instituição complexa, que possui uma lógica específica determinada pela evolução das relações mantidas entre os níveis político, econômico e social de uma sociedade. Este argumento é suficiente para proibir a transferência mecanicista da lógica de mercado para explicar o funcionamento da ação do Estado, conforme é assumido nas análises individualistas3. Entretanto, se de um lado, existe na corrente histórica o reconhecimento da importância do Estado enquanto instituição reguladora da economia para além de suas funções de assegurar e manter a ordem e o direito à propriedade, de outro lado, existem diversas visões para explicar o comportamento de suas ações, que vão do puro determinismo econômico ao resultado dinâmico da evolução das relações de força entre os vários níveis da sociedade, referidos acima, e manifesto nas formas institucionais básicas de organização coletiva.
Cabe ressaltar que, embora o debate teórico tenha permanecido aberto, na esfera das decisões políticas a linha de conduta seguida a partir de fins dos anos 70 foi a de reformar o Estado, via desregulação intensa, objetivando-se atingir o Estado Mínimo e assegurar ao mercado as funções de coordenar e orientar a economia - laissez-faire econômico. No entanto, rigidezes estruturais surgiram às mudanças neoliberais propostas e mesmo nos domínios onde estas foram possíveis os resultados obtidos estiveram aquém dos benefícios esperados, conforme será apresentado no corpo deste trabalho através da experiência no Reino Unido, exemplo empírico onde as orientações liberais foram experimentadas em grau elevado.
É assim que, apesar das reformas implementadas a partir do início da década de 80, o desemprego continuou e continua sendo o grande desafio a ser enfrentado nesse final de século pelas nações capitalistas, conjuntamente com o retorno do crescimento econômico sustentado e a almejada redução dos gastos públicos. No domínio da economia política, a persistência desta realidade, aparentemente restrita ao espaço econômico, aprofundou as divergências entre os liberais, reanimou as teses que defendiam uma regulação econômica resultante da complementaridade entre Estado e Mercado e, consequentemente, recolocou o centro do debate sobre o papel do Estado na economia em proposições alternativas muito próximas às da corrente histórica comentada acima4.
O presente estudo insere-se neste amplo debate, reconhecendo que o processo de revisão das funções do Estado faz-se necessário para corrigir as distorções que surgiram - notadamente, a crise fiscal que se instalou nos Estados capitalistas em geral - e está fundamentado no pressuposto de que nesse processo é preciso compreendê-lo sob uma perspectiva histórica, como uma instituição anterior ao mercado, que evoluiu a partir dos desenvolvimentos econômico, social e político, ao mesmo tempo em que influiu sobre estes numa relação biunívoca.
Além disso, considera que o Estado deve ser analisado como uma instituição que possui uma lógica particular, visto que ao ter assumido5, historicamente, o papel daquele que supre e corrige as deficiências do mercado - particularmente, na esfera das relações sociais - acabou assegurando direitos difíceis de serem re-estruturados dentro da ótica exigida pela condição presente de mercado. E é inclusive devido a esta característica que nos países desenvolvidos, apesar da redução experimentada no nível de atividade econômica - o que conduz à redução da capacidade de obtenção de receita pelo Estado e, consequentemente, da capacidade de financiar suas despesas através da coleta de impostos -, as despesas sociais continuaram a crescer e até se aceleraram em razão da própria crise econômica enfrentada por estes países (RONSAVALON, 1981).
Ou seja, contrariamente ao que ocorre na visão individualista, entende-se que é necessário analisar a dinâmica da intervenção do Estado através das instituições que organizam as sociedades capitalistas, notadamente através da análise dos instrumentos de política utilizados, em seus aspectos quantitativo e qualitativo; da evolução da economia de mercado (desenvolvimento econômico no âmbito tecnológico e do espaço econômico propriamente dito); e, dos movimentos sociais (aspectos econômicos, políticos e culturais), o que permitirá uma visão do conjunto e, consequentemente, auxiliará na compreensão dos fundamentos necessários para as transformações exigidas à situação atual.
Assim, o objetivo do presente estudo é detectar quais foram os mecanismos que estiveram na origem das intervenções públicas nas economias capitalistas e, num aprofundamento teórico, apoiado na visão institucionalista da relação de poder numa sociedade, verificar se existiu um caráter fundamental que distinguiu seu ritmo de intervenção.
A hipótese aqui presente é que o caráter geral (histórico) da intervenção do Estado resulta de compromissos amplos firmados - espontâneos ou forçados - em concordância com a hegemonia decorrente da interação das esferas política, econômica e cultural, e manifestos nas formas institucionais de organização social - cujo locus de expressão máxima é o espaço político representado pelo Estado. A coesão hegemônica surge da necessidade de assegurar o princípio fundamental de organização do conjunto que, em caráter amplo, pode ser étnico, religioso, econômico, etc. Nesse sentido, alterações na dinâmica de intervenção - maior ou menor regulação dos agentes sociais e de suas atividades - ocorrem quando o sistema organizacional como um todo é ameaçado, o que nas sociedades capitalistas se manifesta, principalmente, através das grandes crises no regime de acumulação prevalecente, de cunhos econômicos e/ou políticos, e poderão resultar na consolidação de instituições públicas e privadas já existentes e/ou no surgimento de novas formas institucionais em acordo com as necessidades da nova realidade que se instaura. Para sua realização adotou-se a uma estrutura de dois blocos, ao mesmo tempo distintos e interdependentes. O primeiro - composto pelos três capítulos iniciais - teve caráter essencialmente teórico, isto é, discutiu o Estado e a intervenção sob a ótica da economia política; o segundo bloco, formado pelos capítulos 5 e 6, tiveram um forte componente empírico, isto é, fundamentou-se nas experiências históricas do Reino Unido e da França. A ligação entre ambos foi realizada pelo capítulo 4, no qual encontram-se as hipóteses do estudo e a metodologia de análise empregada e pelo tópico conclusões finais.
É assim que, no primeiro capítulo foi apresentada uma discussão sobre as diferentes correntes do pensamento que analisam o comportamento do Estado, da economia e da sociedade, através de seus antecedentes teóricos (doutrinas e métodos) e das teses contemporâneas. O segundo capítulo discutiu, ainda em caráter amplo em termos de correntes teóricas, as teses gerais sobre Estado e intervenção na economia que contrapõem de modo direito as instituições Estado e Mercado em termos de eficiência e limites, destacando a evolução do pensamento sobre o funcionamento da instituição mercado e suas conseqüências, e as interpretações sobre as crises e retomadas no crescimento econômico e suas inter-relações com o espaço político. No terceiro capítulo a discussão foi centrada nas teorias que se fundamentam na evolução dos gastos públicos para explicarem os mecanismos que regulam a dinâmica de intervenção do Estado, com destaque para as teorias que sustentam que esta segue um padrão cíclico, isto é, teses sustentadas pela defesa de um princípio explicativo essencialmente endógeno.
O quarto capítulo contemplou as hipóteses do estudo e o aparato metodológico empregado: análise de co-integração para as variáveis quantitativas e modelo de intervenção.
No capítulo 5 foram apresentadas a história econômica, social e política do Reino Unido e da França - precedidas da discussão sobre os movimentos sociais e suas relações com o econômico e o político nas teorias sobre o Estado - e as conclusões preliminares com base na hipótese do trabalho e no arcabouço teórico empregado. No capítulo 6, foram apresentados e discutidos os resultados obtidos com a aplicação do modelo de intervenção, o qual permitiu a análise interativa entre variáveis qualitativas e quantitativas fundamentais ao processo. Finalmente, o trabalho encerrou-se com a apresentação das conclusões finais.