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Dilema da Retomada do Uso do DDT e a Comercialização de Cafés Certificados
A contemporânea produção intelectual, de natureza
filosófica e/ou jurídica, emprega importante parte de seus esforços em
estabelecer condutas comuns para dilemas morais. Normalmente, não existe
solução satisfatória diante de alternativas de cunho moral, prevalecendo, em
geral, aquelas que acarretem menores perdas e/ou danos, mas ainda assim
distantes de desfechos minimamente aceitáveis. Partindo desse pressuposto, a
retomada da utilização do diclorodifeniltricloroetano (DDT - o mais comum dos
inseticidas clorados e congêneres)2, após duas décadas de esforço
visando seu banimento, consubstancia-se em relevante dilema atual. Em 1970, a Suécia foi o primeiro país a proibir o
uso do DDT e outros organoclorados em práticas de manejo sanitário3.
Entretanto, foi somente em 2001 que a temática ganhou robustez necessária para
se tornar um acordo internacional denominado Convenção
de Estocolmo sobre poluentes orgânicos persistentes (POPs), que
estabelece regulação normativa para o uso de inseticidas clorados. Dentre as considerações que conduziram a formulação
da Convenção, uma delas reconhece que os POPs possuem propriedades
tóxicas, resistem à degradação, são transportados
pelo ar, pela água e pelas espécies migratórias através das fronteiras
internacionais, e depositados distantes do local de sua liberação, onde
se acumulam em ecossistemas terrestres e aquáticos. Ademais, destaca-se a
necessidade de prevenir seus efeitos adversos sobre biodiversidade enquanto
defende o imperativo de se encontrar padrões fitossanitários ambientalmente
mais sustentáveis4. A Convenção prevê que seus membros
produzam informações socioeconômicas que auxiliem a tomada de decisões, em aspectos
como: a) viabilidade e eficácia das técnicas de controle que promovam a
mitigação dos riscos intrínsecos; b) estabelecimento de eventuais opções ao
emprego dos POPs; c) monitoramento de impactos socioambientais das medidas de
controle adotadas; d) mensuração de resíduos; e e) acesso à informação. Desde que ocorra contínua exposição ao
poluente, os POPs se bioacumulam nos
tecidos, uma vez que a concentração dos contaminantes se eleva mais rapidamente
do que o organismo (inclusive dos humanos) é capaz de eliminar. Ademais, os POPs
se biomagnificam, pois a concentração dos contaminantes eleva-se a cada nível
da cadeia alimentar, afetando mais acentuadamente aqueles seres do topo dessa
cadeia, alcançando, dessa forma, patamares de toxidez. Em 2005, o Brasil tornou-se membro
signatário da Convenção de Estocolmo, prevendo a eliminação de uso dos POPs com
regramento estrito para exceções, por exemplo, cupinicidas e formicidas
(devidamente peletizados), tratamento de madeira, mistura ao óleo de
transformadores e em solventes de tintas. Relatório preparado pelo secretariado
da Convenção relacionou o Brasil como livre da produção e de estoques de
clorados5. Os organoclorados foram largamente empregados para o
controle de vetores transmissores de doenças tropicais. A malária e a
leishmaniose (cutânea e visceral) foram literalmente erradicadas, em meados da
segunda metade do século passado, de territórios em que essas doenças eram
consideradas endêmicas. Todavia, a partir dos anos 2000, com aval da
Organização Mundial da Saúde (OMS), cresceu o número de países que retornaram
ao emprego do DDT no combate aos vetores da malária e da leishmaniose. O
principal argumento para a retomada dos clorados nessas campanhas foi o
surgimento de resistência por parte dos vetores (baixa efetividade) e o alto
custo que outras técnicas apregoadas atingiram. Ademais, devido ao residual dos
clorados, o intervalo entre aplicações pode ser ampliado, reduzindo o tamanho e
dispêndio com as equipes necessárias para o combate à endemia. As licenças para o emprego do DDT no combate aos
vetores das endemias tropicais são, normalmente, concedidas pela OMS para
pulverizações em ambientes fechados, mitigando o potencial de disseminação no
meio ambiente. Vários estudos comprovaram que a contaminação ambiental por POPs
atinge as mais remotas regiões como o círculo polar ártico e os picos nevados
andinos6, revelando que fatores ainda pouco cientificamente
esclarecidos contribuem na ampla disseminação dos poluentes. A própria OMS, no contexto da Convenção de
Estocolmo, reconhece que o agroquímico está sendo bastante empregado no
controle de térmitas - cupins, recolocando a problemática da contaminação e
acumulação de resíduos no meio rural, particularmente, na agricultura. Em 2008, estimou-se que cerca de 4,5 mil toneladas a
5,0 mil toneladas, exclusivamente de DDT, continuavam sendo produzidas anualmente,
concentrados na Índia, Uganda, Etiópia e China. A legitimidade para a
fabricação do agroquímico, novamente, embasou-se em seu direcionamento voltado
para o controle de endemias (Índia e Etiópia) e exportação (China),
expressamente chanceladas pela OMS7. Dentre os países que retomaram o emprego do DDT no
combate a endemias tropicais, Índia, Uganda8 e Etiópia são três
importantes países produtores e exportadores de café; o segundo, inclusive,
concorrendo diretamente com o Brasil na oferta de cafés naturais. Segundo a
Organização Internacional do Café (OIC)9, na safra 2014/15 a Índia
produziu 5,83 milhões de sacas, exportando, aproximadamente, 70% dessa
produção. A Etiópia, com produção de 6,40 milhões de sacas nessa mesma safra,
exportou 1,87 milhão de sacas, ou seja, apenas 30% de sua produção. Por sua
vez, Uganda somou produção de 4,75 milhões de sacas, das quais 2,0 milhões
foram exportadas. A partir dos anos 2000, consolidou-se tendência
global de fortalecimento da rastreabilidade dos alimentos, à qual, mais
recentemente, incorporou-se o conceito de sustentabilidade nas dimensões
ambiental, econômica e social. Essas novas exigências, que são reflexos da
maior demanda dos consumidores aos fabricantes/importadores de alimentos,
fizeram surgir empresas prestadoras de serviços de certificação com diferentes
escopos. Nos agronegócios do café e da amêndoa de cacau, as certificações
avançaram de forma exponencial, havendo inclusive deliberação dos principais traders/agroindústrias internacionais
com prazos preestabelecidos para a aquisição de 100% de seu suprimento de
produto certificado10. Tanto a produção quanto a exportação de cafés
certificados são crescentes, não se excetuando dessa tendência aquelas com
origens na Índia, Uganda e Etiópia. Com a retomada do emprego do DDT e
congêneres para o controle de endemias, a questão moral passa a presidir a
temática. Fica o questionamento: entre preservar vidas nas zonas endêmicas para
doenças tropicais ou garantir a saudabilidade do café exportado mediante
certificação dos consumidores que acreditam nos selos, qual deve ser a melhor
escolha? Retirar a certificação e impedir que esses
cafeicultores participem dos circuitos de valor que lhes permita incrementar
seu bem-estar não parece justo, mesmo porque a pobreza conduz a maior
dilapidação ambiental, ensejando propagação de enfermidades. Paliativamente, a
inclusão por parte das certificadoras de laudos de análises para resíduos de
clorados em amostras de seus cafés comercializados até pode ser adotada.
Todavia, caso apareçam lotes acima do limite estabelecido, como proceder?
Tecnicamente, o impasse permanece. Diante do dilema não existe solução que contemple
todos os interesses (cafeicultores, consumidores e prestadores de serviços).
Para transcender essa dicotomia, necessita-se de auxílio/parceria dos países
desenvolvidos, especialmente aos países economicamente retardatários, aportando
capital e recursos humanos capazes de implementar estratégias integradas,
objetivando-se assim reduzir a incidência da malária e da leishmaniose nos
cinturões endêmicos. ____________________________ 1Os autores agradecem o trabalho de
sistematização do banco de dados econômicos conduzido pelo Agente de Apoio à
Pesquisa 2Grupo dos
Hexacloroexanos - BHC, e o grupo dos
ciclodienos - aldrin, dieldrim, endrin. 3D’AMATO, C.;
TORRES, J. P. M.; MALM, O. DDT (Dicloro
difenil tricloroetano): toxidade e contaminação ambiental - uma revisão.
Química Nova, v. 25, n. 6, p. 995-1002, 2002. 4BRASIL. Decreto n.
5.472, de 20 de junho de 2005. Promulga o texto
da Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes, adotada, naquela
cidade, em 22 de maio de 2001. Diário
Oficial da União, Brasília, 21 jun. 2005. 5BERG, H. Van Den.
Global status of DDT and its alternatives for use in vector control to
prevent disease. Stockolm Convention on Persistent Organic
Pollutants, Out. 2008. 31 p. 6Op. cit. nota 2. 7Vector control
for malária and other mosquito-borne diseases. Geneva: Who Techical Report
Series, 1995. 91
p. Disponível em: <http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/41726/1/WHO_TRS_857.pdf>.
Acesso em: jun. 2016. 8KRON, J. As na insecticidade makes a comeback, uganda
must weigh its costs. The New York Times,
New York, 18 May, 2011. Disponível
em: <http://www.nytimes.com/2011/05/19/world/africa/19uganda.html 9INTERNATIONAL
COFFEE ORGANIZATION - ICO. Banco de
dados. London: ICO. Disponível em: <htpp://www.ico.org>. Acesso em:
jun. 2016.
10LEME, P. H. O
mercado de cafés certificados no mundo: panorama tendências e críticas para o
futuro. CaféPoint, São Paulo, 15
fev. 2016. Disponível em:
<http://www.cafepoint.com.br/mypoint/phleme/p_o_mercado_de_cafes_certificados_no_mundo_panorama_tendencias_e_
Científica e Tecnológica do IEA, o analista de sistemas Paulo Sérgio Caldeira Franco.
?_r=0>. Acesso em: jun. 2016.
criticas_para_o_futuro_cafe_mercado_certificacoes_sustentabilidade_5936.aspx>.
Acesso em: jun. 2016.
Data de Publicação: 04/07/2016
Autor(es):
Celso Luís Rodrigues Vegro (celvegro@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Francisco Alberto Pino (drfapino@gmail.com ) Consulte outros textos deste autor