Impactos da Pandemia de Covid-19 na Atividade Pesqueira do Litoral do Estado de São Paulo


 

1 - INTRODUÇÃO

A pandemia causada pela covid-19 desencadeou uma crise de saúde pública com reflexos econômicos, devido às medidas tomadas pelos países para conter a taxa de transmissão, como isolamento social, proibição de viagens e o funcionamento presencial de empresas, entre outros. Embora o comércio varejista de alimentos, como supermercados, mercearias, lojas de conveniência e restaurantes com delivery seja considerado serviço essencial e continuar operando, as medidas tomadas para contenção do surto criaram um ambiente de insegurança quanto ao acesso aos alimentos1.

As restrições devido à covid-19 atingiram economias em todo o mundo e estima-se que a economia global deve entrar na recessão mais profunda desde a década de 1930. Conhecer o seu impacto sobre os sistemas agroalimentares é primordial para a segurança alimentar e de interesse global, além de essencial para a prospecção de políticas públicas para o crescimento do país durante e após a pandemia.

A importância da pesca nos sistemas agroalimentares locais e globais e a sua contribuição para a nutrição e saúde, particularmente para os pobres, são historicamente negligenciadas e subvalorizadas2. A pobreza nas comunidades dedicadas à pesca de pequena escala é de natureza multidimensional, não resultando apenas nos baixos rendimentos, mas também em fatores que impedem o pleno gozo dos direitos humanos, em particular dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais3. Assim, momentos de crise exigem um olhar atento a estas comunidades.

Globalmente, as pescarias variam de artesanal a altamente industrial. Em algumas regiões do Brasil, há também a pesca esportiva com grande relevância econômica. Independente de porte e/ou categoria, a pandemia pode ter um efeito prejudicial sobre a atividade e, em alguns casos, com efeitos sobre a segurança alimentar e nutricional das populações que dependem da pesca para a subsistência.

A produção pesqueira marinha e continental mundial somou 92,5 milhões de toneladas em 2017 e, apesar da estabilidade atingida pelas capturas marinhas desde a década de 1990, a pesca de captura representou 54% da produção total de pescado4. A proteína de pescado é a mais consumida no mundo, mas a cadeia produtiva pesqueira, desde a captura até o consumidor final, é bastante complexa.

No Brasil, dados da produção pesqueira são bastante escassos. Segundo o Progra-
ma de Monitoramento da Atividade Pesqueira Marinha e Estuarina do Instituto de Pesca (PMAP-IP)5, a pesca extrativa marinha em 2019 descarregou no Estado de São Paulo 15,4 mil toneladas de pescado, com um valor estimado de R$123,4 milhões na primeira comercialização. O estado possui frotas pesqueiras industriais que contribuem com aproximadamente 62% do total do volume das descargas de pescado e 7% do número de unidades produtivas. Estas frotas estão baseadas nos municípios de Santos/Guarujá, Ubatuba e Cananéia. Nos demais municípios, a atividade pesqueira é tipicamente artesanal e, mesmo naqueles em que há frotas industriais, a pesca artesanal possui relevância.

 

2 - METODOLOGIA

Este artigo relata um breve diagnóstico sobre os impactos da pandemia da covid-19 na atividade pesqueira do litoral paulista, sob a ótica dos agentes de campo do PMAP-IP, pessoas inseridas nas comunidades pesqueiras e que trabalham na coleta censitária dos dados pesqueiros do Estado de São Paulo.

Foram entrevistados 28 agentes, no período de 22 a 24 de março de 2020, contemplando 15 municípios do litoral do Estado de São Paulo: Bertioga (1), Cananéia (3), Caraguatatuba (2), Iguape (1), Ilha Comprida (1), Ilhabela (2), Itanhaém (1), Mongaguá (1), Peruíbe (2), Praia Grande (1), Santos/ Guarujá (4), São Sebastião (4), São Vicente (1) e Ubatuba (4).

Foram realizadas entrevistas pontuais qualitativas, utilizando-se um questionário estruturado com as perguntas do quadro 1.

 

Quadro 1 – Perguntas Realizadas aos Agentes

-           Como a atividade de pesca foi afetada pela pandemia (covid-19) na sua região?

-          Quais os reflexos da pandemia sobre a produção pesqueira?

-           Como a pandemia afetou a demanda por pescado?

-           Como foram os efeitos da pandemia no transporte/escoamento de pescado?

-           Quais os efeitos da pandemia sobre o comércio de pescado?

Fonte: Elaborado pelos autores.

A metodologia escolhida para essa análise foi a SWOT do inglês: Strenghts, Weakness, Opportunities, Threats, ou em português FOFA (Fortalezas, Oportunidade, Fraquezas, Ameaças), por se tratar de uma metodologia simples, de fácil aplicação para obtenção de resultados rápidos, de modo a sinalizar respostas imediatas para a crise atual.

De acordo com Helms e Nixon6, a matriz FOFA7 é usada amplamente para o planejamento, de modo a embasar a recomendação de ações estratégicas. A metodologia baseia-se na listagem de forças e fraquezas como fatores internos à organização, e oportunidades e ameaças como os fatores externos à organização, em um quadro 2x2.

Sendo as oportunidades e ameaças consideradas fatores que pertencem ao ambiente externo, sua análise não se restringe ao presente, procurando analisar o que pode vir a ser o ambiente futuro. Assim, a matriz FOFA no presente trabalho foi desenhada com base nas respostas das entrevistas e os fatores foram extraídos das respostas ao questionário de acordo com a percepção dos autores.

 

3 - RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dentre os agentes entrevistados, um atua exclusivamente na pesca industrial em Bertioga, e os demais 27 na pesca artesanal, sendo que 4 destes atuam nos dois setores (2 em Cananéia e 2 em Santos/Guarujá). O quadro 2 apresenta os dados resultantes da análise das entrevistas utilizando o método FOFA.

Com base nas entrevistas, observou-se pontualmente que boa parte dos pescadores foi afetada por fatores relacionados à pandemia covid-19. Entretanto, a atividade pesqueira já estava diminuída ou paralisada por efeitos ambientais, climáticos e pelo período de defeso do camarão, momento em que os profissionais da pesca desse animal normalmente recebem o auxílio defeso e aproveitam o período para a manutenção das embarcações.

As pescarias de arrasto de fundo artesanal e industrial que ficaram paralisadas respondem por cerca de 20% da produção extrativa total e 35% da produção artesanal. Outras pescarias industriais, como a de parelha8 e a de cerco, que foram pouco afetadas, respondem por 45% do total. Assim, o defeso do camarão foi apresentado como o fator mais importante para amenizar o impacto no período inicial da pandemia.

Os resultados mostraram que os pescadores tinham conhecimento sobre a pandemia e demonstrou a adesão deles ao isolamento social por medo e por muitos constituírem o grupo de risco. A adesão ao isolamento social foi mais ativa nas duas primeiras semanas e foi diminuindo com o passar do tempo. Também houve adesão ao uso das medidas de profilaxia, como uso de máscaras e higienização das mãos.

 

Quadro 2 - Resultado da Análise FOFA

Fortalezas

Oportunidades

Atividade normal para pesca industrial

e alguns pescadores artesanais

Pescaria de outras espécies

Opção pelo isolamento

Desenvolvimento do extrativismo

como alternativa

Retomada gradativa das atividades

Produção e comercialização

local e autoconsumo

Manutenção das atividades,

mesmo que reduzidas

Doação do excedente

Entendimento da gravidade da pandemia

Desenvolvimento de novos mercados

(delivery, porta em porta, encomenda,

telefone e redes sociais)

Uso de medidas de profilaxia

Compras institucionais

Venda por atravessador para feira livre normal

Aumento na venda direta.

Pesca de espécies de época (sororoca,

Scomberomorus brasiliensis)

 

Venda de época (Semana Santa)

 

Estoque congelado

 

Venda para entreposto

 

A logística não foi afetada exceto por balsas

 

Vendas normais em ranchos.

 

Fraquezas

Ameaças

Paralisação total

Medo da doença

Parcialmente parado

Falta de infraestrutura de estocagem

Redução da atividade

Diminuição do fluxo da pesca nas peixarias

Retirada do cerco da água

Queda nas vendas dos mercados municipais

Grande número de pescadores

no grupo de risco

Barreiras de acesso às cidades

Dificuldade de comercialização

Paralisação das balsas

Aumento nos preços do pescado

para o consumidor final

Diminuição do mercado interno

Dificuldade de passar pela barreira sanitária

por falta de nota fiscal do produtor

Fechamento das comunidades tradicionais

 

Redução do turismo

 

Comércio fechado (parte do pescado era encaminhado para bares, restaurantes, quiosques)

 

Redução das pessoas circulando

 

Impedimento do uso da faixa de areia

 

Atraso nos pagamentos recebidos das peixarias.

Fatores não relacionados à covid-19

Defeso do camarão (março a maio), mau tempo, ressaca, ventos, marés, baixa temporada,

poucos peixes, os pescadores nesta época possuem outras atividades, tipo de pesca

(emalhe, linha, rede arrasto)

Fonte: Elaborado pelos autores.

Para os pescadores que continuaram na atividade, a pandemia teve interferências variadas e diferenciadas por ramo da atividade. Na pesca artesanal, houve variações de paralisação total a produção normal, mas a maioria conduziu as atividades, mesmo que em ritmo reduzido. A pescaria industrial manteve-se durante a pandemia.

A pesca de peixes de época continuou e a relacionada à Semana Santa foi parcialmente mantida. Parte da produção foi estocada e alguns dos entrevistados ressaltaram a necessidade de infraestrutura de armazenamento, deficitária em algumas regiões.

A comercialização do pescado foi o setor da atividade mais afetado, em especial em regiões que dependem exclusivamente do turismo. O isolamento social e as normas determinadas pelo governo no combate à pandemia geraram uma diminuição no fluxo de pessoas circulando, com consequente redução no volume de pescado consumido, afetando principalmente as peixarias e mercados municipais. A comercialização para o entreposto nos ranchos de pesca e nas feiras livres continuou normal. 

O transporte e o escoamento do pescado sofreram interferências pontuais das restrições devido à pandemia, especialmente para usuários da balsa, por conta da diminuição no fluxo diário de embarcações, e para aqueles que não possuíam nota fiscal, que ficaram sujeitos a barreiras sanitárias.

As adversidades também geraram oportunidades. Foi relatado um redirecionamento de parte da produção visando o consumo local e o autoconsumo, com doação do excedente. Houve também a diversificação da pesca e a busca por outros produtos alternativos, bem como o aumento nas vendas diretas com o desenvolvimento de novos mercados (delivery, porta em porta, encomenda, telefone e redes sociais) e compras institucionais para composição de cestas.

 

4 - CONCLUSÃO

         Com base nas entrevistas realizadas, a fase inicial da pandemia da covid-19 teve baixo impacto na comunidade pesqueira, exceto em regiões que dependem do turismo e onde o acesso dos pescadores à praia foi impedido. Criou-se a oportunidade de formação de novos mercados e da captura de outras espécies.

Esse panorama se dá principalmente pela coincidência com o período do defeso do camarão; este, porém, encerra-se em 31 de maio e o isolamento social terá continuidade. Assim, medidas emergenciais são necessárias para que o isolamento social dos pescadores, em especial os artesanais, se mantenha e a segurança alimentar das comunidades pesqueiras seja garantida durante este período.

Para o retorno dos pescadores ao mar será necessário o desenvolvimento de novos mecanismos de comercialização e conservação para escoar a produção pesqueira. Este momento ressalta a necessidade da capacitação dos profissionais da pesca em boas práticas de manipulação e conservação pós-colheita, diversificação do comércio e das atividades com vistas à segurança alimentar e nutricional das comunidades pesqueiras durante o período de isolamento social, bem como prepará-los para momentos da crise que pode perdurar. Ressalta-se ainda a necessidade de políticas que deem suporte às novas formas de comercialização que se estabeleceram, visando à garantia da segurança no consumo. 

 

 

1FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS. How is COVID-19 affecting the fisheries and aquaculture food systems. Roma: FAO, 10 Apr. Disponível em: http://www.fao.org/3/ca8637en/
ca8637en.pdf .
Acesso em: 15 maio 2020.

 

2THILSTED, S. H. et al. Sustaining healthy diets: The role of capture fisheries and aquaculture for improving nutrition in the post-2015 era. Food Policy, Amsterdam, Vol. 61, pp. 126-131, 2016.

 

3ORGANIZAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ALIMENTAÇÃO E A AGRICULTURA. Diretrizes voluntárias para garantir a pesca de pequena escala sustentável: no contexto da segurança alimentar e da erradicação da pobreza. Roma: FAO, 2017. 34 p. Disponível em: http://www.fao.org/3/i4356pt/I4356PT.pdf . Acesso em: 15 maio 2020.

 

4FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS. Fishery and aquaculture statistics. Roma: FAO, 2017 82 p. Disponível em: http://www.fao.org/fishery/static/Yearbook/YB2017_USBcard/booklet/CA5495T_web.pdf. Acesso em: 30 maio 2020.

 

5SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. Instituto de Pesca. Programa de Monitoramento da Atividade Pesqueira Marinha e Estuarina do Instituto de Pesca. São Paulo: PMAP, 2020. Disponível em: http://www.propesq.pesca.sp.gov.br/16/conteudo. Acesso em: 15 maio 2020.

 

6HELMS, M. M.; NIXON, J. Exploring SWOT analysis – where are we now? A review of academic research from the last decade. Journal of Strategy and Management, Bingley, Vol. 3, Issue 3, pp. 215-251, 10 Aug. 2010. Disponível em: https://doi.org/10.1108/17554251011064837. Acesso em: 15 abr. 2020.

 

7WEIHRICH, H. The TOWS Matrix a Tool for Situational Analysis. Long Range Planning, Amsterdam, Vol. 15, Issue 2, pp. 54-66, 1982. Disponível em: https://doi:10.1016/0024-6301(82)90120-0 Acesso em: 15.abr. 2020.

 

8A pesca de parelha é uma técnica de arrasto em que duas embarcações, dispostas lado a lado e mantendo uma determinada distância, operam uma mesma rede cônica enquanto navegam. 

 

Palavras-chave: Sars-CoV-2, coronavírus, pesca.


 

COMO CITAR ESTE ARTIGO

FURLAN, E. F. et al. Impactos da pandemia de covid-19 na atividade pesqueira do litoral do Estado de São Paulo. Análises e Indicadores do Agronegócio, São Paulo, v. 15, n. 8, ago. 2020. Disponível em: colocar o link do artigo. Acesso em: dd mmm. aaaa.

Data de Publicação: 17/08/2020

Autor(es): Érika Fabiane Furlan Consulte outros textos deste autor
Silvia Moreira Rojo Vega Consulte outros textos deste autor
Isabel Fernandes Pinto Viegas (isabelviegas@aptaregional.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Antônio Olinto Ávila da Silva Consulte outros textos deste autor